Rachel e o Estranho / Rachel and the Stranger

Nota: ★★½☆

Anotação em 2010: Eis aí um filme fascinante, interessantíssimo, porque aborda um tema que absolutamente não é comum: a vida doméstica, pessoal, afetiva de conquistadores do Oeste, e o papel da mulher dentro de casa. Mais ainda: fala de compra de esposa, como se a mulher fosse uma escrava.

Não é propriamente um grande filme. As situações são bastante forçadas, quase ridículas; há um tom de inocência, de ingenuidade, que é extremamente pouco usual. É, digamos assim, um western naïf, com um tom suavemente bem humorado, quase cômico – embora não seja, de forma alguma, uma comédia. Mas talvez por isso mesmo, e também pelo tema incomum, e pela presença de três astros de primeira linha no elenco, é de fato um filme fascinante.

E é também bastante obscuro – acho que dá para afirmar isso. Eu nunca tinha ouvido falar nele; sei que isso não é garantia de que o filme seja obscuro, pouco conhecido, mas há outros indícios. Embora os protagonistas sejam Loretta Young, William Holden e Robert Mitchum, o diretor é menos famoso, Norman Foster; e é uma produção quase B, de um estúdio menor, o RKO.

Mais um detalhe interessante: feito em 1948, seis anos antes de Johnny Guitar, de Nicholas Ray, provavelmente o western mais estranho que existe, em que a principal trama é uma luta entre entre duas mulheres, este Rachel e o Estranho abre com um cavaleiro – Jim Fairways, o papel de Robert Mitchum – bem armado mas que canta e toca violão.

         Uma casa sem a dona, em completo desarranjo

Uma sinopse, então. No meu estilo, com uma descrição do que acontece nos primeiros minutos, mas de qualquer forma uma sinopse.

Como faz de tempos em tempos, Jim Fairways, caçador, andarilho, homem que luta e cavalga só, está chegando, com sua espingarda e seu violão, à propriedade do amigo David Harvey, que todos conhecem por Big Davey – o papel de William Holden. Big Davey se estabeleceu naquele lugar faz muitos anos, onde tem um pequeno rebanho e uma pequena plantação. Jim primeiro encontra Little Davey, o filho, garoto aí de uns oito, dez anos (Gary Gray), que conta ao visitante que Susan, sua mãe, está morta faz alguns dias, e desde então o pai não faz coisa alguma, só senta diante do túmulo da mulher e fica lá o dia inteiro.

Assim como parece que já havia feito dezenas de outras vezes, Jim fica na casa de Big Davey umas poucas horas, e vai embora, continuar sua eterna peregrinação de homem sem raízes. Pai e filho, sozinhos, sem a mulher, estão com a vida virada de pernas pro ar; a casa está um desarranjo completo, tudo sujo, tudo fora do lugar, galinha em cima da cama. As tarefas da fazenda, os cuidados com os animais, também vão de mal a pior.

Mas é ao ver que o filho anda rasgando páginas do livro em que deveria estar estudando aritmética que Big Davey toma a decisão: vai empreender a viagem até o forte da Cavalaria – que é o lugar civilizado mais próximo de seu rancho, a várias horas de cavalgada – atrás de uma nova mulher para cuidar da casa, dos animais e da educação do garoto.

No forte, Big Davey procura o reverendo Jackson (Tom Tully), conta sobre a morte de Susan e lhe expõe o problema.

         Uma rápida negociação para a compra da esposa

O reverendo Jackson é rápido como uma flecha: tem ali o Green, diz ele, que possui uma serva, e o filho dele já se casou, e portanto Green não precisa mais dela. Que tal ir à casa de Green propor negócio? Big Davey topa, um tanto inseguro, mas topa, e o pastor Jackson dá ordem para a sra. Jackson ir junto: “Envolve coisa com mulher, é melhor você vir também”, diz ele.

A negociação não é demorada – e se dá na presença do objeto que está sendo comercializado, Rachel (o papel de Loretta Young). Baixinho, mas absolutamente audível em toda a sala, Big Davey pergunta a idade do objeto, e Green responde: “25 anos”, ao que a sra. Green completa que “a saúde dela é ótima”. Ao que o sr. Green, talvez para não ser acusado de tentar vender gato por lebre, especifica: “É, mas ela fala sozinha”.

São US$ 18,00 à vista e U$ 4 mais tarde, diz Green.

Interessante, porque em geral a entrada é menor que o restante do pagamento, mas é assim que a coisa é posta. Big Davey tenta barganhar, baixar o preço – não da entrada, mas o compromisso futuro; sugere US$ 3 em vez de US$ 4. Estabelece-se um certo impasse, que o despachado reverendo Jackson logo resolve: “Pague os US$ 4 e eu não lhe cobro nada pela cerimônia de casamento”.

Big Davey, já pouco à vontade na negociação talvez rápida demais para seus hábitos, arregala os olhos. Mas o reverendo Jackson é mesmo rápido no gatilho: “Sim, porque a forma de um homem decente ter uma mulher em casa é com o sagrado sacramento do matrimônio.”

Não temos nem 15 minutos de filme e Big Davey casa-se com Rachel, em cerimônia celebrada pelo reverendo Jackson e assistida por todos os colonos que vivem no forte.

         Loretta Young era uma grande estrela, a mais importante do elenco

Rachel, então, tinha 25 anos. Loretta Young tinha 35, quando fez o filme, mas essa é uma pequena liberdade poética, vá. Gigantescos olhos azuis faiscantes, longos cabelos, lábios muito carnudos décadas e décadas antes de Angelina Jolie, Loretta Young era uma atriz veterana, e uma grande estrela. Aliás, eu não me lembrava disso, mas Loretta Young começou como atriz infantil: seu primeiro papel, embora sequer seu nome aparecesse nos créditos, foi em 1917 – ela nasceu em 1913, em Salt Lake City. Em 1948, ano em que o filme foi feito, já tinha no currículo 90 filmes; um ano antes havia sido a estrela do delicioso Um Anjo Caiu do Céu/The Bishop’s Wife, de Henry Koster, em que, casada, conforme diz o título original, com o bispo – interpretado por David Niven –, atrai todas as atenções do charmosíssimo anjo interpretado por Cary Grant que vem à Terra dar uma mãozinha na administração da paróquia.

Também em 1947, tinha feito Ambiciosa/The Farmer’s Daughter, e ganhado o Oscar por sua interpretação.

Talvez não tenha ficado absolutamente claro, e então insisto: a mulher era uma grande estrela, quando fez Rachel e o Estranho. Não é à toa que seu nome aparece nos créditos iniciais antes dos de William Holden e Robert Mitchum: naquela época (bem, continua assim até hoje), a ordem em que apareciam os nomes dos astros nos créditos iniciais seguia rigidamente não a importância dos personagens, mas dos atores.

“Do crepúsculo dos filmes mudos até o alvorecer da era de ouro da televisão, ela encheu de graça a tela com seu charme de dama, seus olhos líquidos, luminosos, brilhantes, em mais de cem filmes” – esta é a apresentação de Loretta Young no livro Leading Ladies, sobre as “50 mais inesquecíveis atrizes da era dos estúdios”.

Fez par com os maiores astros de seu tempo – Clark Gable, Tyrone Power, o já citado Cary Grant. Passou para a televisão nos anos 50, e seu The Loretta Young Show teve 18 temporadas de sucesso.

Uma grande estrela, uma bela mulher, uma grande atriz. Ficou menos conhecida nas últimas décadas, e por isso acho importante tentar estabelecer aqui seu status. O filme hoje pode ter um ar de B, mas sua estrela era de primeiríssima grandeza.

E os jovens William Holden e Robert Mitchum eram jovens, mas já experientes, também, e promissores – nos anos 50, estariam entre os maiores astros do cinema americano. Holden, nascido em 1918 – cinco anos mais jovem que Loretta, portanto – , já tinha 15 filmes no currículo. Mitchum, nascido em 1917, tinha feito cerca de 30 filmes.

         Um filme fascinante sobre o papel da mulher no Velho Oeste

Ou seja: só por ter esses três astros, este filme já mereceria ser visto.

Mas, além deles, ainda tem a trama fascinante, a coisa da esposa comprada – uma rara luz sobre como se tratavam as mulheres nos westerns, o mais tradicional gênero do cinema americano. Uma interessante luz sobre como o cinema americano pós Segunda Guerra, pré-feminismo, tratava as mulheres.

É de fato fascinante para todas as pessoas interessadas na evolução do papel da mulher na sociedade.

Depois de ver Appaloosa – Uma Cidade Sem Lei, de 2008, anotei, sobre Allison French, a personagem interpretada por Renée Zellweger:

“No machistíssimo mundo do western, não há muitos diferentes papéis para as mulheres. Basicamente, em geral, grosso modo, ou elas são santas ou são putas – ou então quase santas ou quase putas. Há as mulheres com que se casa, e há as mulheres com quem se trepa. Basta lembrar de Matar ou Morrer/High Noon, de Fred Zinnemann, de 1952: há Grace Kelly, quaker, religiosa, loura, vestida toda de branco, e há Katy Jurado, dona de saloon, morena, vestida toda de negro, ex-amante do bandido que agora volta à cidade, ex-amante de Kane, o xerife, hoje amante do auxiliar do xerife.

“Claro: há filmes como Johnny Guitar, de Nicholas Ray, de 1954, em que as personalidades mais fortes são duas mulheres, interpretadas por Joan Crawford e Mercedes McCambridge – mas este e alguns outros poucos filmes são a exceção que só serve para confirmar a regra.”

         Bondswoman – serva por dívida, escrava por dívida

Loretta Young então nos traz, neste Rachel e o Estranho, um outro tipo de mulher: a que é comprada.

Vou dar uma fuçada nos alfarrábios.

Ah: bondwoman, ou bondswoman. Eu não havia entendido a expressão usada no filme. Não se diz slave, servant. Se diz, vejo agora (a edição brasileira do DVD, pobrezinha, daquelas de empresas tipo pirata com CGC, da Wonder Multimídia, ou DVD Continental, não traz legendas em inglês), bondswoman – que significa exatamente a mesma coisa, escrava, servente, criada. Vem de bond – título, apólice, ação, debênture, obrigação. Bondswoman – serva por dívida, escrava por dívida.

É diferente – um pouco, embora no fundo seja quase a mesma coisa – da esposa encomendada, em geral por carta, tipo de coisa bastante usada pelos imigrantes. A maravilhosa Liv Ullmann fez o papel de uma noiva encomendada por carta, a mail-order bride, no filme A Esposa Comprada/Zandy’s Bride, de Jan Troell – por encomenda de um brutal personagem interpretado por Gene Hackman, ela sai dos países nórdicos diretamente para o Velho Oeste, e come o pão que o diabo amassou.

“Se os índios eram tratados como cidadãos de segunda classe em dezenas de westerns ao longo dos anos, o mesmo pode seguramente ser dito a respeito das mulheres”, resume, com brilho, na abertura de um capítulo dedicado às mulheres, o livro Great Hollywood Westerns, de Ted Sennett. Ô diabo. Vou transcrever parte do que ele escreve, porque é ótimo, é sério, tem tudo a ver com este filme aqui e é um tema importante que em geral não se aborda.

No western, diz então Ted Sennet no seu livrão, “as mulheres são em geral relegadas ao segundo plano. De uma maneira geral, elas são ou ‘boas’ (tenazes esposas e mães, recatadas namoradas, severas professoras) ou, se não ‘más’, no mínimo nada-melhores-do-que-deveriam-ser (dançarinas, señoritas mexicanas, rancheiras abertamente agressivas). Quando as mulheres ‘boas’ ficavam preocupadas, o que acontecia quase sempre, elas se preocupavam com a segurança de seus homens e famílias ou a ameaça dos índios, em vez dos problemas de construir impérios ou fundar dinastias. As mulheres ‘más’ acabavam mortas ou severamente castigadas. Pelo menos até a emergência dos ideais feministas, as mulheres nos westerns revelavam poucas variações ou complexidade.”

Bem falado.

         O filme se baseia em contos de Howard Fast

O livro se refere especificamente a este filme assim: “Em Rachel and the Stranger, de Norman Foster (1948), Loretta Young, como a bondswoman de um fazendeiro (William Holden), responde às atenções do amigo vagabundo dele (Robert Mitchum), o que faz com que Holden passe a ter uma nova visão da mulher que ele comprou apenas para cozinhar e ajudar a criar de seu filho” – e também para fazer todo o resto do trabalho na fazenda, seria necessário acrescentar.

Para o registro: o Cinemania só traz a rápida avaliação de Leonard Maltin, e ele dá 3 estrelas em 4: “O trio de astros está ótimo neste western em que o amor de um homem por sua mulher só é despertado quando o forasteiro Mitchum visita sua casa. Originalmente lançado com 93 minutos. Também mostrado em versão colorida por computador.”

A edição brasileira do DVD, embora pobrinha, como eu já disse, pelo menos é no preto-e-branco original, maravilhoso.

Já que estou com a mão na massa, pego o livro The RKO Story: “O roteirista Waldo Salt e o diretor Norman Foster misturaram comédia, drama, ação, cenários espetaculares e um número de canções incidentais numa ficção histórica chamada Rachel and the Stranger. Loretta Young estava especialmente efetiva como uma bondswoman de 1820 (olha aí o termo bondswoman; agora, que é 1820, não está dito hora alguma do filme, sequer implicitamente) comprada pelo fazendeiro Holden (emprestado da Paramount), para que seu filho órfão (Gary Gray) possa ser criado corretamente. Nem pai nem filho dão muita importância para ela, até que o feliz caçador Robert Mitchum vai visitá-los e se apaixona por ela. (…) A produção de Richard H. Berger, baseada nas histórias ‘Rachel’ e ‘Neighbor Sam’, de Howard Fast, foi um dos grandes sucessos do ano, com uma renda de US$ 395 mil.”

Epa! Duas coisas, aqui. Muito provavelmente o livro quis dizer que foi um dos grandes sucessos daquele estúdio, o RKO – não um dos maiores sucesso de bilheteria do ano. Mas a segunda coisa é que muito mais importante: não tinha visto em nenhum outro lugar que o filme se baseia em contos de Howard Fast (1914-2003). Vou tentar checar.

Checado. O Cinemania confirma a informação, inclusive com o nome dos contos. O iMDB apenas diz que a história é de Howard Fast. Ah, o AllMovie também confirma.

Estranho: não me lembro de ter lido o nome de Howard Fast nos créditos iniciais, e ele é um escritor de grande importância. Entre as dezenas de novelas que escreveu estão Spartacus, que deu origem ao filme de Stanley Kubrick, The Passion of Sacco and Vanzetti, a New England Legend, Sylvia, que virou o filme de mesmo nome, interessantíssimo, dirigido por Gordon Douglas em 1965, com Caroll Baker no papel central, Caminhos da Liberdade e Poder. (Os dois últimos, pelo menos, foram editados no Brasil, o primeiro pela Civilização Brasileira, o segundo pela Record.) Várias de suas obras foram adaptadas para o cinema.

E então é isso aí. Não chega a ser um grande filme – embora tenha três grandes estrelas, e se baseie em contos de um escritor muito importante. Pode até não ser propriamente obscuro, mas, no mínimo, é menos conhecido do que deveria. E é sem dúvida fascinante, interessantíssimo, por abordar temas pouco comuns nos westerns tradicionais. Uma surpresa bastante agradável – um filme que deveria ser visto inclusive por quem não é fã de westerns.

Rachel e o Estranho/Rachel and the Stranger

De Norman Foster, EUA, 1948.

Com Loretta Young (Rachel Harvey), William Holden (David Harvey), Robert Mitchum (Jim Fairways), Gary Gray (Little Davey), Tom Tully (Pastor Jackson), Sara Haden (Mrs. Jackson), Frank Ferguson (Mr. Green), Walter S. Baldwin (Gallus), Regina Wallace (Mrs. Green)

Roteiro Waldo Salt

Fotografia Maury Gertsman

Música Roy Webb

Montagem Les Millbrook

Produção RKO

P&B, 93 min; há versão cortada para 79 min

**1/2

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