Escravas do Medo / Experiment in Terror

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Nota: ★★★☆

Blake Edwards dirigiu Experiment in Terror, no Brasil Escravas do Medo, em 1962. O filme veio depois de Anáguas a Bordo/Operation Petticoat, uma deliciosa comédia com Cary Grant e Tony Curtis, de 1959, e de Bonequinha de Luxo/Breakfast at Tiffany’s, de 1961, um tremendo sucesso que virou cult para toda uma geração.

É fantástico como Blake Edwards conseguia alternar dramas e comédias.

Logo depois deste policial pesado, flertando com o noir, o diretor faria outro drama denso, forte, Vício Maldito/Days of Wine and Roses, também lançado em 1962, em que Jack Lemmon e Lee Remick – a mesma Lee Remick de Experiment in Terror – interpretam um casal que se afunda no álcool.

E em seguida viria A Pantera Cor-de-Rosa, a primeira das várias aventuras do Inspetor Clouseau.

Um filme de ritmo lento, em que a violência é psicológica

Ao rever o filme agora (fui checar, e me surpreendi ao constatar que havia visto duas vezes em 1963, na época do lançamento no Brasil, e ainda uma outra vez em 1981), achei-o um tanto irregular. Tem muita coisa boa, mas me pareceu, e também à Mary, que a trama, a história, especialmente mais para o final, tem falhas, buracos, como um queijo suíço.

zzterror2É o tipo de thriller que seguramente não agradaria às audiências mais jovens, por ser extremamente típico de sua época, o início dos anos 1960. É o que me fascina, e muito, nele – e é o que afastaria os espectadores mais jovens.

Experiment in Terror tem um ritmo lento, bem lento. Há tomadas longas, propositalmente longas. Há pouquíssima violência explícita. A violência é psicológica: as personagens interpretadas por Lee Remick e Stefanie Powers passam, de fato, por uma experiência de terror, tornam-se escravas do medo, como diz o título escolhido pelos exibidores brasileiros. (Naquela época, os exibidores brasileiros adoravam títulos que parecem saídos de letras de tango.)

E nem há propriamente grande suspense. O espectador sabe o tempo todo o que está acontecendo com o criminoso.

O terror, o pavor, o medo está na cabeça das duas personagens. E o filme consegue nos passar o clima de terror.

“Nos passar” em termos. Passar para os espectadores mais velhos, eu quero dizer. Não imagino que gente até a faixa de 30 sinta o clima de pavor que Edwards cria.

Um começo impactante: uma mão enluvada tapa a boca da moça de olhos claros arregalados

Começa extraordinariamente bem.

Enquanto vão rolando os créditos iniciais – em ritmo lento, bem lento – vamos vendo cenas de San Francisco à noite, ao som de um tema fascinante de Henry Mancini. Uma melodia lenta, densa, soturna, que prenuncia terror.

Carros na Golden Gate à noite. O skyline de San Francisco. Algumas luzes, sim, mas a maior parte da tela é negra. Dark. Noir.

O carro da protagonista é branco – um daqueles rabos de peixe do final dos anos 50, começo dos 60, conversível. Vai rolando suavemente pelas ruas daquela maravilha de cidade. Uma placa mostra que ela está indo para Twin Peaks.

zzterror0Kelly Sherwood, a protagonista, vem na pele de Lee Remick, aquela belíssima mulher com um rosto de garotinha, baby face, e gigantescos olhos azuis – que o espectador sabe que são azuis, mas, na fotografia gloriosamente em preto-e-branco de Philip Lathrop, só aparecem claros.

Kelly estaciona o carro na garagem da casa em que vive com a irmã mais nova, Toby (o papel de Stefanie Powers) – e imediatamente percebe que não está sozinha.

Ela pergunta para a escuridão se há alguém ali.

E de repente um vulto preto está atrás dela e a segura por trás, tapando sua boca.

O close-up de uma mão com luva negra tapando o rosto de Kelly, enquanto ela arregala os enormes olhos claros, é marcante, forte, aterrorizante.

O homem fala com ela com uma voz grave, cavernosa, e a respiração pesada, difícil, típica dos asmáticos.

Diz que sabe tudo sobre ela e sobre a irmãzinha dela. Recita os horários em que ela saiu, em que Toby saiu, com quem saiu. Sabe que ela trabalha num banco, o banco tal e tal.

Sabe até mesmo as medidas do corpo dela. E vai apalpando e dando as medidas, enquanto o espectador continua vendo o rosto de Kelly-Lee Remick em close-up.

E então apresenta o que quer. Quer que ela roube US$ 100 mil do banco. Ele dará todas as instruções mais tarde.

É bom que ela obedeça, diz. Porque, se não obedecer, se avisar a polícia, morre. Morrem ela e a irmãzinha. Ele já matou duas, pode perfeitamente matar mais.

E vai embora.

Kelly liga para o FBI.

zzterror5Atende o agente John Ripley (o papel de Glenn Ford). Ripley consegue anotar o nome – Sherwood. A ligação é interrompida. Kelly é derrubada, cai no chão: o criminoso põe o sapato grande e preto no pescoço claro dela. Ela cometeu um erro, diz ele, mas é bom que saiba: se cometer um segundo erro, morre.

Estamos com menos de dez minutos de filme.

Nesta era do exagero, a violência do criminoso pode parecer quase um carinho

O cinema mudou demais, de 1962 para cá. O que antes era implícito, que não se mostrava, que só se insinuava, virou explicitude completa, total. Na violência, no sexo, em tudo. E passou-se a exagerar.

Para o cinemão comercial, a receita parece ser o exagero.

Martin Scorsese fez um filme em 1991 que serve como uma aula, um curso inteiro, sobre exatamente como o cinema mudou naquelas três décadas: seu Cape Fear, no Brasil Cabo do Medo, é a refilmagem de Cape Fear, no Brasil Círculo do Medo. O original é exatamente de 1962, o mesmo ano deste Experiment in Terror.

A história é exatamente a mesma: criminoso sai da cadeia após cumprir sua pena e passa a infernizar a vida do advogado que permitiu que ele fosse condenado. No Cape Fear original, o criminoso é interpretado por Robert Mitchum; no filme de Scorsese, por Robert De Niro. O advogado que no original foi feito por Gregory Peck é interpretado por Nick Nolte. Scorsese foi tão cuidadoso na sua lição de cinema que colocou Gregory Peck e Robert Mitchum fazendo papéis menores na sua refilmagem.

Tudo o que era insinuação no filme de 1962 é explicitado no de 1991. A violência física é assim umas 200 bilhões de vezes maior.

Nesta era do exagero, a violência do criminoso de Experiment in Terror pareceria, aos olhos das audiências de hoje, quase um carinho, uma demonstração de ternura.

A rigor, a rigor, acho que dificilmente a história de Experiment in Terror poderia ser refilmada hoje. Prescreveu, perdeu a validade.

“Um thriller angustiante, extremamente elaborado em matéria de estilo e atmosfera”

zzterror8O filme tem, no entanto, muita coisa boa, repito. A abertura, que é de fato brilhante. A falta de pressa em contar a história, que permite que se crie o clima de pavor. A interpretação – e a beleza – de Lee Remick. A beleza jovem de Stefanie Powers – ela estava com 20 aninhos, e parecia ter menos ainda; este aqui foi seu primeiro filme. A música de Henry Mancini, sensacional.

Leonard Maltin deu 3 estrelas em 4: “Suspense longo com a caixa de banco Remick aterrorizada por extorcionista assassino Martin… mas o agente do FBI está no caso. Realista, não sentimental, com atuações convincentes de Remick e Martin. Grande trilha de Henry Mancini, bom uso das locações em San Francisco”.

O Guide des Films do mestre francês Jean Tulard derrama-se diante do filme – de uma maneira geral, o Guide trata muito bem dos filmes de Blake Edwards, embora a maestria do realizador não seja tão amplamente reconhecida quanto deveria.

Diz o Guide: “Primeiro filme realizado por Blake Edwards que não era uma comédia, Allô, Brigade Spécialle surpreendeu o público. Grande amante das tramas policiais, o cineasta, que já havia assinado o roteiro do excelente Drive a Crooked Road de Richard Quine (de 1954, no Brasil Os Valentões), decidiu encenar uma para sua primeira produção independente. Apesar de um material de base um pouco ingrato, o cineasta assina um thriller angustiante, que ele dota, usando um trabalho extremamente elaborado em matéria de estilo e atmosfera, de clarões barrocos, aos quais contribui uma esplêndida fotografia muito contrastada em preto-e-branco, sem abandonar seus personagens, que se mantêm como o pólo das atenções.”

Detalhinho interessante: no Guide des Films, o título em francês aparece como esse citado Allô, Brigade Spécialle. Já no Cinéguide, surge como Allô, Brigade Criminelle. Aproveito para registrar outros títulos do filme: na Itália, Operazione Terrore; na Espanha, Chantaje contra una mujer; no Reino Unido, The Grip of Fear.

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Outro detalhe é que, segundo o IMDb, vários elementos de Experiment in Terror inspiraram cenas e idéias dos filmes de David Lynch. Eis o que diz o sitezão enciclopédico:

. Para começar, há a placa indicando Twin Peaks bem no início de Experiment in Terror. Twin Peaks, todo mundo sabe, viria a ser o título da famosérrima série de TV criada por Lynch.

. Na cena em que o criminoso agarra Kelly na garagem da casa dela, ele menciona que já “matou duas vezes antes”. Uma frase semelhante é dita pelo personagem Bob, de Twin Peaks.

. Essa mesma cena se parece muito com uma do filme de Lynch Coração Selvagem/Wild at Heart, em que o personagem de Willem Dafoe segura a personagem Lula Fortune. A respiração do personagem e o jeito de ele falar também são semelhantes aos do personagem do filme de Edwards.

. Quando o filme já passa da metade, fica-se sabendo que o criminoso se chama Garland Lynch, e seu apelido é Red. Uma coincidência que certamente chamou a atenção de David Lynch. Um dos personagens de Twin Peaks se chama Major Garland Briggs – o mesmo prenome do criminoso de Experiment in Terror.

Mais um detalhinho: nos cartazes do filme, e também nos créditos iniciais, o nome de Glenn Ford aparece antes do de Lee Remick, embora ela seja a protagonista principal da trama. Coisas da indústria: Glenn Ford estava no auge da fama, era um grande astro, com muito mais prestígio do que a jovem atriz.

Pode soar antigo, datado, mas é um belo filme, com clima, atmosfera

Então é isso. Escravas do Medo/Experiment in Terror é um filme que pode hoje soar um tanto antigo, um tanto datado. E a trama de fato tem furos – não é o caso de falar muito sobre eles aqui, porque seriam spoilers, mas posso citar algumas coisas. Primeiro: o personagem de Nancy (Patricia Huston) acaba ficando bastante solto. Não fica claro qual a relação dela com o criminoso, nem dela com Kelly Sherwood. Segundo: os US$ 2 mil que Kelly surrupia ao banco não têm qualquer explicação. Para quê? Com que intuito? Fica solto, é bobagem pura. Terceiro: a bolsa com os US$ 2 mil some na sequência em que Kelly abraça Toby. Quarto: não se explica hora nenhuma como o criminoso consegue saber tanta coisa sobre as duas irmãs, e como consegue entrar tão facilmente na casa delas.

zzterror7Pode soar um tanto datado, tem furos. OK. Mas é um belo filme, tem clima, atmosfera. É um ótimo exemplo de como o uso de boa fotografia, belo posicionamento de câmara e uma trilha sonora fascinante podem transformar uma história não muito bem costurada num filme de qualidade. E é um belo exemplo do tipo de thriller que se fazia no início dos anos 60, antes que o cinemão comercial fosse transformado num torneio de quem consegue mostrar mais violência e sexo, mais explicitudes, exagerar mais.

Dá vontade de ver outros filmes dos anos 50, 60 – . Dá vontade, por exemplo, de rever Círculo do Medo, o Cape Fear original. Dá vontade de ver Vício Maldito, de Blake Edwards.

Blake Edwards é um grande diretor. Na comédia e no drama.

Anotação em novembro de 2012

Escravas do Medo/Experiment in Terror

De Blake Edwards, EUA, 1962.

Com Lee Remick (Kelly Sherwood), Glenn Ford (John Ripley), Stefanie Powers (Toby),

e Roy Poole (Brad), Ned Glass (Popcorn), Anita Loo (Lisa), Patricia Huston (Nancy), Ross Martin (Red Lynch)

Roteiro Gordon Gordon e Mildred Gordon

Baseado no romance Operation Terror, dos dois roteiristas

Fotografia Philip Lathrop

Música Henry Mancini

Produção Columbia Pictures. DVD Magnus Opus.

P&B, 123 min

R, ***

Títulos na França: Allô, Brigade Spéciale ou Allô, Brigade Criminelle.

 

10 Comentários para “Escravas do Medo / Experiment in Terror”

  1. Ofereço uma estrelinha, para completar as 4 que o filme, a Lee Remick, aquele lindo do Glenn Ford, o Blake Edwards merecem =)

  2. Pô, Marcio, muitíssimo obrigado pela correção!
    Claro, óbvio que é Robert Mitchum, uai, como está escrito nos posts sobre O Rio das Almas Perdidas, Fuga do Pasxado,
    El Dorado, Os Amantes de Maria, entre outros…
    Graças à sua mensagem, corrigi a besteira. Obrigado mesmo!
    Um abraço.
    Sérgio

  3. A gente deixa passar erros bobos – e às vezes não nota coisas que deveria notar. Só agora vi que a Senhorita, uma leitora muito querida, já havia feito a correção!
    Bem, mas agora está lá! Agradeço ao Marcio e à Senhorita!
    Sérgio

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