(Disponível no Cine Antiqua do YouTube em 9/2021.)
Uma das características interessantes de O Tempo Não Apaga/The Strange Love of Martha Ivers, drama pesado de 1946, é que não há propriamente mocinho na história. Não há ninguém imaculado. Muito antes ao contrário.
Produção bem cuidada da Paramount, o filme tem um ótimo elenco – Van Heflin, Barbara Stanwyck e Lizabeth Scott aparecem nos créditos iniciais nessa ordem, antes do título, e também nos cartazes originais. Só depois do título vem o nome de Kirk Douglas, então um ator estreante – detalhe que por si só já torna o filme interessante. Mais tarde, para o relançamento do filme, foram criados cartazes em que Kirk Douglas aparece ao lado de Barbara Stanwyck, com seu nome acrescentado aos outros três.
E ainda há Judith Anderson, aquela atriz com o physique du rôle perfeita para fazer megeras, como a Mrs. Danvers de Rebecca, a Mulher Inesquecível de Alfred Hitchcock (1940).
O diretor é Lewis Milestone (1895-1980), já então experiente e veterano, realizador de filmes importantes (Sem Novidades no Front, 1930, Até o Último Homem, 1951, Os Bravos Morrem de Pé, 1959).
O roteirista tem mais admiradores que o diretor. É Robert Rossen (1908-1966), o realizador de grandes obras, como A Grande Ilusão (1949), um filme político de uma época em que não eram comuns os filmes políticos nos Estados Unidos, Lilith (1964), um filme à frente do seu tempo, sobre sexo, obsessão, loucura e referências ao mito de Lilith, que teria sido a primeira mulher de Adão, e Desafio à Corrupção/The Hustler (1961), o filmaço sobre o mundo do bilhar que se tornou um cult.
A história em que o roteiro se baseia é de John Patrick (1905-1995), um dramaturgo, escritor e roteirista prolífico, autor de dezenas e dezenas de obras. Patrick foi indicado ao Oscar pela melhor história original – a única indicação do filme aos prêmios da Academia.
Não me pareceu um grande filme este The Strange Love of Martha Ivers. Mas tem – como a imensa, avassaladora maioria dos filmes dos anos de ouro de Hollywood – diversas características interessantes. Bastaria a beleza ofuscante de Lizabeth Scott para valer a pena vê-lo. Lizabeth Scott fez 31 filmes na vida, entre 1945 e 1972, metade deles filmes noir; parece ter vindo ao mundo para trabalhar em dramas com clima denso, tenso, pesado; se eu pudesse, gostaria de ver e rever todos os 31 filmes dela.
Mas ainda mais ofuscante que a beleza da loura é Barbara Stanwyck, essa atriz absolutamente extraordinária, que ousou fazer todo tipo de papel que desafiava abertamente os padrões morais caretas, puritanos dos Estados Unidos nos anos 30 a 50.
Eu jamais conseguiria ver todos os filmes de La Stanwyck – ela tem mais de 100 títulos na filmografia, dos quais talvez uns 15 sejam séries de TV, que ela fez a partir de 1956 e até 1986. Mas seria um belo projeto, ver todos os mais de 80 filmes de Barbara Stanwyck. Ah, lá isso seria.
Uma menina riquíssima e dois garotos antípodas
Embora ela seja a Martha Ivers do título original, Barbara Stanwyck só surge na tela quando o filme está com exatos 30 dos seus um tanto longos 116 minutos. The Strange Love of Martha Ivers é daquele tipo de filme que mostra os principais personagens ainda muito jovens, adolescentes, quase crianças – e então há um corte de diversos anos, e o espectador vê aqueles personagens já adultos.
Se fosse feito hoje, ou a partir dos anos 80, 90, provavelmente usaria o esquema que chamo de narrativa laço, e tem o nome chique de in mídia res, no meio das coisas – a técnica em que a narrativa começa no meio da história, em vez de no início, e depois volta atrás no tempo. Em 1946, essa coisa ainda não era moda, e então, durante os primeiros 16 minutos do filme, vemos fatos do passado.
Um grande letreiro, logo após os créditos iniciais, avisa o espectador o onde e o quando: “Iverstown, 1928”. Um plano geral de uma pequena cidade mostra que a maior indústria do lugar se chama Ivers. A cidade fictícia de Iverstown tem o nome da família mais rica do lugar – e isso é algo que ao menos uma dezena de filmes americanos já mostrou.
O que vemos nestes primeiros 16 minutos de filme, em sequências passadas em 1928, é basicamente o seguinte:
A sra. Ivers (o papel de Judith Anderson) é então a única dona da grande fábrica, a maior indústria da cidade. Deve seguramente ter herdado a fortuna e a fábrica do pai, já morto. Não tem filhos – tem apenas uma sobrinha, garota aí de uns 12 anos, Martha (Janis Wilson, na foto acima), filha de sua irmã, já morta, assim como seu cunhado. A milionária tem nojo do cunhado, segundo ela um bêbado imprestável, e muita dó da irmã, que cometeu o erro de se casar com ele. Tenta criar bem a sobrinha que sobrou para ela, e Martha tem um tutor, Mr. O’Neil (o papel de Roman Bohnen).
A questão é que Martha detesta a tia, detesta a mansão em que vivem, e sonha em fugir de tudo aquilo, em companhia de Sam Masterson (Darryl Hickman), um garoto independente, aventureiro, por quem é absolutamente fascinada.
Martha não apenas sonha em fugir, mas tenta – só que é sempre alcançada pela polícia e devolvida à tia que odeia. Na primeira sequência do filme, ela está escondida em um vagão de carga de um trem, onde combinou de se encontrar com Sam.
Trem de carga, fugir de casa num trem de carga, como os hobos dos anos 30 das canções de Woody Guthrie e depois de seus seguidores do boom da folk music do final dos anos 50 e todos os 60. Isso é uma tradição da cultura americana tão forte quanto as famílias ricas que possuem metade da pequena cidade do interior.
Mas aí tergiversei um pouco.
O tanto que a adolescente Martha tem de falta de ambição, de dar pouca importância a dinheiro, posses, seu tutor tem exatamente do contrário. Tudo o que ele sonha na vida é se aproveitar da proximidade da sra. Ivers para garantir um futuro bom para si mesmo e para seu filho,
Walter (Mickey Kuhn), garoto da mesma idade de Martha e Sam.
Opostos, antípodas. Assim como a jovem Martha não tem ambições relacionadas a dinheiro e o O’Neil pai tem, e em quantidades industriais, o O’Neill filho é o oposto do independente, aventureiro Sam: é um garotinho todo caretinha, bem comportado, bem vestido.
Ali pelos 14 minutos de filme acontece uma tragédia.
Aos 16, há o corte no tempo, e um letreiro nos avisa que estamos em 1946. O ano de lançamento do filme. O primeiro ano após o final da Segunda Guerra Mundial. Os Estados Unidos são agora uma grande potência econômica – mas milhares e milhares de americanos, combatentes durante a guerra, voltaram para casa desiludidos, deprimidos com todo o horror que viram e viveram. Esse quadro de prosperidade econômica num ambiente de desilusão de milhares e milhares – perfeitamente mostrado numa obra-prima daquele mesmo ano de 1946, Os Melhores Anos de Nossas vidas, de William Wyler – é o pano de fundo de muitos filmes noir. E também deste The Strange Love of Martha Ivers, que muita gente classifica de noir.
Um clima de desencanto, de podridão
Primeiro 1928, depois 1946. Uma diferença de 18 anos. Esse período de tempo, 18 anos, é várias vezes citado no filme.
Sam Masterson (agora interpretado por Van Heflin, então no auge da carreira) vai parar em Iverstown, a cidade em que nasceu e cresceu, por absoluto acaso. O filme mostra isso, deixa isso absolutamente claro. Estava viajando para o Oeste do país – não se fala exatamente para onde –, quando se descuidou no volante e bateu o carro numa árvore. O carro ainda podia andar, mas estava com o pára-choque arrebentado e havia problema no radiador. Precisava de uma oficina, e a cidade mais próxima – essas coisas acontecem mesmo, tanto na ficção quanto na vida real – era Iverstown.
Também por acaso, por mero acaso, lá Sam fica logo conhecendo uma mocinha linda de morrer, Toni Marachek (o papel de Lizabeth Scott, na foto acima).
Toni é uma moça bastante misteriosa. Vai levar bastante tempo para o espectador saber que ela está em liberdade condicional – havia assaltado um banco!
O que não demora nada é Sam ficar sabendo que seu amigo de adolescência Walter O’Neil é agora o promotor da cidade, candidato a um novo mandato. E está casado com Martha Ivers, a única herdeira da fortuna da família, que, durante aqueles 18 anos, havia dobrado o tamanho da fábrica e decuplicado o número de operários.
Martha, que havia passado a gostar de dinheiro e posses, é o papel, naturalmente, de Barbara Stanwyck. Walter, que havia passado a gostar demais de álcool, é o papel do estreante Kirk Douglas.
Como em 99% dos filmes italianos, neste americaníssimo melodramão o rico e poderoso casal – A Industrial e O Promotor – é tremendamente infeliz. O casamento é um arranjo, apenas, Martha não ama o sujeito que é bêbado que nem seu pai e o pai de Sam.
E é claro que, assim que revê o amor da adolescência, Martha fica doidinha por Sam Masterson.
Uma mulher casada apaixonada por outro homem – mais um dos tantos e tantos papéis nada convencionais, arrojados, desafiadores da moral careta e do Código Hays que Barbara Stanwyck colecionou ao longo da vida.
E então temos que os quatro personagens centrais deste O Tempo Não Apaga não são assim propriamente bonzinhos, mocinhos imaculados.
Walter O’Neil é um fraco, um bêbado, um desacerto, que só conseguiu ser alguma coisa na vida graças à força e à influência da mulher.
Martha Ivers tem uma mancha pesadíssima em seu histórico, desde a tal tragédia que acontece quando o filme está com uns 14 minutos. Mais uma outra pesadíssima que se acrescentou à primeira, e que ela divide igualmente com Walter.
A bela lourinha, diabo, assaltou um banco!
E o protagonista da história, esse Sam Masterson que voltou da guerra com uma ficha impecável, é um jogador, uma profissão que não é assim propriamente muito fina.
Personagens problemáticos, envolvidos com sujeira, alguns com sujeira bem feia. Um clima de desencanto, de podridão.
Um filme noir.
Emocionante, agradável, lustroso…
Leonard Maltin deu 3 estrelas em 4: “Emocionante melodrama, com Stanwyck ligada a seu marido por (aqui ele usa palavra que a rigor é spoiler) que ela cometeu muito tempo atrás. Estréia de Douglas.”
O filme não mereceu constar da edição brasileira do livro 5001 Nights at the Movies de Pauline Kael, que foi simplificada para 1001 Noites no Cinema, e então sobra para mim a tarefa enfrentar o texto da prima donna da crítica americana.
Hummmm… Ela revela qual é a tal tragédia que eu preferi não explicitar. Não vou incluir o spoiler – corto fora a frase.
Diz ela mais ou menos assim:
“Agradável e lustroso melodrama que chega a ferver. No início, a temperamental adolescente impede que sua tia rica e sádica mate seu gatinho com uma bengala (…..). Lamentavelmente para Martha, um par de seus amigos, ambos garotos, estão na casa quando (a coisa acontece). O Garoto Um (que Martha ama) deixa a cidade e vira Van Heflin, um jogador. O Garoto Dois, um tipinho de óculos que parece uma ovelhinha, fica por ali, casa-se com Martha (Barbara Stanwyck) e vira Kirk Douglas, o promotor da cidade. Robert Rossen, que escreveu o roteiro a partir de uma história de John Patrick, sabia como agarrar a audiência, e o diretor, Lewis Milestone, sabia como segurá-la.”
O Guide des Films de Jean Tulard gostou bastante de L’Emprise du Crime, como o filme se chamou na França. “Um protótipo de filme noir com femme fatale e promotor covarde (extraordinária composição de Douglas, então estreando). Lancinante música de Rosza com a canção ‘Strange Love’.”
Diabo: não reparei na canção! Claro, reparei na trilha sonora – sinfônica, pesada, grandiosa, como era o estilo do grande Miklos Rosza (1907-1995), o húngaro que se radicou em Hollywood nos anos 30 e compôs músicas para quase cem filmes, inclusive as obras-primas Pacto de Sangue (1944), Farrapo Humano e Quando Fala o Coração (ambos de 1945) e Ben-Hur (1959).
É isso. Mesmo quando não são grandes, nem sequer muito bons, os filmes da época de ouro de Hollywood são fascinantes.
Anotação em setembro de 2021
O Tempo Não Apaga/The Strange Love of Martha Ivers
De Lewis Milestone, EUA, 1946.
Com Van Heflin (Sam Masterson),
Barbara Stanwyck (Martha Ivers),
Lizabeth Scott (Toni Marachek),
Kirk Douglas (Walter O’Neil, o marido de Martha)
e Judith Anderson (Mrs. Ivers, a tia de Martha), Roman Bohnen (Mr. O’Neil, tutor de Martha e pai de Walter), Darryl Hickman (Sam Masterson adolescente), Janis Wilson (Martha Ivers adolescente), Mickey Kuhn (Walter O’Neil adolescente), Ann Doran (secretária), Frank Orth (funcionário do hotel), James Flavin (primeiro detetive), Charles D. Brown (investigador especial), Matt McHugh (o motorista de ônibus), Walter Baldwin (Dempsey, o dono da garagem)
Roteiro Robert Rossen
Baseado no conto “Love Lies Bleeding”, de John Patrick
Fotografia Victor Milner
Música Miklos Rozsa
Montagem Archie Marshek
Direção de arte Hans Dreier, John Meehan
Figurinos Edith Head
Produção Hal B. Wallis, Paramount Pictures.
P&B, 116 min (1h56)
**1/2
Título na França: L’Emprise du Crime. Em Portugal: O Estranho Amor de Martha Ivers.
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