Aconteceu num Apartamento / The Notorious Landlady

2.5 out of 5.0 stars

(Disponível na Netmovies em 10/2024.)

“Ela matou… ou matou o marido?” A pergunta que não chega propriamente a exibir uma dúvida está no cartaz de The Notorious Landlady, que Richard Quine dirigiu em 1962, Os vizinhos todos da notória senhoria do título original, em uma praça do elegante bairro londrino de Mayfair, não têm qualquer dúvida, assim como a Scotland Yard. Todos têm certeza: sim, ela matou o marido.

Mas então por que ela não está presa?

Este é um pequeno mistério que o roteiro assinado por Larry Gelbart e pelo grande Blake Edwards demora um pouco para revelar. Embora haja essa questão, embora a Scotland Yard esteja envolvida, embora haja morte a bala, roubo de jóias, chantagem e até sequências de tribunal, The Notorious Landlady, no Brasil Aconteceu num Apartamento, não é um filme de mistério, um thriller, e sim uma comédia. Tem ótimas piadas, momentos divertidíssimos, de fazer o espectador gargalhar, algumas sequências bem escrachadas tipo comédia pastelão. Aqui e ali, há alguns atentados à lógica e ao bom senso, mas há também a simpatia e o talento de Jack Lemmon e Fred Astaire – e a beleza acachapante, enlouquecedora, absolutamente sem jeito de Kim Novak, no esplendor dos 29 aninhos.

Kim Novak – que trabalhou nada menos que cinco vezes sob a direção de Richard Quine, entre 1954 E 1965 – é a notória senhoria do título original. A mulher que, na opinião de todo mundo, matou o marido – mas continua solta, apesar de haver um policial da Yard vigiando seus movimentos, observando tudo numa calçada um pouco distante da sua casa na Gray Square.

Um garotinho com uma arma de espoleta. Um tiro

A primeira sequência do filme é simplesmente brilhante.

Tomada geral de uma praça de Londres. Só residências – predinhos de três andares, construídos provavelmente na era vitoriana, final do século XIX, ou talvez antes disso. Um homem sentado em um banco, de sobretudo e chapéu, lendo um jornal. Um policial fardado, um constable, atravessando a praça, com exatamente o mesmo tipo de farda dos constables da época da Rainha Victoria. Crianças brincando. A câmara vai se movimentando suavemente para a direita. Um corte, vemos um garoto aí de uns cinco anos em primeiro plano com um revólver de espoleta na mão. Um londrino típico, de sobretudo e chapéu, carregando um guarda-chuva, caminha na calçada em direção ao local em que está a câmara. Atrás dele, uma senhora empurra uma outra, idosa, em uma cadeira de rodas. O garoto dá um tiro de espoleta, o homem se assusta um tanto, prossegue seu caminho. Corta, e vemos agora as duas senhoras caminhando; a idosa diz para o garoto: – “Não aponte essa coisa para mim, seu moleque! Não se atreva”. Estão agora lado a lado; o garoto parece que vai se atrever, sim, e atirar – e, naquele momento exato, ouvimos o ruído de um tiro. De arma de fogo, não de revolvinho de espoleta.

A senhorinha fecha os olhos, dá um gritinho, põe a mão no peito, como se seu coração tivesse se assustado.

Meu, que beleza de sacada!

– “A senhora está bem, sra. Dunhill?”, pergunta a mulher que a empurrava na cadeira de rodas.

– “É claro que estou bem!”

Tomada em que vemos as janelas de duas das casas sendo abertas por dois moradores espantados com o estampido da arma, curiosos para saber de onde veio o tiro.

– “Isso não foi a arma daquele pequeno monstro!”, diz a sra. Dunhill. Isso foi um tiro real, e partiu do número 33! Calibre 38, acho.”

Tomada da casa do número 33. A câmara se move suavemente, vemos janelas vizinhas sendo abertas, rostos curiosos olhando para a praça. Pessoas saem de suas casas, correm para a calçada onde está a sr. Dunhill; várias pessoas falam ao mesmo tempo.

De suas janelas, algumas pessoas arregalam os olhos: o corpo de um homem está sendo puxado para dentro da garagem de uma das casas. Um carro sai daquela garagem em disparada.

Corta. Começam os créditos iniciais.

Um diplomata aluga um andar da casa da suspeita

Após os créditos, vemos a mesma praça. Ficaremos sabendo que seis meses se passaram após aqueles acontecimentos da primeira sequência.

A sra. Dunhill (o papel de Estelle Winwood) e a sra. Brown (Philippa Bevans), que a empurrava, voltarão a aparecer mais tarde. Terão importância na trama, criada originalmente por Margery Sharp e roteirizada, repito, por Larry Gelbart e Blake Edwards (1922-2010) – o diretor de delícias como A Pantera Cor de Rosa (1963), Um Tiro no Escuro (1964), Um Convidado Bem Trapalhão (1968), Vitor ou Vitória? (1982), e de também dos dramas pesados, sérios Vício Maldito e Escravas do Medo (ambos de 1962).

A trama bolada por Margery Sharp e roteirizada por Larry Gelbart e Blake Edwards é assim:

Recém-chegado a Londres, para onde havia sido designado pelo Departamento de Estado norte-americano, após servir na Arábia Saudita, o funcionário Bill Gridley (Jack Lemmon) encontra no jornal um anúncio classificado de um apartamento para alugar: “Apartamento aluga-se. Residência privada. 33 Gray Square. Prefere-se casal”.

Ao bater a campainha, é atendido por uma mulher que a princípio abre apenas uma fresta, e não se deixa ver. Diz que sua patroa só admite casais como inquilinos. Gridley insiste que quer falar com a patroa e força um pouco a porta – e aí ele e o espectador vêem aquele rosto de Kim Novak todo, aquele absurdo.

A mulher lindérrima tenta falar um inglês ruim, o cockney, o inglês falado pelas classes mais baixas – mas o cockney dela é mais falso que uma moeda rasgada de três guaranis paraguaios. Identifica-se como Hilda, diz que a patroa, a sra. Hardwicke, está fora – mas mostra o andar da casa que está para alugar.

A sequência é longa, o diálogo entre os dois é engraçado – e Carly Hardwicke acaba admitindo que é a dona da ampla casa, e que também é americana. Passa a falar normalmente, sem tentar forçar um sotaque inglês, e fecham negócio: Gridley ficará com um andar da casa por 40 libras por mês, pagamento adiantado.

Isso feito, ele se apresenta na Embaixada dos EUA a seu chefe imediato, Franklyn Ambruster – o papel de Fred Astaire.

Uma das primeiras preocupações de Ambruster é garantir que o novo funcionário more em um lugar de respeito, não seja jamais visto em companhia de gente mal falada e não tenha absolutamente nada que pareça inapropriado para os britânicos.

Não demora muito para que Ambruster fique sabendo que ele alugou uma parte da casa da mulher que há seis meses é suspeita de ter assassinado o marido. E o inspetor Oliphant, da Scotland Yard, logo é chamado por Ambruster para conhecer o seu funcionário que é inquilino da suspeita.

(O inspetor é o papel de Lionel Jeffries, que rouba todas as cenas em que aparece. E não consigo me impedir de registrar: o cinema americano adorava mostrar inspetores da polícia metropolitana de Londres como tipos engraçados!)

Oliphant quer que o americano recém-chegado trabalhe como um espião para a polícia. Que observe com atenção tudo que aquela mulher faz, para ver se em algum momento ela dá uma pista sobre o assassinato do marido.

Claro que a princípio Gridley se recusa a agir como um policial disfarçado. Mas Ambruster insiste em que, como funcionário do governo americano, ele tem a obrigação de colaborar com a Yard.

Essa conversa entre Gridley e seu chefe na Embaixada, em que ele fica sabendo que a dona do lugar em que ele mora é a principal e única suspeita de assassinar o marido, e em seguida a reunião com o inspetor da Scotland Yard, acontecem quando estamos aí entre os 35 e os 40 minutos do filme que dura 123.

É ali também que se esclarece aquele mistério: se a polícia suspeita dela, e há um policial sempre de tocaia diante de sua casa, observando todos os seus movimentos, por que ela ainda não havia sido presa? Simples: porque o corpo do maridão ainda não havia sido encontrado. Sem corpo, não havia como acusá-la formalmente do assassinato.

Estamos aí com não mais que 40 minutos do filme que tem 123. A partir daí, muita, mas muita água vai rolar sob a ponte. Vão surgir novas e novas surpresas – e também eventos que não são surpresa alguma, como, por exemplo, o fato de que o rígido diplomata Franklyn Ambruster vai literalmente se derreter todinho quando se vê diante de Carly Hardwicke-Kim Novak.

Surpresa zero: quem, neste mundo de Deus e o diabo, quem não se derreteria diante daquele monumento de beleza?

Hollywood adorava fazer filmes passados na Inglaterra

A Embaixada dos Estados Unidos no Reino Unido ficava no elegante bairro de Mayfair até 2017, quando então mudou de local, mostra o IMDb – que indica diversos endereços de Londres onde o filme foi rodado. Diferentemente de Sinfonia de Paris (1851) e Irma La Douce (1963), por exemplo, em que os cenários de Paris foram construídos nos estúdios em Hollywood, este The Notorious Landlady foi de fato filmado nas locações em Londres.

E haja sequências em que os personagens caminham à noite no espesso fog londrino, uma das marcas registradas da maravilhosa metrópole, sempre presente nos filmes hollywoodianos passados lá.

Meu, e como Hollywood fazia filmes passados na Inglaterra! É impressionante. Depois de deixar seu país natal e se radicar nos Estados Unidos, Alfred Hitchcock usou a Inglaterra como cenário de, entre outros, Rebecca, a Mulher Inesquecível (1940), Correspondente Estrangeiro (1940), Agonia de Amor (1947), Pavor nos Bastidores (1950), Disque M para Matar (1954), O Homem Que Sabia Demais (1956), Frenesi (1972).

Mas não foi apenas Hitchcock, é claro. Dezenas e dezenas de filmes americanos passam-se em paisagens inglesas, como, para dar só alguns exemplos, Teia de Renda Negra (1960), O Leque de Lady Margarida (1925), Lady in the Fog (1952), A 23 Passos da Rua Baker (1956), Mistério de uma Mulher (1941), Trágico Álibi (1845),,,

Muitos desses filmes, e de tantos outros – uma lista caprichada, feita com fôlego, seria imensa – são policiais, thrillers. E há muita lógica nisso. Creio que não há outro lugar no planeta que cultive mais o gosto por histórias policiais do que as Ilhas Britânicas. Estão aí para provar isso, além de Hitchcock, personalidades, personagens e instituições como Agatha Christie, Miss Marple, Hercule Poirot (que, mesmo belga, é um genuíno produto britânico), Arthur Conan Doyle, Sherlock Holmes, Jack, o Estripador, a Scotland Yard, G.K. Chesterton…

Um detalhinho geográfico minúsculo; se você procurar no Google Maps, ou em qualquer outro lugar, onde exatamente fica a Gray Square, em Mayfair, não vai encontrar. O nome é uma invenção dos realizadores deste The Notorious Landlady.

A própria Kim Novak criou os vestidos que usa

Um detalhinho interessante, que chamou muito minha atenção. Nos créditos iniciais aparece o seguinte: “Miss Novak gowns designed by … Herself. Executed by Elizabeth Courtney”.

Uau! Fantástico: foi então Kim Novak que criou os vestidos usados por Carly Hardwicke! Criou, bolou, desenhou – e a execução ficou a cargo de uma profissional do ramo, Elizabeth Courtney…

Olha, a moça teve muito trabalho, viu? Carly Hardwicke é daquele tipo de dama que não usa o mesmo vestido duas vezes. Em cada sequência do filme ela usa um modelito diferente – e quase todos são finos, elegantes.

É um dos detalhes de que o filme de vez em quando foge da lógica que nem o diabo da cruz, os fanáticos da verdade e do bom senso. Como explicar que aquela mulher, que havia sido casada com um sujeito que não passava de um bandido, tivesse tanto dinheiro para as roupas?

Outro ponto em que o filme passa longe da realidade é o julgamento. Os realizadores não tentaram de forma alguma mostrar um tribunal inglês. E o juiz, a figura do juiz (sem nada da tradicional peruca exigida à época), o tipo de pergunta que ele faz, é tudo falso demais da conta.

Mas, diabo, afinal aquilo é uma comedinha hollywoodiana, cara! O que você está exigindo?

Kim  Novak e Richard Quine, uma dupla que deu certo

É fundamental voltar a este ponto: Richard Quine adorava dirigir Kim Novak – e Kim Novak, parece óbvio, gostava de ser dirigida por Richard Quine.

O americano de Detroit Richard Quine (1920-1989) foi, segundo o Dicionário de Cinema – Os Diretores, de Jean Tulard, “o grande mestre da comédia da Columbia nos anos 50, capaz de dar, como todos aqueles que abordaram o gênero, tanto do melhor (o sublime Sortilégio de Amor, charmosa história de bruxaria) quanto do pior (em Um Casal em Apuros, Judy Holliday, embora extremamente dinâmica, é obrigada a se poupar em função de sua gravidez, ocasionando cenas de uma vulgaridade indignas de Quine). Tinha o senso do ritmo (Mosqueteiros do Mar ou Jejum de Amor) e da elegância. É essa elegância que caracterizava suas comédias (Médica, Bonita e Solteira e sobretudo Como Matar Sua Esposa. (…) Curiosamente, fez uma incursão pelo thriller com o excelente A Morte Espera no 322, ruptura inusitada na sua obra.”

Kim Novak está em A Morte Espera no 3322/Pushover (1954). Está também em outro filme que passa bem longe da comédia, o drama O Nono Mandamento/Strangers When We Met (1960). que, como mostra o título escolhido pelos exibidores brasileiros, trata de infidelidade conjugal. E trabalhou ainda no citado como sublime no livro de Jean Tulard, Sortilégio de Amor/ Bell Book and Candle (1958).

E, sim, eles tiveram um romance, na época em que estavam filmando Strangers When We Met.

É bom registrar que este aqui foi o terceiro dos filmes que Kim Novak e Jack Lemmon fizeram juntos. Haviam sido amantes em Abaixo o Divórcio/ Phffft (1954), comedinha romântica de Mark Robson, quando ambos estavam em começo de carreira – por coincidência, foi o segundo filme de cada um dos dois. Em 1958 se reuniram novamente, e sob a direção de Richard Quine, em Sortilégio de Amor, em que interpretavam irmãos.

Quando se reuniram novamente neste The Notorious Landlady, já eram astros famosos e respeitados. Kim Novak havia brilhado em Férias de Amor/Picnic (1955), Meus Dois Carinhos/Pal Joey (1957) e Um Corpo Que Cai/Vertigo (1958). E Jack Lemmon havia provado que é excelente ator tanto na comédia – ganhou indicações ao Oscar por Quanto Mais Quente Melhor (1959) e Se Meu Apartamento Falasse (1960) – quanto no drama – também foi indicado por seu papel em Vício Maldito/Days of Wine and Roses (1962).

Um registro sobre Fred Astaire, o maior bailarino da história do cinema, somente comparável a Gene Kelly. Seu contrato com a MGM terminou em 1957 – e, até ali, ele só havia trabalhado em musicais. Faria, então, três filmes sem um passo de dança sequer: o drama sobre a ameaça da guerra atômica A Hora Final (1959), a comédia Papai Playboy (1961) e esta aqui. Em 1968, voltaria ao musical em O Caminho do Arco-Íris/Finian’s Rainbow, dirigido pelo então jovem Francis Ford Coppola.

Só pela beleza de Kim Novak já vale ver o filme

Leonard Maltin deu 2.5 estrelas em 4 para The Notorious Landlady: “Fascinado pela proprietária Novak, Lemmon decide descobrir se ela realmente matou seu marido; passado em Londres. Excêntrica comédia-mistério escrito por Quine e Larry Gelbart.”

Maltin não viu o filme com atenção. O personagem de Lemmon não decide descobrir coisa alguma: é obrigado é tentar descobrir por pressão de seu chefe na Embaixada e do inspetor da Scotland Yard. E Quine não foi um dos autores do roteiro.

O guia de Steven H. Scheur dá 3 estrelas: “Jovem americano em Londres aluga o apartamento de uma moça bela mas misteriosa que a polícia suspeita que matou seu marido, e rapidamente se envolve no caso. Uma comédia em geral divertida, graças a Lemmon.”

Olha, eu diria o seguinte: mesmo que The Notorious Landlady fosse dez vezes pior do que é, só pela beleza de Kim Novak já valeria a pena vê-lo…

 Anotação em outubro de 2024

Aconteceu num Apartamento/The Notorious Landlady

De Richard Quine, EUA, 1962

Kim Novak (Carly Hardwicke),

Jack Lemmon (William Gridley),

Fred Astaire (Franklyn Ambruster),

Lionel Jeffries (inspetor Oliphant), Estelle Winwood (Mrs. Dunhill, a velhinha fofoqueira), Maxwell Reed (Miles Hardwicke), Philippa Bevans (Mrs. Brown, a chantagista), Henry Daniell (um estranho), Ronald Long (o legista), Doris Lloyd (Lady Fallott), Richard Peel (Dillings, o policial de tocaia diante da casa), Florence Wyatt (a secretária de Ambruster), Frederic Worlock (coronel veterano), Dick Crockett (Carstairs), Scott Davey (Henry), Mary O’Brady (Mrs. Oliphant)

Roteiro Larry Gelbart e Blake Edwards

Baseado na história “The Notorious Tenant”, de Margery Sharp        …

Fotografia Arthur E. Arling

Música George Duning

Montagem Charles Nelson

Direção de arte Cary Odell

Figurinos Kim Novak, “executados por Elizabeth Courtney”

Produção Fred Kohlmar, Columbia.

P&B, 123 min (2h0h3)

**1/2

Título na França: “L’Inquiétante Dame en Noir”. Em Portugal: “Notável Senhoria”.

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