Trágico Álibi / My Name is Julia Ross

Nota: ★★½☆

(Disponível no Cine Antiqua, YouTube, em 1/2022.)

Na primeira noite de seu emprego como secretária pessoal de uma senhora muito rica, a Julia Ross do filme que tem seu nome no título original dorme na casa da nova patroa, em um bairro bom de Londres – e, quando acorda, está numa mansão debruçada sobre o mar da Cornualha. E todos a chamam de senhora Hughes.

– “Meu nome é Julia Ross!”, ela repetirá várias vezes ao longo do filme.

Esse é o ponto de partida da trama de My Name is Julia Ross, no Brasil Trágico Álibi, filme de 1945 que, apesar de inteiramente passado na Inglaterra, é mais americano que hambúrguer com Coca-Cola.    E é, sem dúvida alguma, um ponto de partida atraente, interessante, que deixa o espectador torcendo por aquela moça simpática, muito bonita, presa numa armadilha que ela não consegue compreender – nem ela, nem o espectador.

Não foi um tremendo sucesso, nem se poderia dizer que é bastante conhecido hoje. Mas tem ardentes defensores, e pessoas fascinantes envolvidas em sua produção – o diretor Joseph H. Lewis, o autor do romance em que se baseia o roteiro, Anthony Gilbert (que na verdade é uma mulher), a simpática senhorinha inglesa May Whitty, perdão, Dame May Whitty, e a bela, talentosa, marcante Nina Foch, a atriz que faz o papel de Julia Ross.

A trama inspiraria, quatro décadas mais tarde, um filme do grande Arthur Penn, Morte no Inverno/Dead of Winter.

Embora eu não veja nada de noir no filme, ele é considerado noir – esse rótulo que valoriza bastante o produto.

De qualquer forma, se o rótulo de noir pode ser contestado, My Name is Julia é incontestavelmente um filme B. Segundo o crítico Leonard Maltin, ele foi muitas vezes citado como o modelo de filme B, o filme B típico.

Filmes modestos, com orçamento baixo

“Hollywood sempre fez filmes de orçamento baixo, mas a designação ‘B’ se originou nos anos 30 com o incremento do programa duplo”, diz o estudioso e professor carioca A.C. Gomes de Mattos em seu interessantíssimo livro A Outra Face de Hollywood: Filme B. O programa duplo, a apresentação de dois filmes em cada sessão – em geral uma produção classe A e outra B –, ele explica, foi uma maneira que os exibidores encontraram para reagir à queda da frequência às salas de cinema nos anos da Grande Depressão que se seguiu à quebra da Bolsa de Nova York em 1929.

Em 1930, a frequência atingiu o índice mais alto até então, de 80 milhões de espectadores por semana, mostra o livro. Em 1931, esse número caiu para 70 milhões e, em 1932, para 55 milhões. “Em 1933, quase um terço dos cinemas foi obrigado a fechar as portas e as salas remanescentes tiveram de baixar o preço dos ingressos”, mostra Gomes de Mattos.

E ele detalha: “Os filmes A eram realizados com orçamentos de aproximadamente US$ 400 mil ou daí para cima (prestige pictures ou specials) e astros que atraíam um vasto público. Duravam 90 minutos ou mais e seus organogramas de filmagem tinham a realização de ensaios e retakes.

“Os filmes B custavam entre US$ 50 e US$ 200 mil e empregavam artistas com poder de atração moderado, questionável ou desconhecido. O tempo de projeção variava normalmente entre 55 e 70 minutos e a filmagem comumente não ultrapassava três semanas.”

My Name is Julia dura exatos 65 minutos. Uma horinha e 5 minutos – e pronto.

Vou usar um pouco mais do que diz o estudioso A.C. Gomes de Mattos. Ainda na introdução do seu precioso livro sobre os filmes B, ele fala dos diretores – e lá está Joseph H. Lewis, o realizador deste My Name is Julia:

“A possibilidade de um diretor emergir da produção B de um grande estúdio para um filme A era muito menos provável do que o inverso: um declínio para a Poverty Row. Alguns, no entanto, logo conseguiram ascender às produções A, consagrando-se como bons diretores (v.g. Anthony Mann, Jacques Tourneur, Budd Boetticher, Don Siegel, Samuel Fuller, Robert Wise, Mark Robson, Richard Fleischer).”

Uau, meu! Incrível pensar que esses grandes nomes todos começaram em produções B!

“Outros bem-dotados (v.g. Joseph H. Lewis, Phil Karlson e Edgar G. Ulmer) tiveram as carreiras quase inteiramente dominadas pelos filmes B por falta de oportunidade ou ambição, porém souberam transformar as limitações orçamentárias em virtude.

“Joseph H. Lewis distinguiu-se pela inteligência e originalidade na maneira de colocar a câmera e de movimentá-la. Suas obras mais expressivas – Trágico Álibi / My Name Is Julia Ross/1945, Satã Passeia à Noite / So Dark the Night / 1946, Mortalmente Perigosa / Gun Crazy / 1949, Império do Crime / The Big Combo / 1954 – não ficam nada a dever aos melhores filmes de muitos diretores de filmes classe A. Mesmo nos seus filmes mais fracos, surgem aqui e ali algumas tomadas brilhantes ou movimentos de câmera complexos e inesperados.”

“Soberbo suspense perfeitamente encenado”

É exatamente o mesmo que diz de Joseph H. Lewis (1907-2000, 54 títulos como diretor na filmografia, entre 1937 e 1966) o mestre Jean Tulard em seu Dicionário de Cinema – Os Diretores:

“Confinado na série B, soube se elevar, apesar de orçamentos medíocres, ao nível da obra-prima com brilhantes thrillers como Trágico Álibi, Satã Passeia à Noite (um policial persegue um criminoso que não é senão ele próprio), Czar Negro (um verdadeiro documentário sobre a polícia secreta), A Mulher sem Nome (sobre a imigração clandestina nos Estados Unidos), Império do Crime (onde o talento de operador de John Alton explode com imagens maravilhosas) e sobretudo Mortalmente Perigosa, ‘filme admirável que demarca claramente o caminho que leva do amor louco à revolta enlouquecida’ (segundo escreveu Ado Kyrou).”

Na França, o filme teve o título de Le Calvaire de Julia, mas, em seu gigantesco Guide des Films, Jean Tulard usou o título original em inglês. Deu a ele raras três estrelas e elogios:

“Soberbo suspense perfeitamente encenado por Lewis (o ombro de Julia sobre o muro da agência no começo do filme; a panorâmica dentro do quarto em que Julia acorda). Inédito, a não ser na Cinemateca.”

Interessantíssima essa última frase. Só que ela ficou datada: hoje o filme está à disposição de todos no YouTube, grátis como um passeio no parque.

Leonard Maltin deu 3 estrelas em 4: “Uma jovem inocente responde a um anúncio de vaga de emprego em um jornal e acaba prisioneira de uma família louca. Muitas vezes citado como o modelo de filme B, ele percorreu um longo caminho com baixo orçamento, embora isso seja um pouco mais óbvio agora do que deve ter sido em 1945. A atuação de Foch é até hoje um grande destaque. Foi mais tarde a inspiração para Dead of Winter.”

O bom guia de Steven H. Scheur dá 3.5 estrelas em 4: “Mistério cativante, fascinante e com boas atuações. Uma moça se candidata a um emprego, é drogada e forçada a assumir uma nova identidade.”

E o livro The Columbia Story diz: “O diretor Joseph H. Lewis entrou no mundo preto-e-branco do film noir com My Name is Julia, um thriller estiloso, de baixo orçamento (embora rebuscado) baseado no romance The Woman in Red, de Anthony Gilbert. Passado na Inglaterra, conta a história de uma jovem mulher (Nina Foch – em seu primeiro papel como protagonista) que é contratada pela idosa sra. Hughes (Dame May Whitty) como secretária particular. O que ela não sabe é que sua empregadora está em conluio com o filho dela (George Mcready) para implementar um esquema diabólico em que a srta. Foch deverá ser assassinada numa maneira tal que pareça um suicídio. Os por quês e os comos da trama foram bem cuidados por Muriel Roy Bolton, cujo roteiro criou papéis para Roland Varno, Anita Bolster, Doris Lloyd, Leonard Mudie e Queenie Leonard. Wallace MacDonald produziu. (Em 1987, o mesmo material foi retrabalhado pelo diretor Arthur Penn como Dead of Winter (MGM).”

Uma escritora extremamente prolífica

Uma palavrinha sobre Anthony Gilbert, autor do romance The Woman in Red.

Jamais tinha ouvido falar em Anthony Gilbert até agora – o que é até um vexame para um admirador de literatura policial como eu, já que Anthony Gilbert escreveu mais de 60 romances policiais, boa parte deles com um personagem de sua criação, Arthur Crook, um advogado londrino bem vulgar, total e deliberadamente diferente dos detetives sofisticados da literatura policial inglesa.

Anthony Gilbert era o pseudônimo de Lucy Beatrice Malleson (1899-1973), uma mulher nascida em Londres que bem cedo aprendeu taquigrafia para ganhar a vida depois que seu pai, um corretor, ficou desempregado. Deve seguramente ter trabalhado como secretária – como sua personagem Julia Ross gostaria de trabalhar – antes se dedicar à literatura.

Tinha o dom da imaginação sem fim, e uma capacidade de trabalho à la Steven Soderbergh ou Steven Spielberg: além dos 60 romances como Anthony Gilbert, escreveu dois como J Kilmeny Keith, mais uma dezena de romances como Anne Meredith e várias dezenas de peças para rádio.

Outros romances de autoria dela foram adaptadas para o cinema.

The Vanishing Corpse (1941) virou o filme They Met in the Dark (1943), com James Mason. The Mouse Who Wouldn’t Play Ball (1943) foi filmado como Candles at Nine (1944); aparentemente, nenhum deles foi lançado comercialmente no Brasil.

Filmes americanos, americanérrimos, típicos de Hollywood, passados na Inglaterra. Interessante, isso. O caso deste Trágico Álibi/My Name is Julia Ross é um de vários. É uma tendência. Eis aqui alguns (deve haver muitos outros):

Rebecca, a Mulher Inesquecível/Rebecca (1940), de Alfred Hitchcock;

Disque M para Matar/Dial M. For Murder (1954), de Alfred Hitchcock;

Teia de Renda Negra/Midnight Lace (1960), de David Miller.

É tudo artificial demais, nada é verossímil

Muito bem. Tasquei aí um bando de informações, um bando de opiniões dos outros. Fica faltando opinião minha.

Gostei da experiência de ver o filme. Tenho especial paixão pelo cinema americano dos anos 1930 a 1960. Poucas pessoas gostam do cinema da época de ouro de Hollywood mais do que eu. Na verdade, só conheço um, Miguel Moreira, um jovem cinéfilo português que tem adoração por Rita Hayworth, Gene Tierney, Alice Faye, Nina Foch, Ingrid Bergman – e foi ele que me indicou este My Name is Julia.

Então, retomando. Gostei de ver o filme, é claro, porque é bem a minha praia, porque tem muita coisa interessante. O ponto de partida da trama de fato é fascinante, os atores estão muito bem, a direção de Joseph H. Lewis sem dúvida alguma é competente, talentosa.

É um grande prazer ver essas duas atrizes – a senhorinha inglesa May Whitty (1865–1948) e a bela, elegante, atraente, charmosa Nina Foch (1924-2008).

Mas a forma com que o roteiro lida com “os por quês e os comos”, para usar a expressão que está no livro The Columbia Story, não me pareceu tão boa. Na verdade, não me pareceu nada boa. Ao contrário. Me pareceu absolutamente artificial, coisa de literatura policial, que só existe na cabeça criativa de autor de novela policial inglesa, tipo O Caso dos Dez Negrinhos ou Ten Little Indians, da Agatha Christie, que depois virou And Then There Were None.

Todo aquele planejamento da família Hughes, a senhorinha que parece boazinha e o filho dela doidão de pedra… Um planejamento que inclui fantasiar a existência de uma agência de trabalho em Londres… O aluguel de uma bela casa em Londres… Toda aquela imensa farsa no vilarejo perto da mansão na Cornualha debruçada pro mar…

Aquilo jamais existiria na vida real!

Estaria eu, no momento de ver o filme, com o modo do Idiota da Objetividade do Nelson Rodrigues ligado?

Pode ser, pode ser, mas, diabo, alguma verossimilhança há de haver…

E a coisa de transportar a moça de Londres para a Cornualha com ela dormindo? Meu, para manter a Julia Ross dormindo durante esse translado aí teria sido necessária uma dosagem de sedativo capaz de matar um elefante…

Miguel Moreira sentenciou que eu pensei demasiado na verossimilhança.

Ele tem razão.

Anotação em janeiro de 2022

Trágico Álibi/My Name is Julia Ross

De Joseph H. Lewis, EUA, 1945

Com Nina Foch (Julia Ross),

e Dame May Whitty (Mrs. Hughes), George Macready (Ralph Hughes), Roland Varno (Dennis Bruce), Anita Bolster (Sparkes, a secretária da falsa agência de emprego), Doris Lloyd (Mrs. Mackie, a dona do pensionato), Leonard Mudie (Peters, o mordomo), Joy Harrington (Bertha, a empregada do pensionado), Queenie Leonard (Alice, a empregada da mansão), Harry Hays Morgan (Robinson), Ottola Nesmith (Mrs. Robinson), Olaf Hytten (Reverendo Lewis), Evan Thomas (Dr. Keller), Marilyn Johnson (enfermeira), Charles McNaughton (o porteiro da mansão), Milton Owen (policial), Leyland Hodgson (policial)

Roteiro Muriel Roy Bolton

Baseado no romance “The Woman in Red”, de Anthony Gilbert

Fotografia Burnett Guffey

Música Mischa Bakaleinikoff

Montagem James Sweeney, Henry Batista

Direção de arte Jerome Pycha Jr.

Produção Wallace MacDonald, Columbia Pictures.

P&B, 65 min (1h05)

**1/2

Título na França: “Le Calvaire de Julia Ross”. Em Portugal: “Angústia”.

Um comentário para “Trágico Álibi / My Name is Julia Ross”

  1. Um bom filme de suspense. Muito obrigado por me citar e elogiar! No entanto, eu não sou um fã de Nina Foch. Gosto dela mas conheço a mal. Adoro Lana Turner e Olivia de Havilland tb 😊

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