Nota:
Nunnally Johnson (1897-1977) é reconhecido como um dos roteiristas mais importantes de Hollywood no século passado. Sua filmografia inclui 74 títulos como escritor e 42 como produtor. Dirigiu, no entanto, apenas oito filmes, entre 1954 e 1960. A Viúva Negra/Black Widow, de 1954, foi o segundo deles.
E é interessante: assim como os demais sete filmes que Nunnally Johnson dirigiu, A Viúva Negra se baseia em obra de outro autor. Basicamente um escritor, ele só escolheu para dirigir histórias escritas por outras pessoas – em romances ou peças de teatro.
O livro Black Widow – que também teve o título de Fatal Woman – foi lançado em 1952, apenas dois anos antes do filme. Levava a assinatura de Patrick Quentin, o pseudônimo do inglês radicado nos Estados Unidos Hugh Wheeler, sujeito prolífico, autor de várias peças, roteiros para o cinema, librettos para musicais.
Patrick Quentin assinou diversas histórias policiais – e Black Widow é uma delas. Mas Black Widow, o filme, não é apenas uma história policial. É mais. É um daqueles filmes sérios, densos, voltados para platéias maduras; faz um estudo psicológico de seus personagens, um retrato do seu meio social. E, nisso, assemelha-se bastante ao filme mais marcante e conhecido entre os oito dirigidos por Nunnally Johnson, o ótimo O Homem do Terno Cinzento (1956).
Um homem se torna suspeito de crime que não cometeu
De maneira fascinante, o filme destaca a figura da viúva negra – logo após o tradicional logotipo do 20th Century Fox, vemos uma grande aranha, enquanto um narrador diz: “A viúva negra, a mais mortal de todas as aranhas, ganhou o seu sinistro nome pela deplorável prática de devorar o seu parceiro”. Destaca no título e na abertura a figura da viúva negra – mas a personagem que o espectador logo identifica como o Mal em Si é uma alpinista social.
Uma jovem ambiciosa, loucamente ambiciosa, que chega a Nova York vinda da sulista Savannah, Georgia, disposta a ascender haja o que houver, custe o que custar.
Chama-se Nancy Ordway, é conhecida pelo apelido de Nanny; tem apenas 20 anos, e se proclama escritora – autora de histórias que ninguém publicou ainda. É o papel de Peggy Ann Garner – a atriz que, aos 13 anos de idade, em 1945, havia feito o papel principal de Laços Humanos/A Tree Grows in Brooklyn, o primeiro filme de Elia Kazan. (Ela está na foto acima.)
A sorte, o acaso, o fado, o destino, tudo conspira para que Nanny fique conhecendo Peter Denver (Van Heflin, na foto abaixo), um muito bem sucedido produtor teatral da Broadway. Boa alma, bom caráter, mas também desatento, ingênuo, pouco perspicaz, Peter Denver simpatiza com a moça – e permite que ela vá se insinuando para dentro da vida dele.
Nanny reclama que não consegue inspiração para escrever no lugar onde mora – e então, num período em que sua mulher, Iris (o papel da linda Gene Tierney, na foto abaixo), está fora, distante, fazendo companhia para a mãe doente em Nova Orleans, Peter deixa que a jovem passe as manhãs e as tardes em seu magnífico apartamento de rico junto do Central Park. A moça fica lá o dia inteiro, enquanto Peter trabalha em seu escritório.
Quando o filme está com uns 16 minutos, Iris chega de volta de Nova Orleans. Peter e ela chegam ao apartamento no final da tarde – e encontram Nanny pendurada, no que tem toda a aparência de suicídio.
Chega a polícia, na figura do tenente detetive Bruce – o papel de George Raft, que tantas e tantas e tantas vezes interpretou gângsteres. A soma de 1 + 1 é imediata: o ricaço senhor teve um caso com a moça, a moça se apaixonou, mas ele era casado, e a moça, desesperada, se matou.
Algum tempo depois, a autópsia mostra que a) a moça estava grávida e b) a moça não se matou, foi assassinada, asfixiada, e depois colocada pendurada para simular suicídio.
A nova soma de 1 + 1 da polícia é imediata: o ricaço senhor teve um caso com a moça, a moça se apaixonou, ficou grávida, o ricaço senhor a matou.
E o tempo todo o espectador sabe muitíssimo bem que Peter Denver não teve caso algum com Nanny. Simpatizou com ela, teve pena dela, deixou-se usar por ela. Seu único crime foi não ter desconfiado de que aqueles favores todos que fez à moça o colocariam numa situação delicada. Seu único crime foi ter feito favores à moça – e ter sido pouco atento, pouco vigilante. Ingênuo, bobo.
Dois casais amigos morando no mesmo prédio
Surgirão novos dados, novas informações, novas revelações.
A viúva negra não era a jovem alpinista social que transformou a vida de Peter Denver em um inferno.
O filme mostra Peter e Iris como um belo casal. É visível desde o início que os dois se amam, se respeitam, se entendem. Têm confiança um no outro. É no mesmo dia em que Iris embarca para estar com a mãe em Nova Orleans que Peter fica conhecendo a moça Nanny. Ao telefone, ele conta para a mulher que saiu para jantar com uma jovem que havia conhecido.
Mais tarde ficamos sabendo que o casal já havia enfrentado uma crise: Iris havia conhecido outro homem, se apaixonara. O caso acabou, Peter e Iris se reaproximaram, suplantaram completamente a crise. Casal que enfrenta essa barra e vai em frente é porque é um belo casal, é uma relação boa, profunda, firme.
Iris é uma atriz famosa – mas a fama da mulher não causa problemas a Peter. Afinal, ele é um produtor muitíssimo bem sucedido – não tem por que se sentir inseguro com o fato de a mulher ter fama, reconhecimento.
Os dois são amigos de outro casal em que a mulher também é uma atriz famosa. Ela se chama Carlotta Marin, e é uma grande estrela da Broadway. Na verdade, está trabalhando na companhia dirigida por Peter – em um diálogo, Peter diz que é o patrão de Lottie, como todos a chamam. Lottie é muito próxima de Iris, mas, segundo diz o próprio Peter, na verdade não gosta muito dele.
Lottie Marin é o papel de Ginger Rogers (na foto abaixo). Uma grande estrela do cinema interpretando uma grande estrela do teatro.
Diferentemente do casal Peter & Iris, que se tratam de igual para igual, no entanto, Lottie é a figura que domina o casamento com Brian Mullen (Reginald Gardiner). Ela é que ganha o dinheiro, ela é que toma as decisões. Brian se acostumou a ser a figura secundária – ao ponto de muitas vezes ser chamado de sr. Marin.
Lottie e Brian vivem no mesmo prédio de ricos de Peter e Iris.
Ginger Rogers ganhou o privilégio do first billing
Ginger Rogers, Van Heflin, Gene Tierney, George Raft. Esta é a ordem em que os nomes dos atores aparecem nos créditos iniciais e nos cartazes do filme da época do lançamento.
A ordem com que os nomes aparecem nos créditos e nos cartaze era algo importantíssimo, no cinema de Hollywood, desde sempre. A rigor, continua sendo até hoje. Muitas vezes essa ordem não reflete a importância dos papéis interpretados pelos atores – espelha muito mais a fama dos astros, a cotação dos astros como apelo para que os espectadores compareçam à bilheteria dos cinemas.
Peter Denver, o personagem de Van Heflin, é sem dúvida alguma o mais importante da história, é o que está mais tempo na tela. É em torno dele que os fatos principais se dão. Mas os produtores quiseram agradar Ginger Rogers e deram a ela o chamado first billing, o nome no alto, o primeiro nome nos créditos. Consta que a atriz chegou a pensar em desistir de fazer o papel da estrela de teatro que se julga o centro do mundo. Nunnally Johnson teve que escrever uma carta para ela, argumentando que só ela poderia pegar aquele papel relativamente menor e transformá-lo no mais importante do filme.
Ginger Rogers, Van Heflin, Gene Tierney, George Raft. Os quatro nomes aparecem antes do título do filme, nos créditos iniciais – e só depois do título, em corpo bem menor, é que aparecem os nomes de Peggy Ann Garner, que faz a jovem alpinista social, e de Reginald Gardiner, que faz Brian Mullen, o marido de Lottie. A rigor, a rigor, os seis papéis têm basicamente a mesma importância na trama.
A história faz lembrar muito a de A Malvada
O universo do grande teatro americano, produtores e atores dos teatros da Broadway. Uma grande diva do teatro, interpretada por uma grande estrela do cinema. E uma jovem ambiciosa que faz de tudo para subir na escala social.
Tudo isso faz lembrar demais – é claro, é óbvio – outro filme mais ou menos da mesma época, por coincidência produzido pelo mesmo estúdio, a 20th Century Fox. All About Eve/A Malvada, a obra-prima que Joseph L. Mankiewicz lançou em 1950 é sobre Eve (Anne Baxter), uma jovem que se apresenta toda humilde como fã absoluta da grande estrela Margot Channing (Bette Davis) – e só depois de um bom tempo, bem mais da metade dos 138 minutos de grande cinema, é que o filme começa a mostrar de fato a que veio.
É interessante notar a cronologia. A Malvada é de 1950. O livro Black Widow é de 1952. O filme é de 1954.
O livro The Films of 20th Century Fox comete um errinho na sinopse do filme: diz que a mulher do produtor de teatro muitas vezes sai de casa para deixá-lo “por causa do seu jeito mulherengo”. Bobagem, não é absolutamente nada disso; é mostrado no filme que Peter Denver não é mulherengo, e é apaixonado pela mulher e fiel a ela. O livro conclui que “as atuações cheias de estilo fazem do filme um sofisticado quem-matou”.
Cada cabeça, uma sentença. Acontece muitas vezes de eu achar um determinado filme uma porcaria, e ele ser considerado uma obra-prima por um outro cara, e vice-versa. É assim, e tem que ser assim, e que maravilha que é assim. Leonard Maltin, o cara que mais vendeu guias de filmes nos tempos em que guias de filmes eram vendidos, deu 2 estrelas em 4 e sintetizou o filme assim:
“O produtor da Broadway Heflin coloca a jovem escritora Gardner sob suas asas, e é naturalmente suspeito quando ela aparece morta em seu apartamento. Brilhante mas monótona adaptação do mistério de Patrick Quentin, com atuações admiravelmente pobres de Rogers como um estrela maldosa e Raft como detetive persistente. Johnson também produziu e escreveu o roteiro. CinemaScope.”
Um autor diz que as atuaçõs são cheias de estilo, outro diz que as atuações são admiravelmente pobres.
Pauline Kael, chata que nem resfriado, diz que “nada nesse filme é remotamente crível, mas nada pretende ser, também” – e, remando contra o que diz Leonard Maltin, garante que “Ginger Rogers, que de alguma maneira está mais carnuda do que se poderia esperar, domina o filme de uma maneira muito interessante”.
Já o Guide des Films de Jean Tulard fala bem de La Veuve Noir: “Inspirado em Patrick Quentin (Fatal Woman), um whodunit (quem matou?) muito sofisticado. O elenco é brilhante, assim como a encenação.” Eu, aqui no meu cantinho, concordo com o Guide: são belas atuações desses grandes atores.
Anotação em junho de 2019
A Viúva Negra/Black Widow
De Nunnally Johnson, EUA, 1954.
Com Van Heflin (Peter Denver), Gene Tierney (Iris Denver), George Raft (tenente detetive Bruce), Ginger Rogers (Lottie Marin), Reginald Gardiner (Brian Mullen, o marido de Lottie), Peggy Ann Garner (Nanny Ordway), Virginia Leith (Claire Amberly, a amiga de Nanny), Otto Kruger (Gordon Ling, o tio de Nanny), Cathleen Nesbitt (Lucia Colletti, a diarista dos Denver), Skip Homeier (John Amberly, o irmão de Claire), Hilda Simms (Anne)
Roteiro Nunnally Johnson
Baseado no romance de Hugh Wheeler, sob o pseudônimo de Patrick Quentin
Fotografia Charles G. Clarke
Música Leigh Harline
Montagem Dorothy Spencer
Produção Nunnally Johnson, 20th Century Fox.
Cor, 95 min (1h35)
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Titulo na França: La Veuve Noir.
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