
(Disponível no YouTube em 5/2025.)
É uma experiência muito interessante ver hoje, quase um século depois do seu lançamento, em 1932, este Ave do Paraíso/Bird of Paradise, uma produção ousada, impressionantemente bem realizada, visualmente poderosa ainda agora, décadas depois das CGI, as imagens geradas por computador, e em plena era da IA.
Muito interessante, fascinante mesmo – e um tanto inquietante, assustador.
Não consigo imaginar o que achariam do filme as pessoas mais jovens, acostumadas aos efeitos mais que especiais, e pouco familiarizadas com filmes tão antigos. Eu mesmo, um fanático por produções das primeiras décadas do cinema, me senti desconfortável em diversos momentos do filme, achando aquilo uma grande bobagem, com muita coisa beirando o mais profundo ridículo.
Uma sinopse curta – e bastante brincalhona – poderia ser assim:
Homem branco apaixona-se filha de rei ilha Mares do Sul. Moça apaixona-se homem branco. Mas ninguém pode tocar filha de rei, só príncipe de outra ilha. É tabu. Se homem branco pegar filha de rei, vulcão explode. Pra dar jeito nisso, só jogando filha de rei dentro vulcão.
Evidentemente isso é uma brincadeira.
A trama é bem isso aí mesmo, mas obviamente o filme tem que ser visto como uma fábula, uma metáfora – e em seu contexto, a época em que foi feito.
Mais ainda que de um choque cultural, trata-se ali de duas visões distintas do mundo, da vida – a das sociedades ditas “civilizadas”, com todos os seus quase infinitos problemas, e a das sociedades dos povos originários, em que se vive de fato em comunhão com a natureza. Na primeira, as pessoas se apegam a bens materiais – e para conquistá-los lutam entre si, competem, disputam, muitas vezes perdem a vida. Na outra, as pessoas são unidas, solidárias – e felizes.
E a identificação dos habitantes originários das ilhas dos Mares do Sul de uma maneira geral, ou especificamente da Polinésia, com o ideal da felicidade, era algo muito difundido, cantado em verso, prosa e telas. Desde, talvez, a paixão do pintor Paul Gauguin pelo Taiti, onde se refugiou dos males da civilização nos anos 1890. Depois de passar uma temporada em Samoa, o escritor inglês W. Somerset Maughan escreveu sobre a vida das ilhas do Pacífico Sul em vários de seus admiráveis contos. Seu livro de contos The Trembling of a Leaf , publicado em 1921 – exatos 11 anos antes, portanto, do lançamento deste Pássaro do Paraíso -, tem o subtítulo Little Stories of the South Sea Islands. No Brasil, foi lançado como Histórias dos Mares do Sul.
Um dos contos, “The Fall of Edward Barnard”, no Brasil “O Degenerado”, vai fundo especificamente nessa distinção entre a civilização enfumaçada, poluída, apressada, competitiva, e a calma, o relaxamento, a beleza paradisíaca das ilhas dos Mares do Sul.
E, em 1931, o alemão F.W. Murnau lançou Tabu: A Story of the South Seas, em que a idílica história de amor de um jovem casal vira tragédia quando o chefe tribal declara a garota como virgem sagrada.
Não foi possível deixar de pensar em Tabu ao ver este Pássaro do Paraíso, lançado no ano seguinte.
Há muitos outros exemplos dessa fascinação da literatura e do cinema pela vida nas paradisíacas ilhas dos Mares do Sul. Um deles é O Grande Motim/Mutiny on the Bounty, de 1935, uma superprodução da Metro com Clark Gable e Charles Laughton em que o personagem interpretado pelo galã Gable tem um caso com uma nativa do Taiti linda de morrer. Em 1962 foi lançada uma refilmagem, com o mesmo título, e Marlon Brando e Trevor Howard nos papéis principais.
E aí há um tanto de a vida imita a arte: exatamente como Johnny, o protagonista deste Ave do Paraíso, Marlon Brando se apaixonou por uma nativa ali das ilhas – Tarita, a garota de Bora Bora escolhida para fazer o papel de Maimiti naquele segundo O Grande Motim. E Marlon Brando fez o que Johnny queria fazer com Luana, a ave do paraíso: levar a moça para casa. Casaram-se em 1962, viveram dez anos juntos, e ela deu ao astro dois filhos.

Luana, a linda nativa, é o papel de Dolores Del Río
Johnny é o papel de Joel McCrea, fina estampa até a velhice, corpinho enxuto aos 27 aninhos na época do lançamento do filme, já com cinco anos de carreira, mais de uma dezena de títulos na filmografia – mas ainda demoraria um pouco para que brilhasse como protagonista em Correspondente Estrangeiro (1940), de Alfred Hitchcock, e Contrastes Humanos (1941), de Preston Sturges. Ainda não era um grande astro – tanto que, embora Johnny apareça na tela mais tempo do que a atriz que faz a nativa Luana, o nome dela é o que aparece primeiro nos créditos iniciais e nos cartazes do filme.
Dolores Martínez Asúnsolo y López Negrete, ou simplesente Dolores Del Río, mexicana de Durango, a “female Latin Lover”, como era chamada, estava com 28 anos, e já era uma grande estrela em Hollywood.
Johnny era um dos muitos tripulantes de um navio americano que viajava até as ilhas dos Mares do Sul, não se sabe exatamente para fazer o quê – o roteiro, escrito a seis mãos, por Wells Root, Wanda Tuchock & Leonard Praskins, baseado em peça teatral de Richard Walton Tully, não se preocupa em explicar esse detalhinho. O fato é que o navio chega a uma pequena ilha – e, quando está se aproximando, é cercado por um grande número de pequenas canoas cheias de nativos aparentemente já acostumado a receber aquele tipo de visita.
Vários tripulantes lançam quinquilharias ao mar, para agradar aos nativos. Muitos deles se lançam ao mar para pegar as prendas, para se exibir.
Nisso, os tripulantes avistam um tubarão. Johnny se prepara para lançar um arpão contra o bicho, o arpão amarrado em uma corda, para ser depois recolhido. A corda se enrola no pé dele, e Johnny cai no mar. Uma nativa espertíssima, safa, que havia recolhido uma faca lançada pelos homens brancos do navio, mergulha e corta a corda, para liberar o branquelo.
A nativa espertíssima, veremos logo, se chama Luana. Além de espertíssima, é bela, corpo perfeito, maravilhoso.
Será amor à primeira vista. Paixão total e absoluta. Coup de foudre, como dizem naquele país que ama o cinema sobre quase todas as coisas.
O navio iria ainda viajar para mais ao Sul, e depois retornaria para os Estados Unidos. Johnny conversa com os amigos, diz que vai ficar na ilha – quando o navio estiver voltando, aí ele embarcaria.
Este é o comecinho do filme.

A fotografia é de uma qualidade impressionante
Ave do Paraíso foi produzido por David O. Selznick, um dos mais poderosos chefões de estúdio da história de Hollywood – o cara que produziu … E o Vento Levou (1939), que importou o inglês Alfred Hitchcock e a sueca Ingrid Bergman.
A intenção de Selznick e do diretor King Vidor – que ele pediu emprestado à MGM – era fazer o filme no Havaí. Toda a equipe e os atores viajaram até o arquipélago e tentou-se iniciar as filmagens. Foi um azar que parecia vingança dos deuses das ilhas do Pacífico: o tempo esteve péssimo, com chuvas e mais chuvas, ao longo de 24 dias seguidos, segundo o livro The RKO Story. Os realizadores então desistiram, e a tropa toda voltou para Hollywood.
Parte do filme foi rodada nos estúdios da RKO Radio Pictures em Hollywood, e cenas de praia foram feitas na Ilha de Santa Catalina, bem próxima da costa da Califórnia. As sequências submarinas – e são muitas, muitas, inclusive de Dolores Del Río nuazinha – foram feitas no grande tanque dos estúdios da Warner Bros.
Sim: Dolores Del Río foi filmada peladinha em sequências debaixo d’água. Mas não há tomadas frontais – o privilégio de ter sido a primeira mulher a aparecer nua em tomada frontal pertence a Hedy Lamarr, em Êxtase, produção da então Checoslováquia lançada em 1933, um ano depois deste Ave do Paraíso. Não há tomadas frontais; como diz o IMDb, “tudo o que pode ser visto são suas nádegas expostas e um breve vislumbre do lado de um seio; seu lado frontal fica escondido nas sombras”.
As sequências submarinas são de grande beleza, assim como as muitas que mostram grande quantidade de botes dos nativos no mar. Há uma cena impressionantemente bem executada em que a canoa com motor de popa de Johnny é pega num redemoinho. Toda a fotografia do filme – assinada por três diretores, Lucien N. Andriot, Edward Cronjager, Clyde De Vinna – é de uma qualidade extraordinária.
Algumas informações sobre o filme e sua produção, tiradas da página de Trivia do IMDb, com um ou outro pitaco meu:
* O filme foi um fracasso nas bilheterias. Segundo estimativas da RKO, ele causou um prejuízo de US$ 250 mil.
* Quase 20 anos depois, em 1951, houve uma refilmagem da história, dirigida por Delmer Daves, com o galã Louis Jourdan e a bela Debra Paget nos papéis centrais.
* Três anos depois do lançamento deste Ave do Paraíso, o Código Hays, o conjunto de regras de censura aceito pelos estúdios, passou a proibir filmes com casais mistos, de cores de pele diferentes. Foi exatamente a partir de 1934 que o código se tornou muito mais rígido. Dá para dizer com segurança que as cenas de nudez (embora bem sutis) de Dolores Del Río não teriam sido aceitas caso o filme fosse realizado depois do endurecimento da censura em 1934.
* Bispos católicos criticaram as cenas em que Dolores Del Río nada nua. E o filme foi citado como um dos exemplos de ousadias de Hollywood contra as quais foi criada em 1933 a Legião Católica de Decência.
* As danças dos nativos – e há várias delas ao longo do filme – foram coreografadas por ninguém menos que Busby Berkeley, o mago das sequências de dança com dezenas e dezenas de pessoas.
* A vila dos nativos, com várias cabanas de palha e madeira, foi construída no terreno dos estúdios RKO-Pathé Studios, em Hollywood, e seria depois reutilizada no clássico King Kong. de 1933.
* A trilha sonora é de autoria de Max Steiner, um dos grandes compositores da era de ouro de Hollywood. É uma trilha grandiosa, executada por uma orquestra sinfônica – e foi a primeira trilha a ser lançada em disco.
* Depois de ver o filme, Orson Welles afirmou que Dolores Del Río era “o mais alto ideal erótico” para qualquer homem. Anos mais tarde, os dois se conheceram e se tornaram amantes; nessa época, ela ainda estava casada com seu segundo marido.

“Melodrama pesado”, “vazio”, “história antiquada”…
Ficou faltando justificar aquela afirmação feita lá no início de que o filme tem muita coisa beirando o mais profundo ridículo. Bem. Acho que basta dizer que Luana, a nativa, aprende, em poucos dias, a falar inglês.
O livro The RKO Story concorda comigo: “Os amantes de culturas diferentes Del Río e McCrea fizeram tudo certo nas cenas sensuais de amor, mas sua atuação criou diversos momentos não intencionalmente engraçados, como os trechos em que McCrea instrui a princesa da ilha sobre o idioma inglês”. Segundo o livro, o principal problema do filme é a história: “uma sucessão de roteiristas da RKO não foi capaz colocar o original escrito por Richard Walton Tully acima do nível de melodrama pesado”.
Leonard Maltin deu ao filme 2 estrelas em 4: “Romance nos Mares do Sul exótico mas vazio com McCrea como aventureiro que se apaixona pela garota nativa Del Rio. Bonito, mas não comovente; refilmado em 1951.”
Pauline Kael avaliou assim: “O diretor, King Vidor, e seus associados fizeram quase milagres com essa antiquada história (adaptada de um melodrama teatral) sobre uma princesa da Polinésia (Dolores Del Río) cujo amor por um homem branco (Joel McCrea) resulta em que ela é punida pelos religiosos polinésios (e aqui Dame Kael conta o final da história). As falas são assustadoramente tolas, mas a fotografia rica, palpável de Clyde De Vinn, a folhagem das locações e a trilha exuberante de Max Steiner contribuem para alguns efeitos altamente românticos.”
Anotação em maio de 2025
Ave do Paraíso/Bird of Paradise
De King Vidor, EUA, 1932
Com Joel McCrea (Johnny Baker),
Dolores del Río (Luana),
John Halliday (Mac), Richard “Skeets” Gallagher (Steve), Bert Roach (Hector), Lon Chaney Jr., com seu nome de batismo, Creighton Chaney (Thorton), Wade Boteler (Johnson), Arnold Gray (Walker), Reginald Simpson (O’Fallon), Napoleon Pukui (o rei), Agostino Borgato (o curandeiro), Sofia Ortega (a velha nativa)
Roteiro Wells Root & Wanda Tuchock & Leonard Praskins
Baseado na peça teatral de Richard Walton Tully
Fotografia Lucien N. Andriot, Edward Cronjager, Clyde De Vinna
Música Max Steiner
Montagem Archie Marshek
Direção de arte Carroll Clark
Casting Lynn Shores
Produção King Vidor, David O. Selznick, RKO Radio Pictures
P&B, 80 min
**1/2
