
(Disponível na Globoplay em 2/2025.)
Em 2022, exatos dez anos após Cine Holliúdy, o primeiro filme brasileiro com legendas em português por ser falado no mais arretado cearencês, Halder Gomes atacou com Bem-Vinda a Quixeramobim – e de novo, acertou em cheio.
É uma comédia deliciosa, impagável, alto astral, de bem com a vida, danada de bem realizada, da trama à fotografia, à direção de arte, passando pelas interpretações, todas boas, às vezes exageradas, é claro – mas, diacho, é uma comédia escrachada, siô!
E que delícia essa Monique Alfradique, de quem o ignorante aqui jamais havia ouvido falar… Que bela surpresa foi essa niteroiense da classe de 1986, a mesma geração de Keira Knightley, Carey Mulligan, Lindsay Lohan, Phoebe Waller Bridge.
A base da trama é uma absoluta maravilha, um achado, e o roteiro a apresenta de cara, logo no comecinho do filme. A protagonista da história, Aimée, interpretada por Monique Alfradique, é uma socialite, dondoca, filha de milionário, que tem canais nas redes sociais. Uma influencer: fala bobagens sobre moda, beleza, viagens, com exatamente aquele jeitinho chato, bocó, das 231 mil influencers que há na praça, e que minha neta de 11 anos adora imitar…
Na primeira sequência, Aimée está à beira da bela piscina da casa em que vive com o pai viúvo falando as asneiras de sempre diante do celular quando… os homens da PF estão levando papai preso, acusado de todo tipo possível de corrupção, apropriação indébita, rachadinhas, etc, etc, etc…
Rapidinho, Aimée se dirige a seus influenciados dizendo que vai sair para um período sabático – e, em pânico, procura ajuda do dr. Alexandre (Luís Miranda), o advogado do pai. O dr. Alexandre explica que tudo, todos os bens do pai haviam sido congelados pela Justiça; os cartões de crédito dela, suspensos. Ele esperava que ela tivesse ao menos um bom estoque de verdinhas em casa, até que ele conseguisse ver o que poderia fazer para defender o pai das acusações.
Parece que Aimée, cabeça de vento, nem tinha bom estoque de dólares coisa alguma. Mas, meio por sorte, ela descobre que a falecida mãe tinha uma bela propriedade… em Quixeramobim.
A única esperança que ela tem de conseguir algum dinheiro é ir até lá e vender a fazenda da mãe.
Meu, que maravilha de ponto de partida de uma comédia arrasadoramente escrachada!

Trama deliciosa – e tipos fantásticos, fascinantes
Do aeroporto de Fortaleza, onde desembarca vinda de São Paulo, até Quixeramobim, Aimée enfrenta uma epopéia duríssima, que inclui um acidente com o carro usado e bem velho que consegue alugar, a visita a um banheiro absolutamente imundo de posto à beira de estrada, e uma viagem em um caminhão de paus-de-arara abarrotado de gente.
Durante essa viagem no caminhão, o diretor Halder Gomes se permite uma sequência magistral, fantástica. Diante de um problema inesperado na estrada, o motorista é obrigado a frear de repente – e aí aquelas 12, 15 ou mais pessoas na boléia, mais os lanches que estavam fazendo, a farinha, as bolsas, tudo começa a voar, em câmara lenta e ao som do “Danúbio Azul”.
Ah, meu, que maravilha: uma dondoca paulista e mais de uma dúzia de cearenses voando em câmara lenta ao som de “Danúbio Azul”, numa deliciosa homenagem ao 2001: Uma Odisséia no Espaço de Stanley Kubrick!
Tão gostosa como a idéia base da trama e como essa sequência na odisséia da dondoca até o mais fundo sertão nordestino é a plêiade de figurinhas carimbadas que Aimée vai encontrar em Quixeramobim.
* Eri (Max Petterson, na foto abaixo, excelente) é um garotão aí de uns 25 anos, esperto, safo, descoladíssimo e – como a gente podia dizer na boa antes das patrulhas do politicamente correto – veadinho, bichinha. Conhecia Aimée das redes sociais, a seguia, era seu fã, e fica absolutamente fascinando com a presença de sua ídola ali em Quixeramobim.
Passará a ser o braço direito dela ali naquele admirável mundo novo do sertão cearense – e, em sequências de imensa criatividade e talento, vai conseguir criar imagens de Aimée nos arredores de Quixeramobim que, nos canais dela, vão parecer que ela esteve passeando por Paris, por Roma, pela China, em safári na África, o escambau.
Há um detalhinho delicioso aí: o ator Max Petterson, cearense de Crato, da classe de 1994, é, ele próprio, esperto, safo, descoladíssimo – e youtubber. Aos 20 anos, em 2014, foi para a França, estudou na Universidade de Paris-VIII e documentou a vida na capital francesa no YouTube, com mais de 33 milhões de visualizações.
Pois é. No Ceará tem disso, sim.

* Shirleyanny já começa a ser divertida no próprio nome – e Halder Gomes já havia se divertido com essa mania de as pessoas mais simples, com menos acesso à educação, escolherem nomes escalafobéticos para os filhos em Cine Holliúdy, em que o herói se chama Francisgleydisson.
Como Max Petterson, a atriz que interpreta Shirleyanny está maravilhosa no papel: chama-se Chandelly Braz, na certidão de nascimento Chandelly Paloma Pimentel Braz, mineira de São Domingos do Prata, classe de 1985.
Shirleyanny com dois ypsilons é a faz-tudo da pensão-puteiro de Dona Genésia, onde vai acontecer de Aimée procurar um quarto. É bonita, safa, esperta – e franja, sapatinha. Fica doida de pedra com a loura que chega do Sul Maravilha.
* Dona Genésia, a cafetina (o papel de Valéria Vitoriano, que também está ótima), é, obviamente, uma mulher de coração imenso, uma excelente pessoa – e, para surpresa de todos, havia sido amiga-irmã da falecida mãe de Aimée.
* Dona Amélia (Araci Breckenfeld, ótima) é a crente do pedaço, a que enxerga o cheiro do demo em tudo – e, diacho, naquela Quixeramobim que o filme mostra, com o puteiro da Dona Genésio atraindo ampla freguesia, com todo mundo falando mais palavrão que mafioso em filme de Martin Scorsese, o que não falta é coisa pra Dona Amélia dizer que é do demo… Só que tem uma hora lá em que Dona Amélia, como tantos e tantos santinhos do pau oco que dizem defender a família, mostra-se mais tarada que todos os demais cearenses que Quixeramobim…
* Darlan é o sujeito que mora na fazenda que havia sido da mãe de Aimée. Garante que comprou a propriedade, que tem os documentos no cartório para provar – mas é claro que não tem documento coisa alguma. Estabelece-se entre ele e a herdeira da fazenda, a loura que chegou de São Paulo, uma relação de profundo antagonismo.
Darlan é o papel de Edmilson Filho, a ator que, exatamente como o diretor Halder Gomes, é praticante (e mestre) de taekwondo, e fez o papel principal em Cine Holliúdy, o de Francisgleydisson.
Qualquer espectador que já tiver visto mais de uma comédia romântica sabe que, quando a mocinha estabelece uma relação de profundo antagonismo com um sujeito – mesmo que à primeira vista ele pareça meio mau caráter –, aí tem… Ainda mais se ele é o único mais ou menos da idade da mocinha e não é gay. Ainda mais se o sujeito é interpretado por um ator importante.

Um realizador que demonstra talento de sobra
Sim. Não tem erro, não dá outra – lá pelas tantas, bem lá pelas tantas, Aimée resolve sair pela noite de Quixeramobim, e, diante do bar do Seu Aurenizo (Falcão), encontra Darlan tomando uma cerveja. Cerveja daqui, cerveja dali, alguém fala em Flashdance, e a influencer mex-milionária e o cabra da peste engatam uma dança engraçadíssima, e aí… Quem adivinhar o que vem a seguir ganha dois tostões furados, porque essa é fácil demais.
Muito palavrão, muita referência a sexo, e muita cerveja. Estes são três elementos fundamentais em Bem-vinda a Quixeramobim.
Fala-se muito em cu da Bia. Na verdade, é o jeito cearense de dizer Kool Beer, o nome da cervejaria que construiu uma fábrica ali no município. E, para poder funcionar, para produzir cerveja, a empresa modificou o curso do rio que passava ali pela região e alimentava o açude da cidade, e portanto as casas das pessoas. A empresa, a representante do Capitalismo Selvagem, havia desviado o curso do rio exatamente na área da fazenda que pertencia de fato à mãe de Aimée
Esses elementos são fundamentais no desenrolar da trama a partir ali da metade do filme. Não é o caso de relatar mais nada da história. Mas posso dizer, com a segurança de não estar dando spoiler algum que, faltando uns 20 minutos para o fim do filme, comentei com a Mary algo assim: vixe, como é que eles vão resolver esse problema criado pela trama?
Eles souberam como resolver. E resolveram muito bem.
O roteiro original é assinado por L.G. Bayão, Halder Gomes, Marina Morais e Márcio Wilson. Olha, estão de parabéns. Criaram uma delícia de história a partir daquele achado brilhante da milionária socialite influencer que de repente fica pobre de marré-de-ci e tem que ir parar em Quixeramobim.
E Halder Gomes fez um ótimo filme com a trama que o grupo criou. Eis aí mais um realizador brasileiro que demonstra talento de sobra – inclusive na difícil arte de dirigir atores.
Bem, esta é a minha opinião. A Wikipedia registra que o filme “obteve recepção mista para positiva dos críticos de cinema, no qual elogiaram a atuação do elenco mas criticaram o desenvolvimento do roteiro”.
Alguns registros necessários.
Ao final da narrativa, os realizadores dedicam o filme ao humorista, ator, diretor, roteirista e apresentador Paulo Gustavo, morto em maio de 2021. E sua frase famosa é reproduzida em corpo gigantesco: “Rir é um ato de resistência”
O filme foi o vencedor do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro 2023 na categoria de Melhor Longa Metragem Comédia. Era a 22ª edição do prêmio entregue pela Academia Brasileira de Cinema e Artes Audiovisuais.
Embora lançado em 2022, o filme foi rodado entre os meses de outubro a dezembro de 2020. Portanto, em plena pandemia da Covid-19.
Mais um ponto para os realizadores. Fantástico: conseguiram realizar este filme delicioso quando o mundo estava enfiado no fundo do poço da pandemia!
Anotação em 2025
Bem-vinda a Quixeramobim
De Halder Gomes, Brasil, 2022
Com Monique Alfradique (Aimée)
e Edmilson Filho (Darlan),
Max Petterson (Eri), Chandelly Braz (Shirleyanny), Valéria Vitoriano (Genésia, a dona da pensão-puteiro), Araci Breckenfeld (Amélia Lina, a crente), Luís Miranda (Doutor Alexandre), Silvero Pereira (Eron Kool Bier), Falcão (Seu Aurenizo, o dono do bar), Carri Costa (Do Contra), Amadeu Maia (policial federal), Mateus Honori (Zé Qualé), Haroldo Guimarães (Seu Amâncio), Roberta Wermont (Dona Clemilda), Paulo Sérgio Bolachinha (Meiota), Arthur Kohl como Olavo (o pai de Aimée)
Roteiro L.G. Bayão, Halder Gomes, Marina Morais, Márcio Wilson
Baseado em história de Cadu Pereira
Fotografia Carina Sanginitto
Montagem Helgi Thor
Desenho de produção Juliana Ribeiro
Produção Mayra Lucas, Glaz Entertainment, Globo Filmes, Downtown Filmes.
Cor, 106 min (1h46)
***1/2

Um comentário para “Bem-vinda a Quixeramobim”