Pão, Amor e… / Pane, Amore e…

2.0 out of 5.0 stars

Pão, Amor e…, comédia italiana de 1955, é uma danada de uma bobagem. A rigor, bem a rigor, uma porcaria. Engraçada pra cacete, é verdade. Para quem gosta de filmes, é uma delícia, uma gostosa brincadeira, cheia de nomes importantes, cercada por muitas histórias.

Nos papéis principais, estão dois dos nomes mais importantes não apenas do cinema italiano, que na época era indiscutível e simplesmente o melhor do mundo, mas de toda a História do cinema, Vittorio De Sica e Sophia Loren. Com o detalhe delicioso de que trabalhavam juntos diante das câmaras, como um par romântico, o diretor e a estrela que presentearam o mundo com um impressionante conjunto de filmes – inclusive o drama pesado, denso, Duas Mulheres/La Ciociara (1961) que deu a ela o Oscar de melhor atriz, e a hilariante comédia Ontem, Hoje e Amanhã (1965), Oscar de melhor filme estrangeiro.

Algo mais ou menos assim como imaginar que Alfred Hitchcock e Grace Kelly fossem os atores de um filme dirigido por um outro realizador qualquer.

Bem, não era um outro realizador qualquer: era Dino Risi, “o príncipe da comédia italiana”, na definição de Jean Tulard em seu Dicionário de Cinema – Os Diretores. “Não nos aborrecemos jamais com Risi”, sentenciou o crítico e estudioso.

Dino Risi (1916-2008) é o autor de Il Sorpasso, no Brasil Aquele Que Sabe Viver, um dos grandes clássicos do início dos anos 60, um daqueles filmes que marcaram toda uma geração mundo afora, e de Perfume de Mulher, aquela beleza que os americanos refilmariam décadas depois, dando a Al Pacino o Oscar pela interpretação do oficial cego que no original foi o papel de Vittorio Gassman.

Em 1955, estava ainda em começo de carreira. Havia dirigido vários curta-metragens; naquele mesmo ano, dirigiu a dupla Vittorio De Sica-Sophia Loren em uma outra comedinha, O Signo de Vênus, seu terceiro longa. Este Pão, Amor e… foi o quarto.

Estava, então, com 39 anos. Sophia tinha ridículos 21 aninhos de idade, mas já era veterana: entre 1950 e 1955, fez nada menos que 30 filmes.

Vittorio De Sica tinha 54 anos, exatos 33 a mais que Sophia – e essa diferença de 30 anos entre o mocinho e a mocinha da comédia romântica é citada mais de uma vez ao longo do filme. Numa sequência especialmente interessante, alguém se refere a Sophia, a personagem de Sophia, como sendo filha de Antonio Carotenuto, o personagem de De Sica – e naquele momento eles estavam teoricamente se preparando para anunciar seu noivado.

Mas o fantástico da história não é que o ator principal do filme fosse 34 anos mais velho que a atriz, ou mais velho que o diretor então iniciante.

O fantástico é ver, como protagonista dessa comedinha romântica bobinha, um filmezinho escapista, o sujeito que havia sido um dos maiores realizadores do neo-realismo italiano. O movimento mais importante e mais influente que já houve no cinema, que influenciou a nouvelle-vague francesa, o novo inglês do início dos anos 60, o cinema novo brasileiro, o cinema iraniano dos anos 90, a renovação do cinema romeno já neste século.

Vittorio de Sica, é preciso lembrar, havia realizado filmes fundamentais como Vítimas da Tormenta (1946), Ladrões de Bicicleta (1948), Milagre em Milão (1951), Umberto D. (1952). No ano seguinte, realizaria a obra que talvez seja a mais minimalista do neo-realismo, O Teto.

Um realizador de obras sérias, pesadas, densas – mas que se divertia trabalhando como ator em filmes dos outros. Nisso ele tem muito a ver com o mais aventureiro de todos os grandes realizadores, o americano John Huston. Com a diferença de que Huston trabalhava muitíssimo a sério como ator – como em Chinatown (1974) e O Vento e Leão (1975). De Sica, bem ao contrário, como ator parecia que só queria mesmo se divertir: era um danado de um canastrão!

Um filme que foge do realismo, da realidade

A característica mais marcante deste Pane, Amore e…, na minha opinião, é que todo o filme é encenado da forma mais distante possível de algo que se pareça, ainda que de longe, com a realidade. O roteiro de Ettore Maria Margadonna e a direção de Dini Risi fogem do realismo, do naturalismo, como o diabo da cruz, o vampiro do cheiro de alho, os políticos populistas tanto de esquerda quanto de direita da verdade dos fatos. Cada diálogo, cada entonação de voz dos atores, cada postura deles é feita para não parecer real ou próximo da realidade.

É tudo feito para parecer uma grande farsa. É tudo farsesco, tudo virulentamente anti-realista.

E isso é fascinante, quando levamos em consideração que o cinema italiano havia, desde o final da Segunda Guerra, em 1945, mergulhado no realismo, na dureza do realismo, na coisa pesada de se mostrar aquele país em ruínas após a derrota, após os anos atrozes de fascismo.

Pane, Amore e… pode ser entendido como um grito de rebeldia não exatamente contra o neo-realismo, mas contra a dureza, a tristeza, o horror daquela realidade em que o país estivera mergulhado.

Algo assim como a louquíssima distância da realidade, o namoro com o surrealismo mais insano do maravilhoso filme georgiano Os 27 Beijos Perdidos (2000), uma vingança furiosa contra os anos todos do realismo socialista do stalinismo.

Nessa fuga do realismo, fica então perfeito o jeito canastrão de De Sica, as maneiras antinaturais, inteiramente artificiais, da santinha signora Violante Ruotolo (o papel de Lea Padovani). Fica até admissível a absoluta falta de qualquer coisa parecida com talento de um tal de Antonio Cifariello, que faz o papel de Nicola Pascazio, o bonitão que paquera Sophia-Sophia Loren, a vendedora de peixe.

A trama é uma bobagem só…

Mas aqui seria preciso uma sinopse, ainda que mínima. Um resumo da história, da trama. Só que, diabo, a história, a trama, é uma absoluta asneira…

É mais ou menos assim:

Antonio Carotenuto, marechal dos carabinieri (o papel De Sica), acaba de se aposentar, em uma cidade interiorana, e está de mudança para sua cidade natal de Sorrento, na região de Nápoles, debruçada sobre aquele azul mediterrâneo como não há outro. Leva com ele sua governanta, Caramella (Tina Pica).

O prefeito de Sorrento o havia convidado para assumir a chefia da polícia da cidade, e ele é muitíssimo bem recebido por todos – em particular pelo irmão, o padre Don Matteo (Mario Carotenuto).

Mas há um problema: o apartamento que pertence a Antonio, de frente para o mar, está ocupado agora por Sophia-Sophia Loren, uma jovem lindérrima, de beleza de fechar o comércio, que vende peixes na rua. Diante disso, Don Matteo arranjou para que o irmão ficasse hospedado, nos primeiros dias do retorno, na casa de uma das maiores beatas da comunidade, Violante Ruotolo (o papel, como já foi dito, de Lea Padovani).

O marechal aposentado, agora comandante da polícia de Sorrento, vai se engraçar, é claro, pela jovem de beleza fenomenal. Sophia tem no entanto um caso enroscado com um garotão tão belo quanto bobo, o tal Nicola Pascazio.

Para não ser expulsa do maravilhoso apartamento de Antonio, Sophia finge que estará disposta a ser cortejada pelo coroa, embora esteja mesmo é interessada no garotão.

É. Essa é a trama de Pane, Amore e…

Fascinante, não?

Agora, por que raios a jovenzissima Sophia vendedora de peixes conseguiu ficar morando no extraordinário apartamento pertencente à família do padre da paróquia e do carabinieri que chegaria a marechal… Ah, isso não se explica, de forma alguma.

E tem algum problema em não explicar? Não é um filme realista, cacete! É só uma comedinha romântica, Italian way, que quer distância de pobreza, problemas, que nem o diabo da cruz, o vampiro do cheiro de alho, os políticos populistas tanto de esquerda quanto de direita da verdade dos fatos.

Este é o terceiro filme de uma tetralogia

Eu me lembrava, de forma muito vaga, de ter ouvido falar em Pão, Amor e Fantasia. Quando Mary me disse que tinha visto que estava na Netflix um filme chamado Pão, Amor e…, com Vittorio De Sica e Sophia Loren, claro que quis ver. A lembrança vaguíssima do nome Pão, Amor e Fantasia naquele momento não me dizia nada.

Foi só depois de ver essa danada dessa bobagem, esse filme engraçado e fascinante que é Pane, Amore e… que fui fazer uma pesquisinha.

Pane, Amore e… é a terceira parte de uma tetralogia!

Houve nada menos que quatro filmes com esse marechal Antonio Carotenuto interpretado por Vittorio De Sica!

O primeiro, Pão, Amor e Fantasia (1953), foi dirigido por Luigi Comencini, com argumento e roteiro assinados pelo diretor e Ettore Maria Margadonna. A sinopse no IMDb conta que o veterano marechal Antonio Carotenuto é enviado para uma pequena cidade e se apaixona ao mesmo tempo por duas mulheres: uma parteira (interpretada por Marisa Merlini) e uma jovem de beleza estonteante – o papel de Gina Lollobrigida!

O filme teve indicação ao Oscar de melhor roteiro.

O segundo filme da tetragologia, Pão, Amor e Ciúme (1954), também teve direção de Luigi Comencini; a história de novo era de Comencini e Margadonna, e, pela sinopse do IMDb, é uma continuação mesmo do primeiro. O marechal continuava na mesma cidade, envolvido com as mesmas duas mulheres, de novo interpretadas por Marisa Merlini e Gina Lolobrigida – e entrava na história um jovem carabiniere, por quem a personagem de Gina se apaixonava.

Dá para perceber que as tramas não eram assim propriamente inspiradas, certo?

E aí então, depois deste Pão, Amor e… aqui, de 1955, veio, em 1959, Pão, Amor e Andaluzia (1959). O marechal aposentado – ainda e sempre interpretado por Vittorio De Sica – vai participar de um festival internacional de música em Andaluzia, na Espanha, como indica o título. E lá se apaixona por uma jovem dançarina, interpretada por Carmen Sevilla. A direção coube ao espanhol Javier Setó.

Sophia Loren dançando é uma obra de arte

Este que é o terceiro filme da tetralogia tem uma momento absolutamente antológico. A narrativa já passou da metade. Como a bela Sophia aceita a corte do marechal – a fim de que ele permita que ela continue morando no apartamento –, o bonitão Nicola, tomado de ciúme, tem uma discussão horrorosa com ela, chega a chamá-la de meretriz. E então, numa noite, Sophia vai com o marechal a um bar agitado, com música ao vivo. Nicola está dançando com Erika (Yoka Berretty), uma turista sueca que estava doida para arranjar um namorado italiano. Para provocar Nicola, para deixá-lo enciumado também, Sophia se levanta da mesa com o marechal e vai dançar na pista no meio do bar, ao som de “Mambo Italiano”.

Sophia Loren, de vestido decotado, dançando “Mambo Italiano” é uma obra de arte. Para se aplaudir de pé como na ópera, dar rewind e ver de novo, e ver de novo…

Anotação em abril de 2021    

Pão, Amor e…/Pane, Amore e…

De Dino Risi, Itália-França, 1955

Com Vittorio De Sica (Comandante Antonio Carotenuto),

Sophia Loren (Sofia Cocozza)

e Lea Padovani (Violante Ruotolo), Antonio Cifariello (Nicola Pascazio), Tina Pica (Caramella, a governanta), Mario Carotenuto (Don Matteo Carotenuto, o padre, irmão de Antonio), Yoka Berretty (Erika), Virgilio Riento (Don Emidio), Clara Crispo (Donna Carmela), Pasquale Misiano (Don Peppino), Nino Imparato (vigia), Gaetano Autiero (Titino, o garotinho)

Soggetto Ettore M. Margadonna, Marcello Girosi, Dino Risi e Vincenzo Talarico

Sceneggiatura e Dialoghi Ettore M. Margadonna

Fotografia Giuseppe Rotunno

Música Alessandro Cicognini

Montagem Mario Serandrei

Direção de arte Gastone Medin

Figurinos Fabrizio Carafa

Produção Marcello Girosi, Titanus, Société Générale de Cinématographie (S.G.C.).

Cor, 106 min (1h46)

Disponível na Netflix em 4/2021

**

Título nos EUA e na Inglaterra: Scandal in Sorrento. Na França: Pain, amour, ainsi soit-il.

3 Comentários para “Pão, Amor e… / Pane, Amore e…”

  1. Sophia Loren, de vestido decotado, dançando “Mambo Italiano”, daquele jeito levando os fartos seios para cá e para lá na mesma sincronia que a música, já vale o filme, e com todo respeito, aqueles seios são perfeitos demais. Que mulher meu Deus.

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