Sindicato de Ladrões / On the Waterfront

4.0 out of 5.0 stars

On the Waterfront, no Brasil Sindicato de Ladrões, que Elia Kazan lançou em 1954, é um dos grandes monumentos da História do Cinema. Visto ou revisto hoje, permanece tão forte, poderoso, impactante, impressionante quanto seguramente deve parecido na época de seu lançamento, 67 longos anos atrás. A beleza do filme, a extraordinária expressividade de várias de suas sequências são assombrosas.

Além do que está mostrado ali na tela, além da obra em si, o filme tem ainda uma importância, uma simbologia fantástica, fora de jeito. É a história de um homem que se torna delator, dedo-duro – essa coisa que para muita, mas muito gente, é ainda pior do que estuprador, abusador de criança. Uma obra realizada por um artista que havia acabado de ser chamado de delator, dedo-duro, pela imensa maioria de seus pares.

O ódio que a comunidade de Hollywood passou a ter de Elia Kazan depois de 1º de abril de 1952 era tamanho que, em 1999, 47 anos passados, muitos atores e diretores não se levantaram de suas cadeiras nem aplaudiram quando dois dos mais respeitáveis profissionais do cinema americano, Martin Scorsese e Robert De Niro, entregaram ao então nonagenário Elia Kazan um Oscar honorário “em agradecimento por uma carreira longa, ilustre e sem paralelo durante a qual influenciou a própria natureza de fazer filmes através da criação de obras-primas do cinema”.

Mas On the Waterfront é tão extraordinário que, em 1955, quando ainda eram recentes, quentes, frescos os eventos que tornaram Elia Kazan odiado, desprezado, a Academia indicou o filme a 12 Oscars – e ele venceu em oito das 12 categorias. Eis as categorias em que o filme levou o prêmio:

Melhor filme,

Melhor direção,

Melhor ator para Marlon Brando,

Melhor atriz coadjuvante para Eva Marie Saint,

Melhor roteiro original para Budd Schulberg,

Melhor fotografia em preto-e-branco para Boris Kaufman,

Melhor direção de arte em preto-e-branco para Richard Day,

Melhor montagem para Gene Milford.

Três atores foram indicados para o Oscar de coadjuvante, um caso raro – Lee J. Cobb, Karl Malden e Rod Steiger. Nenhum deles levou, assim como o maestro Leonard Bernstein não levou o prêmio de melhor trilha sonora.

O protagonista é um tanto ingênuo, um tanto sonso

O roteiro de Budd Schulberg, informam os créditos iniciais, se baseia em história original criada por ele mesmo, e a história foi “sugerida” – este é o verbo usado – por artigos do jornalista Malcolm Johnson.

É uma beleza de roteiro. Conciso, objetivo, mas às vezes beirando o lacrimoso; ao mesmo tempo enxuto e com apelos aos sentimentos do espectador; seco, cru, mas com alguns diálogos passionais; cheio de cenas duríssimas mas também de outras quase ternas, quase doces; inteligente, ágil, mas às vezes até mesmo cedendo a uma certa simplificação exagerada na composição de personagens.

Apresenta seu caso para o espectador de forma bem rápida, já nos primeiros dez minutos dos curtíssimos 108 de duração, que passam depressa demais. Como o título original e as primeiras tomadas indicam, é uma história passada on the waterfront, na orla marítima, nas docas, no porto – o porto de Nova York. O tema é o mundo dos estivadores, dominados por sindicalistas corruptos, bandidos cruéis, capazes de assassinar a sangue frio quem ousar contestar seu domínio totalitário, ditatorial – especialmente quem cometer o inominável crime de falar com as autoridades, os policiais, a Justiça.

A narrativa começa com Terry Malloy (o papel de Marlon Brando) na rua, chamando o colega Joey Doyle para pegar no terraço do seu prédio um pombo que pertencia a ele.

Joey – saberemos logo em seguida – estava se preparando para dar um testemunho para uma comissão oficial encarregada de investigar os crimes de sindicatos.

Assim que o corpo de Joey cai do terraço no asfalto, Terry se mostra um tanto chocado, um tanto arrependido. Diz que eles tinham dito que iriam apenas bater um papo com Joey, tentar demovê-lo da idéia de depor. Não sabia que iriam assassinar Joey.

Veremos que Terry às vezes parece um tanto ingênuo, às vezes um tanto bobo, um tanto pouco inteligente.

Todo mundo ali sabe que o chefão do sindicato, Johnny Friendly (o papel de um Lee J. Cobb com aquela cara de maus bofes em que ele era especializado), é um assassino, que manda seus capangas espancar, torturar ou matar seus rivais ou inimigos.

Parece que só Terry Malloy – por ser meio sonso, ou ingênuo, ou desligado, ou talvez por se aproveitar do fato de que Johnny Friendly gosta dele e dá a ele privilégios – é que acredita que o cara não tinha a intenção de matar Joey Doyle.

Johnny Friendley manda seus capangas que definem quem vai fazer o que a cada dia, a cada novo navio que chega no porto, darem trabalhos fáceis para Terry, porque tem simpatia por ele – e porque Terry é irmão de seu braço direito, Charlie Malloy (o papel de um Rod Steiger que nesta revisão agora do filme me assombrou por parecer tão jovem).

Anos antes, quando mais jovem, Terry havia sido um bom pugilista. Tinha vencido muitas lutas, chamado a atenção de muitos aficionados pelo boxe. Será só quando a narrativa já vai se encaminhando para o final, numa das sequências mais antológicas do cinema americano – “I coulda been a contender”, quase choraminga Terry Malloy, com aquela voz Actors Studio de Marlon Brando – que o protagonista da história parece ter compreendido finalmente o que havia acontecido com ele.

Uma moça que parece anjo e um padre combativo

Surgem na vida de Terry Malloy – o irmão do braço direito do bandidaço Johnny Friendly, o sujeito meio sonso, meio ingênuo que caminha para os 30 anos parecendo que não vai sair da adolescência jamais – uma moça com jeito de anjo e um padre de determinação férrea.

A moça é Edie Doyle, irmâ do Joey que Terry mandou para a morte, embora sem saber. O velho pai dela e do bom rapaz assassinado, Pops Doyle (John Hamilton), poupou cada centavo que podia para botar a filha numa escola de freiras – e, com os cabelos louros claríssimos ao vento no deslumbrante preto-e-branco, a então iniciante Eva Marie Saint (que nos créditos iniciais aparece como sendo introduzida ao mundo do cinema no filme) de fato em várias sequências parece um anjo.

Edie, que estava de férias da escola das freiras quando o irmão foi morto, revela-se uma batalhadora ao anunciar para todos que iria fazer o possível para descobrir quem havia assassinado seu irmão.

E encontra todo o apoio no padre do bairro, o padre Barry – o papel do grande Karl Malden.

O padre Barry é um dos religiosos mais firmes, mais combativos, mais poderosos, mais fascinantes que já vi no cinema. Ele é o sujeito que pela primeira vez lança naquela comunidade a idéia de que é possível combater e derrotar o chefão, o ditador, o Mal em Si, o tal do Johnny Friendly.

As frases fortíssimas, claras como água da nascente do padre Barry mexem com os estivadores. Elas, e também a moça de cabelos claríssimos, mexem com cabeça um tanto sonsa, um tanto instável, um tanto perdida de Terry Malloy.

O padre Barry consegue explicitar para aquela turba de gente bronca, humilde, deserdada pela fortuna, pelo Sonho Americano, que a doutrina do D e B – deaf and blind, surdo e cego –, a doutrina do Delatar é o Pior Crime do Mundo, a doutrina mafiosa da omertà, ela só favorece os caras que ficam ricos com a pobreza da maioria.

Algumas das falas que Budd Schulberg criou para botar na boca do padre Barry são absolutamente antológicas – e, interessante, de repente me ocorre que algumas delas poderiam estar na boca do professor Sinigaglia, o ativista interpretado por Marcello Mastroianni em Os Companheiros de Mario Monicelli de 1963 que tenta organizar os operários têxteis do Norte da Itália no final do século XIX para resistir contra as condições desumanas de trabalho.

– “Não é tão simples quanto um, dois, três? Um: as condições de trabalho são ruins. Dois: elas são ruins porque é a Máfia que escolhe quem trabalha, E três: o único jeito de enfrentar a Máfia é impedir que eles continuem matando e escapando da Justiça!”

E:

– ”Algumas pessoas acham que a Crucificação aconteceu apenas no Calvário. Deveriam pensar melhor. Tirar a vida de Joey Doyle para impedir que ele desse seu testemunho é uma crucificação. E derrubar uma carga em cima de Nocaute Dugan porque ele estava pronto para contar tudo amanhã, isso também é uma crucificação. E cada vez que a Máfia bota pressão em cima de um homem bom, e tenta impedir que ele faça o que deve fazer como cidadão, isso é uma crucificação. E qualquer um que só assiste e deixa que isso aconteça, e não conta o que sabe que acontece, divide a culpa – tanto quanto o soldado romano que perfurou a carne do Nosso Senhor para ver se ele estava morto.”

Kazan falava de sua própria experiência

Omertà, o código de silêncio da Máfia. Não denunciar os crimes dos chefões que teoricamente são seus amigos, são do seu grupo.

Um dos elementos mais tristes de On the Waterfront são os garotos que têm imensa admiração por Terry Malloy, que cuidam com ele do viveiro de pombos no terraço do prédio pobre em que mora. Os garotos, adolescentes aí de uns 14 anos, provavelmente não entendem coisa alguma da vida, mas aprenderam desde sempre que denunciar, contar, relatar os crimes dos amigos é o maior de todos os crimes.

E é bastante óbvio que, quando mostra, já perto do final da narrativa, o ódio que os adolescentes passam a sentir de Terry Malloy porque ele enfim depôs contra o criminoso esquema de Johnny Friendly, e a solidão que Terry sente, Elia Kazan está falando de sua própria experiência.

Num momento você é um ídolo – no momento seguinte você é odiado, desprezado, como se fosse o pior criminoso da face da Terra.

Aconteceu com Terry Malloy, aconteceu com Elia Kazan.

Kazan foi chamado para depor diante do Comitê de Atividades Anti-Americanas. Era 1952, o auge da louca caça às bruxas empreendida pelo senador Joseph McCarthy, republicano de Wisconsin, em que se enxergavam comunistas em todos os lugares, até mesmo embaixo de camas da Casa Branca.

No documentário Uma Carta para Elia, que fez em 2010, juntamente com Kent Jones, o grande Martin Scorsese lembra que, no primeiro depoimento, Kazan não disse nada. No segundo depoimento, deu os nomes de oito pessoas do tempo de seu grupo de teatro no início dos anos 30, que, como ele, haviam pertencido ao Partido Comunista.

Deu os nomes de pessoas que já haviam sido citadas em outros depoimentos, que nunca haviam escondido suas simpatias pelo comunismo.

– “Claro que ele não foi o único a testemunhar”, relata Scorsese. “Mas, ao publicar uma carta no New York Times em que tentava se justificar e explicar, praticamente garantiu que ele seria a única pessoa de quem todos iriam se lembrar.”

A pecha de dedo-duro, traidor, filho da puta, perseguiria Elia Kazan por toda a sua longa vida.

Os personagens se baseiam em pessoas reais

Como indicam os créditos iniciais, a história criada por Budd Schulberg se baseia em fatos reais.

O repórter Malcolm Johnson escreveu uma série de 24 textos para o jornal The New York Sun, com o título geral de “Crime on the Waterfront”, que deu a ele um prêmio Pulitzer em 1949. Em 1948, o assassinato de um chefe de seção nas docas de Nova York chamou a atenção das autoridades e do público para os crimes e a corrupção que eram endêmicas ali. Segundo informa o IMDb, o roteirista Budd Schulberg (1914-2009) ficou impressionado com o tema, e leu tudo o que havia sido publicado sobre o trabalho nas docas da metrópole; entrevistou estivadores, membros de sindicatos e padres de paróquias próximas ao porto.

Vários dos personagens centrais se basearam em pessoas reais. Terry Malloy tem muito do estivador Anthony De Vincenzo, que de fato prestou depoimento às autoridades sobre crimes cometidos pelos chefões do sindicato. O bandidaço Johnny Friendly foi inspirado pelo mafioso Albert Anastasia. E padre Barry se baseou no padre John M. Corridan. O chapéu e o casaco negro que Karl Malden usa em diversas cenas do filme foram emprestadas a ele pelo próprio padre Corridan.

O tal do Anthony De Vincinzo entrou na Justiça em dezembro de 1954, poucos meses após a estréia de On the Waterfront, pedindo uma indenização de US$ 1 milhão ao produtor Sam Spiegel e à Columbia Pictures, alegando que sua privacidade havia sido invadida, que detalhes de sua vida haviam sido expostos no filme, como seu passado como lutador de boxe, seu trabalho como estivador, seu entusiasmo por pombos. Os produtores conseguiram fechar um acordo com ele em junho de 1956.

Assim na Terra como na tela: pouco depois do lançamento do filme (a estréia em Nova York foi em 28 de julho de 1954), a AFL-CIO, a todo-poderosa central sindical americana, expulsou o sindicato dos estivadores da Costa Leste, porque ele ainda era dirigido por pessoas ligadas à Máfia.

Kazan diria em entrevistas que, durante as filmagens, preocupou-se por estar trabalhando em locais onde havia gente de fato ligada à Máfia. O diretor acabou contratando um guarda-costas armado, Joe Marotta.

Um truquezinho para atrair Marlon Brando

As histórias em torno da escolha do ator que interpretaria Terry Malloy dariam um filme.

Consta que originalmente pensou-se no galã John Garfield, astro de O Destino Baté à Porta e Acordes do Coração (os dois de 1946), para o papel do protagonista. Garfield morreu em 1952, pouco antes do início das filmagens.

O produtor Sam Spiegel enviou o roteiro para Marlon Brando com o convite para fazer Terry Malloy. Brando havia estudado no Actors Studio, a importantíssima escola de atores fundada por Elia Kazan, Cheryl Crawford e Robert Lewis em 1947, e trabalhado duas vezes com o diretor – em Uma Rua Chamada Pecado (1951) e Viva Zapata! (1952). Por suas interpretações nesses dois filmes, havia sido indicado ao Oscar de melhor ator. Mesmo assim, a princípio ele recusou o convite. Há registros de que a recusa se deveu, é claro, ao fato de Kazan ter dado nomes diante do Comitê.

Com a recusa de Brando, Sam Spiegel procurou Frank Sinatra. Na verdade, segundo Richard Schickel, autor de uma biografia de Kazan, Sinatra era o ator preferido do produtor para o papel. Ele estava de novo num grande momento da carreira, depois do papel do soldado Angelo Maggio em A Um Passo da Eternidade, de 1953, pelo qual ganhou o Oscar de melhor ator coadjuvante.

Sinatra topou. Não chegou a assinar contrato, mas houve, como o biógrafo Richard Schickel define, “um acordo de aperto de mãos” com o produtor Spiegel.

Kazan, no entanto, ainda não havia desistido de tentar ter Marlon Brando no filme. O agente do ator, Jay Kanter, informava o diretor que continuava insistindo para que ele aceitasse o convite.

E aí aconteceu um truque.

Parece coisa de cinema, invenção de roteirista imaginativo, mas está lá na biografia de Kazan, há testemunhos. O IMDb conta a história.

A pedido de Kazan, o ator Karl Malden fez um teste com um casal bonito e jovem, alunos do Actors Studio, falando diálogos de Terry Malloy e Edie Doyle. E então, de alguma forma casual, mostraram o teste para Marlon Brando, confiando em que o ator ficaria com inveja daquilo e resolveria afinal aceitar o papel.

Os dois jovens aprendizes de atores que fizeram o teste se chamavam Paul Newman e Joanne Woodward. Eles se casariam pouco depois, em janeiro de 1958, fariam três filhos e um monte de filmes, e viveriam junto até a morte dele, em 2008.

Claro que não dá para saber o quanto ver o teste do jovem Paul Newman, mais belo que o deus Apolo, no papel de Terry Malloy pesou na decisão de Marlon Brando, ou se foram definitivos os argumentos do seu agente Jay Kanter, mas o fato é que o ator afinal topou.

O que deixou o sempre disposto a uma briga Francis Albert Sinatra furioso da vida. E ele foi à Justiça contra Sam Spiegel alegando quebra de contrato.

Sinatra foi um grande ator. Mas a verdade é que os cinéfilos devem agradecer a Deus – ou ao destino – por Marlon Brando ter finalmente aceitado o papel. Que, aliás, lhe deu o primeiro dos dois Oscars que ganhou (o segundo viria em 1973, pelo seu papel como Don Corleone em The Godfather, de Francis Ford Coppola.

Sobre a famosa sequência no banco de trás do táxi

Daria no mínimo, no mínimo, um ótimo média metragem, um filme aí de uns 60 minutos, a reconstituição de como foi a filmagem daquela que viria a ser a sequência tida como a mais antológica de On the Waterfront: o diálogo entre os irmãos Charlie e Terry Malloy, no banco de trás de um táxi rodando pela região do porto de Nova York.

Para o eventual leitor que não estiver se lembrando direito, o diálogo acontece já bem passada a metade dos curtos 108 minutos do filme. Johnny Friendly, que sabe de absolutamente tudo o que se passa em seus domínios, tinha sido informado de que ”o garoto” Terry estava se encontrando seguidamente com Edie Doyle, a irmã do cara que havia ameaçado depor e tinha sido lançado do terraço do seu prédio, e também com o tal do padre Barry. Johnny Friendly dá um ultimato a Charlie, seu braço direito e irmão mais velho de Terry: Charlie teria que ter uma conversa muito franca com o irmão mais novo e mais bobo, e dizer para ele claramente que das duas, uma: ou ele parava com aquelas besteiras, ou então ele já era.

Simples assim.

E então Charlie, na pele de Rod Steiger, entra num táxi com Terry-Marlon Brando, para terem uma conversa séria.

O motorista do táxi, que aparece durante pouquíssimos segundos, é interpretado por Nehemiah Persoff, um ator tão interessante quanto é complicado soletrar seu nome.

Marlon Brando, que, como foi mostrado aqui, fez fiofó doce antes de aceitar o papel que lhe daria o Oscar, tinha exigido que o contrato estipulasse que ele só trabalharia até as 16 horas.

Há registros de que, vários dias por semana, depois das 16 horas o ator de fiofó doce sentava o próprio diante de um shrink, um curador de cabeças. Havia perdido a mãe recentemente, e tinha muitos problemas familiares para contar ao psiquiatra.

De início, Brando e Steiger tentaram improvisar. Quando batiam a claque e diziam “luz, câmara, ação”, Brando se virava para o lado e comentava sobre o jogo de beisebol do time sei lá qual, e Steiger respondia alguma besteira qualquer.

Elia Kazan, o sujeito que não apenas criou o Actors Studio como também dirigiu 21 atores que tiveram indicações ao Oscar em seus filmes, dos quais nove levaram a estatueta para casa, mandou os dois pararem com aquela besteira e, diabo, falarem as falas que estavam na po… do roteiro.

Obedeceram, é claro.

Mas Brando tinha que sair cedo, e então aconteceu que as falas de Rod Steiger foram ditas para a câmara… enquanto não havia Marlon Brando ao lado dele para falar as frases de Terry.

Um técnico qualquer falava as frases de Terry.

Não é a mesma coisa que você estar ao lado do seu colega de elenco que interpreta o outro personagem com que você está conversando.

Rod Steiger ficou bastante puto da vida com o fato de Marlon Brando não estar lá para dizer as frases dele – enquanto ele, Steiger, falava direitinho as frases de Charlie para que Brando respondesse como Terry.

Rod Steiger não escondeu jamais sua bravcza. Falou da ausência do (teoricamente) companheiro em tudo quanto foi entrevista.

Ficaram sem falar durante anos.

A fala final de Terry Malloy naquele diálogo que impressionou o mundo é assim:

– “Você não entende. Eu poderia ter tido classe. Eu poderia ter sido um competidor. Eu poderia ter sido alguém, em vez de um vagabundo, que é o que eu sou, vamos enfrentar a verdade. Foi você, Charlie.”

O resto da frase, que não é dita, é óbvia: foi você que ferrou minha vida.

Eis as frases em inglês – dita daquele jeito Marlon Brando, que fala por Terry Malloy exatamente do jeito com que fala por Júlio César no filme de Josepeh L. Mankiewicz, do jeito com que fala por Don Corleone no The Godfather de Franis Ford Coppola. Exatamente do mesmo jeito com que falou por todos os personagens que interpretou ao longo da vida:

– “You don’t understand. I coulda had class. I coulda been a contender. I coulda been somebody, instead of a bum, which is what I am, let’s face it. It was you, Charley.”

Uma sequência maravilhosa, de babar, de aplaudir de pé

Na minha opinião, há em On the Waterfront sequências tão admiráveis quanto essa do “I coulda bem a contender”.

A sequência inicial, em que Terry Malloy atrai Joey Doyle para o telhado do prédio, de onde seria empurrado para o asfalto lá embaixo, A sequência que vem depois dessa do táxi, em que gritam por Terry da mesma forma em que ele havia gritado por Joey Doyle. A que vem logo em seguida, em que Terry e Edie fogem correndo de um caminhão que vem para atropelá-los, um brilhante uso de luz contra sombra, chiaroscuro.

Mas, para mim, a sequência mais extraordinária de todas deste filme de sequências extraordinárias é aquela em que Terry conta para Edie que foi ele que chamou o irmão dela para a morte – embora ele não soubesse naquele momento que era para a morte que estava chamando o colega.

Tudo acontece lá bem longe de onde a câmara está. A câmara está num lugar mais alto, onde vemos o padre Barry. Lá bem abaixo, lá bem longe estão Terry e Edie. Terry está revelando para a moça que já percebeu que ama que foi ele que matou o irmão dela. O espectador sabe que é isso que está acontecendo – mas as palavras não são ouvidas. A confissão dele é ofuscada pelo barulho altíssimo das buzinas, dos alarmes dos imensos navios no porto.

É cinema puro. Nenhuma outra forma de arte conseguiria mostrar aquilo.

É de uma beleza acachapante – tão acachapante quanto triste.

O papel da jovem loura foi oferecido a Grace Kelly

A página de Trivia – informações sobre a produção, curiosidades, fatos interessantes – do IMDb sobre o filme tem mais de 120 itens. Usei várias informações deles aí acima, e aqui vão alguns outros, com pitacos meus, evidentemente.

* O papel de Edie Doyle, a loura filha e irmã de estivadores, foi oferecido a Grace Kelly. Ela recusou para fazer, na mesma época, Janela Indiscreta, o segundo dos três filmes em que foi dirigida por Alfred Hitchcock. (Os outros, é claro, são Disque M Para Matar, 1954 também, e Ladrão de Casaca, 1955.)

* A maravilhosa cantora Rosemary Clooney, a tia do bonitão George, que também trabalhou como atriz, foi uma das mulheres que os realizadores pensaram para o papel de Edie Doyle. Elia Kazan ao fim decidiu-se por Eva Marie Saint.

* Eva Marie Saint tinha boa experiência tanto no teatro quanto na TV, mas nunca havia trabalhado no cinema. E já estreou com um papel que lhe deu o Oscar de melhor atriz coadjuvante.

* A personagem Edie Doyle não é coadjuvante, de forma alguma: Eva Marie Saint é a segunda pessoa que permanece mais tempo na tela, depois de Marlon Brando, é claro. A idéia de inscrevê-la como candidata ao Oscar na categoria de coadjuvante foi do produtor Sam Spiegel. E se provou uma excelente idéia. Na categoria de atriz principal, a disputa naquele ano foi bravíssima. Judy Garland concorreu por Nasce uma Estrela; Audrey Hepburn, por Sabrina; Dorothy Dandrige, por Carmen Jones; Jane Wyman, por Sublime Obsessão. O prêmio ficou com Grace Kelly, por aquela que é muito provavelmente a melhor atuação de sua carreira, em Amar é Sofrer/The Country Girl.

* Três atores que fazem papel dos guarda-costas de Johnny Friendly haviam sido lutadores profissionais de boxe: Tony Galento, Tami Mauriello e Abe Simon.

* Muitos dos extras que trabalharam no filme eram na verdade estivadores de Hoboken, Nova Jersey, onde boa parte do filme foi rodada, em locação, fora dos estúdios. Por coincidência, Hoboken é a cidade natal de Frank Sinatra.

* Embora Rod Steiger faça o papel do irmão mais velho de Terry Malloy, na vida real Brando era um ano mais velho do que ele.

* Terry Malloy é um homem aí de uns 30 anos – essa idade é até mencionada num diálogo por seu irmão Charlie. Já Edie Doyle é ainda uma adolescente, ainda estuda no colégio de freiras. No entanto, Eva Marie Saint é do mesmo ano de Brando, 1924 – ambos estavam com 30 anos em 1954, o ano de lançamento do filme.

* Depois de sua estréia ao lado de Marlon Brando, Eva Marie Saint contracenaria com alguns dos mais belos atores do cinema americano: Montgomery Clift em A Árvore da Vida (1957), Cary Grant em Intriga Internacional (1959), Paul Newman em Exodus (1960), Warren Beatty em O Anjo Violento (1962).

* On the Waterfront é o único filme não musical com trilha sonora composta pelo grande maestro e compositor Leonard Bernstein. Ele aceitou compor a música para o filme depois de assistir à projeção de um versão ainda não acabada ao lado de Kazan e Brando.

* Brando recebeu US$ 100 mil pelo papel. Para aparecer durante uns poucos minutos como o pai do Super-Homem em Superman, de 1978, ele ganharia US$ 3 milhões. Elia Kazan recebeu os mesmos US$ 100 mil que o ator – mais 25% da bilheteria do filme.

* O orçamento total do filme foi de cerca US$ 1 milhão – mas só no lançamento inicial ele faturou US$ 10 milhões.

* Com seus 30 anos, Marlon Brando foi o ator mais jovem, até então, a ganhar o Oscar de melhor ator. E foi também o primeiro a conquistar o Oscar, o Globo de Ouro e o Bafta como melhor ator pelo mesmo filme.

* Com seus oito Oscars, foi o filme com mais estatuetas da Academia, empatado com …E o Vento Levou (1939) e A um Passo da Eternidade (1953). Esse recorde seria batido em 1959 por Ben-Hur, de William Wyler, que levou 11.

O filme está em todos os livros dos melhores

O Vaticano selecionou o filme para a lista de 45 “grandes filmes” sobre valores, informa o IMDb. Merecidamente. Eta padre sensacional esse interpretado por Karl Malden.

O filme foi selecionado também para os livros 1001 Filmes Para se Ver Antes de Morrer, de Steven Jay Schneider, Movies of the the 50’s, de Jürgen Müller, 501 Must-See Movies, de Polly Manguel, Hollywood Picks the Classics, de Afton Fraser, e para a lista de Great Movies de Roger Ebert.

Ganhou a cotação máxima de 4 estrelas nos guias de Leonard Maltin, e de 5 estrelas no Cinebooks’ Motion Pictures Guide.

Mas, diabo, não vou transcrever trechos desses livros agora. Este texto já está grande demais da conta até mesmo para os meus padrões.

Anotação em maio de 2021

Sindicato de Ladrões/On the Waterfront

De Elia Kazan, EUA, 1954.

Com Marlon Brando (Terry Malloy)

e Karl Malden (padre Barry),

Eva Marie Saint (Edie Doyle),

Lee J. Cobb (Johnny Friendly), Rod Steiger (Charley Malloy, o irmão mais velho de Terry), Pat Henning (Nocaute Dugan), Leif Erickson (Glover), James Westerfield  (Big Mac), Tony Galento (Truck), Tami Mauriello (Tillio), John Hamilton (Pop Doyle, o pai de Edie), John Heldabrand (Mott), Rudy Bond (Moose), Don Blackman (Luke), Arthur Keegan (Jimmy), Abe Simon (Barney), Barry Macollum (J.P.), Mike O’Dowd (Specs), Martin Balsam (Gillette), Fred Gwynne (Slim), Thomas Handley (Tommy), Ann Hegira (Mrs. Collins), Pat Hingle (o cara do bar), Nehemiah Persoff (o motorista do táxi)

Roteiro Budd Schulberg, com base em história original dele mesmo

Sugerido por artigos de Malcolm Johnson

Fotografia Boris Kaufman

Música Leonard Bernstein

Montagem Gene Milford

Direção de arte Richard Day

Produção Sam Spiegel, Columbia Pictures. DVD Columbia.

P&B, 108 min (1h48)

Disponível em DVD.

R, ****

5 Comentários para “Sindicato de Ladrões / On the Waterfront”

  1. O que se pode falar de algo tão extraordinário quanto esse filme, que ainda tem por cima Marlon Brando, antes de se torna um ator que depois de Apocalipse Now, nunca mais quis atuar de verdade, e que ele próprio disse em sua autobiografia que depois de O Último Tango em Paris, ele não ia se força mais, e ninguém perceberia, mas oh! Marlon, como a gente percebeu! Tudo é sublime aqui.

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