(Disponível na Netflix em 5/2024.)
Cine Holliúdy (2012), o filme que vem com legendas em português porque é falado no mais arretado cearensês, tem um defeito: ele ainda nem terminou e você já quer ver de novo.
Sim, porque é tanta criatividade, tamanha a quantidade de informação, tanta piada boa, gostosa – visual e em palavras –, que é humanamente impossível captar tudo vendo apenas uma vez o surpreendente, delicioso, fantástico filme de Halder Gomes.
A primeira piada – que contei na primeira frase desta anotação – vem de cara, assim que o filme começa. Um letreiro informa, em grandes letras brancas sobre fundo negro: “Vocês vão assistir ao primeiro filme nacional falado em ‘cearensês’, por isso, as legendas”. OK, tem uma vírgula desnecessária aí depois do “por isso”, mas só vê esse detalhínhozinho um copydesk maníaco que nem eu.
É uma delícia de idéia, uma bela sacada, a primeira de um turbilhão de idéias deliciosas, belas sacadas que virão nos 90 minutos seguintes.
Depois do aviso sobre o primeiro filme nacional em cearensês, entram os logotipos das companhias produtoras e de quem deu apoio à realização, e entre os apoiadores estão o governo municipal de Pacatuba e AFG Taekwondo Instituto Fabio Goulart. É interessante isso, um apoio de um pobre município do interiorzão do Ceará e uma academia de artes marciais, mas a menção a eles na abertura do filme não é piada – vai-se falar tanto de Pacatuba quanto de taekwondo,
Vem piada logo após os nomes de produtores e apoiadores. A reprodução daqueles antigos Certificados de Censura que costumavam aparecer no início dos filmes antigamente ocupa toda a tela – e, no campo “justificativa de impropriedade”, lemos: “Este filme contém cenas de cearensidade explícita.”
Ah, meu… Que delícia!
O ator principal parece ter nascido para fazer esse papel
E em seguida vem novo letreiro, letras brancas sobre fundo negro – mas aí não é piada. É a contextualização, a explicação – séria – para o espectador sobre o que ele vai ver: “Na década de 70, a chegada em massa da TV colocou em xeque as salas de cinema do interior do Ceará. Mas um herói, chamado Francisgleydisson, resolveu lutar…”
A primeira tomada do filme – um close-up em plongée – mostra aquelas latas redondas que continham os rolos de filmes. As latas estão empoeiradíssimas, e uma mão tira o pó de cima delas para que o espectador leia o que está escrito nelas, à mão, em letras maiúsculas: “Das memórias e imaginação de Halder Gomes”. E aí entra uma musiquinha naquele estilo chinês, uma foto de Francisgleydisson, sua mulher, Graciosa e Francisgleydisson Filho – os dois homens em pose de quem se prepara para uma luta de taekwondo. Em seguida, fotos – em sépia – dos atores e a identificação dos personagens que eles interpretam: “o prefeito, a oposição, os enviados divinos, o galã, as concorrentes, os homens da lei, os loucos de futebol, o seboso, o Ciço, o chato, a pivetada, a mulher dos sonhos, a mulher da TV, o pirangueiro, o cego sedento, a espilicute, o simiofóbico, os gêmeos intelectuais, a Vanderléa, o caso da Vanderléa, o afilhado do King Kong”…
E chegamos ao título, CINE HOLLIÚDY.
Logo depois dele, tomadas de luta marcial, em sépia. E essas tomadas de luta marcial, e várias outras que virão ao longo do filme, são fuleiras, vagabundas, numa coreografia propositalmente ridícula – e pândegas, engraçadíssimas.
Corta, e estamos – agora em cores, claro – na sala da família Francisgleydisson Peixoto da Silveira. Pai, mãe e filho estão jantando, e é como se eles tivessem acabado de ver o filme de lutas marciais cujo trechinho o espectador viu. Diz Francisgleydisson Filho, o Francin:
– “Égua, pai! Essa história é muito joiada!”
Francis, o pai: – “E os ninjas eram mais invocados do que corrida de pato”.
Francin: – “Tu é doido! Os cabras quase arrancaram o couro do sobrinho do King Kong.”
Graciosa tenta trazer o marido para o chão, para o planeta Terra: – “Francis, nós precisamos conversar.”
Graciosa é o papel de Miriam Freeland. Francin, o de Joel Gomes, um garotinho simpaticíssimo, rostinho bonito, todo jeito de esperto, safado, safo. Francis é interpretado por Edmilson Filho, um sujeito que nasceu (em Fortaleza, em 1976) para fazer o herói desta história.
Uma história simples, contada com muito brilho
A base da história criada e roteirizada por Halder Gomes é simples, e parte daquela realidade de que no Ceará (como, de resto, em todo o Brasil, certamente em todo o mundo) a chegada em massa da TV fez diminuir muito a frequência das salas de cinema, em especial nas pequenas cidades. Francis é um sujeito absolutamente apaixonado por cinema, pela mulher e pelo filho e por taekwondo, e tinha um cinema em uma cidade do interior que foi invadida pela TV, resultando em redução drástica da renda na bilheteria.
Assim, sob a pressão de Graciosa, Francis vende tudo o que tinha e embarca na querida Vanderléa (uma Variant tão velha quanto adorada pelo dono) em busca de uma cidade menor, que ainda não tivesse aparelhos de TV na praça central e na maioria das casas.
Vão dar em Pacatuba.
Olha Pacatuba aí, gente! Não é piada, não é à toa a menção ao apoio do governo municipal de Pacatuba no iniciozinho do filme…
Ao contrário do que a gente imagina ao ver o filme, Pacatuba não fica no interiorzão bravo, no sertãozão duro, seco, “como é seco o sertão”. Fica na Grande Fortaleza, oxente! Em 2018 – aprendo na Wikipedia –, tinha 71 mil habitantes, e era a 19ª cidade mais populosa do Ceará.
Na Pacatuba do filme, mostrada como uma cidadezinha bem pequena do interiorzão distante das terra civilizada, como diria o velho Lua, a família de Francisgleydisson Peixoto da Silveira enfrenta todo tipo de dificuldade, mas é gente de fibra, gente trabalhadora – e Francis consegue inaugurar seu cinema.
A história, a trama, o entrecho é isso aí – coisa simples, singela. A fantástica riqueza do filme vem da forma deliciosa, esperta, inteligente, com que Halder Gomes a apresenta – e do incrível amontoado de personagens interessantes, engraçadíssimos, que vão cercar Francis e sua família.
Há, por exemplo, uma deliciosa dupla de torcedores fanáticos dos maiores clubes de futebol do Estado, a do Fortaleza (o papel de Karla Karenina) e o do Ceará (Marcos Amaral).
Há um pândego triângulo amoroso apresentado nas fotos iniciais como “os concorrentes”: um tipo tido como galã que é paquerado ao mesmo tempo por uma bela moça e um baita veado (perdão, pessoal do politicamente correto, mas este não é um filme politicamente correto, e o personagem não é um gay, é um veado).
Há os irmãos gêmeos apresentados nas fotos como “os gêmeos intelectuais” que são mais burros que a porta. Há os dois policiais, brutamontes hilariantes. E, meu Deus do céu e também da Terra, o padre… Que figura o padre! A sequência em que o padre ouve a confissão da moça do triângulo amoroso e parece que ele está se masturbando é uma maravilha…
Só os nomes de vários dos personagens já são uma gostosa farra. Ah, meu, a gozação com essa mania de gente pobre botar nome esquisito nos filhos, numa tentativa de parecer coisa de norte-americano. Francisgleydisson é demais da conta – mas tem também Whelbaneyde (o papel de Fernanda Callou), Valdisney (o garoto Guilherme Nunes)…
Cine Holliúdy – acho – se inspirou em Bye Bye Brasil
Cidade que tem “espinha de peixe” – ou seja, antenas de TV – não tem espaço para a arte circense. Tinha absoluta consciência disso Lorde Cigano, proprietário e uma das principais atrações do circo levado de cidadezinha a cidadezinha das profundezas do Nordeste e depois da Amazônia em Bye Bye Brasil, a obra-prima de Carlos Diegues de 1980, um dos mais belos filmes que já foram feitos neste planeta.
Por coincidência (ou não), Lorde Cigano, que percorria o Brasil profundo com sua Caravana Rolidei, era o papel de José Wilker, um cabra da peste natural de Juazeiro do Norte, a terra do Padim Pade Cícero, Ceará, sim, senhor.
Caravana Rolidei. Cine Holliúdy.
Me parece bastante claro que Halder Gomes se inspirou – além de em suas memórias e imaginação – em Bye Bye Brasil.
Fiquei muito, muito feliz quando li que Cacá Diegues adorou Cine Holliúdy. Cine Holliúdy, disse o grande cineasta, é “barato, mas sem perder nada de sua qualidade técnica, cheio de curiosos efeitos especiais”, e “um exemplo de que o cinema se faz de várias maneiras, e em todas elas o filme pode ser bom”.
“Espinha de peixe”…
Há mais uma bela sacada depois que a narrativa termina: enquanto rolam os créditos finais, vamos vendo os diversos personagens da história dentro da tela de uma TV. E os créditos começam depois de um letreiro com estas frases:
“… a TV venceu a guerra nas pequenas cidades do interior. Hoje, dos 184 municípios do Ceará, somente 5 possuem cinema, incluindo a capital.”
Os números são de 2012, o ano em que o filme foi lançado, é claro.
Bem… Salas de cinema fecham a cada mês, em todos os lugares do mundo, sejam nos pequenos municípios do interior, seja nas grandes cidades. E a espinha de peixe não é a única culpada. Primeiro veio a facilidade de ver filmes em casa com a fita casssete, depois o DVD, o blue-ray, e nos últimos anos o streaming. É triste, é uma pena, é um horror, mas as salas de cinema fecham.
O cinema continua.
As canções são de e com músicos que desconheço
Chamaram a minha atenção as canções escolhidas para acompanhar a ação e figurar nos créditos finais. Neste filme do país de Tom, Chico, Caetano, Gil, Milton, Bethânia, Gal, Elis, do Estado de Fagner, Belchior, Ednardo, Amelinha, Marlui Miranda, Rodger Rogério, o que se ouve são canções assinadas por Odair José, Márcio Greyck e Cobel, Teixeira e J. Cipriano, Fernando Mendes, nas vozes de Paulo Roberto, Márcio Greyck, Jorge Lann, Dennis Leo.
Não quero com isso fazer qualquer tipo de crítica, de menosprezo. Não é isso. Muito ao contrário: evidentemente, o diretor, autor e produtor Halder Gomes optou por colocar na trilha sonora apenas e tão somente o tipo de música – bem próximo do que nós da cidade grande chamamos de brega – que é ouvido pelo povão no interior do Ceará.
Achei isso interessante, bem sacado – como tanta coisa no filme.
Esse Márcio Greyck – de quem eu, apaixonado por MPB desde sempre, jamais tinha ouvido falar – foi também um dos convidados para fazer participação especial no elenco. Ele aparece em uma única sequência, como o sujeito para quem Francisgleydisson, morrendo de tristeza, vende sua querida Vanderléa.
O diretor e o ator são praticantes do taekwondo
O taekwondo é um elemento importantíssimo, fundamental do filme.
O herói Francisgleydisson é um apaixonado por filmes de lutas marciais, e passou a paixão para o filho, como mostra o primeiro diálogo que ouvimos, citado lá em cima. Em diversas ocasiões, ao longo dos 91 minutos de Cine Holliúdy, vemos sequências de filmes com lutas – em várias delas, com Francis pai e Francis filho.
O primeiro filme a ser exibido no novo cinema de Francis, em Pacatuba, é de lutas marciais – e a platéia, com todos aqueles personagens engraçados, adora.
Taekwondo. Confesso, sem ficar vermelho de vergonha, que não sabia o que era isso. Vou aprender agora com a Wikipedia.
Vixe! É coreano, que nem o K-pop, a paixão da minha neta aos 11 anos de idade, que nem Parasita, o vencedor de quatro Oscars em 2020.
Os americanos o chamam de “karatê coreano”! Está na Wikipédia: uma arte marcial sul-coreana, hoje em dia difundida em todos os continentes e incluído como um esporte olímpico. O nome é o resultado da fusão de três ideogramas coreanos que significam pés, mãos e caminho. É “a técnica de combate sem armas para defesa pessoal, envolvendo destreza no emprego das mãos e punhos, de chutes voadores, de esquivas e interseções de golpes com as mãos, braços ou pés, para a rápida destruição do oponente”.
Tanto Halder Gomes quanto o ator Edmilson Filho são apreciadores e praticantes de taekwondo. Halder é mais que praticante: é mestre no troço. Nascido em Fortaleza, em 1967, o cineasta começou no cinema em 1991, como dublê de lutas marciais lá mesmo, em Hollywood, perdão, Holliúdy.
Edmilson tem muita coisa em comum com o diretor. Como já foi dito, ele também é de Fortaleza, só que mais novo, de 1976. Também estudou taekwondo, e também passou um tempo nos Estados Unidos, participando de lutas. Fez parte da seleção brasileira do esporte-luta nos anos de 1999 e 2000, e, como o amigo Halder, é hoje mestre na modalidade.
Halder Gomes – um caso como os de Mônica e Phoebe
Pode parecer estranho, mas me ocorreu que Halder Gomes tem uma trajetória um tanto semelhante às da londrina Phoebe Waller-Bridge e da carioca Mônica Martelli.
Todos os três criaram uma história, uma trama, que começou com um sucesso razoável e depois virou uma imensa sensação, e rendeu filhotes.
Mônica Martelli trabalhou como atriz no teatro e depois na televisão; era atriz da Globo quando, em 2005, encenou uma peça de sua autoria, Os Homens São de Marte… e É para Lá Que Eu Vou. A peça foi um fantástico sucesso, ficou nove anos em cartaz e em 2014 virou filme, outro gigantesco sucesso. Em 2018 veio Minha Vida em Marte, também de e com ela, também grande sucesso.
Phoebe Wallter-Bridge estreou em 2013 em um festival de teatro em Edinburgh uma peça de uma única personagem, uma jovem na Londres daqueles anos 2010 que é uma calamidade ambulante, com a vida pessoal, afetiva, social e econômica absolutamente caótica. Era uma boa peça – e, dois anos depois, em 2016, estreava a série de TV Fleabag, um desenvolvimento da obra inicial. Foi um sucesso estrondoso de público e crítica, que faturou nada menos de 64 prêmios, fora outras 69 indicações.
Halder Gomes lançou em 2004 um curta-metragem com o título de
Cine Holliúdy – O Astista Contra o Caba do Mal. O curta foi visto em 80 festivais de 20 países e ganhou 42 prêmios. “Nos festivais, os críticos me animaram e falaram que tinha que fazer um longa-metragem desse filme e, realmente, tinha muito material para isso”, contou ele. Em 2009, o Ministério da Cultura lançou um edital para a escolha de projetos de longa-metragens de baixo orçamento, e ele se inscreveu…
O longa teve 481.203 espectadores nas salas de cinema que ainda existiam no Ceará e nos demais estados, e faturou R$ 4,9 milhões de reais, segundo a Wikipedia.
Em 2018 foi lançado Cine Holliúdy 2: A Chibata Sideral. E em 2019 estreou a série de TV Cine Holliúdy, que teve três temporadas, em um total de 33 episódios, exibidos pela Globo e disponíveis na Globoplay.
Mas nem só de Cine Holliúdy vive Halder Gomes, e em 2022 ele lançou Bem-vinda a Quixeramobim, a história de uma influencier milionária, filha de um sujeito corrupto, que tem seus bens bloqueados e se vê obrigada a vender a fazenda da família na progressista cidade cearense que já havia sido citada em canção de Chico Buarque.
Bem-vinda a Quixeramobim está na lista dos filmes que quero ver. O problema é que a lista tem tantos títulos quanto este Cine Holliúdy tem de piadas.
Anotação em maio de 2024
Cine Holliúdy
De Halder Gomes, Ceará, 2012.
Com Edmilson Filho (Francisgleydisson Peixoto da Silveira, o Francis / pastor Esmeraldo Ozíres)
Miriam Freeland (Maria Das Graças, a Graciosa),
Joel Gomes (Francisgleydisson Filho, o Francin), Roberto Bomtempo (Olegário Elpídio), Roberta Wermont (Olga Alaíde), Jesuíta Barbosa (Anfrísio), Thomás Aquino (6 Volts), Falcão (o Cego Isaías), Fernanda Callou (Whelbaneyde), Guilherme Nunes (Valdisney), Ana Marlene (a mãe do Valdisney), Paulo Sérgio Bolachinha (vereador Chico Creolina), Haroldo Guimarães (Ling / Orilaudo / Munízio), Jorge Ritchie (Padre Mesquita), João Neto (o Bebinho), Renato Moraes (Acrísio), João Pedro Delgado (Jorginho), Rainer Cadete (Shaolin), Gabriel de Almeida (Idílio), Luciano Lopes (Piolho), Murillo Ramos (delegado Adauto), Reginauro Nascimento (cabo Amancio), Jader Soares (fiscal Ozéas Anacleto)
e, em participações especiais, Fiorella Mattheis (a Loura dos Sonhos), Angeles Woo (o apresentador de TV), Karla Karenina (a torcedora do Fortaleza), Marcos Amaral (a torcedor do Ceará), Márcio Greyck (o comprador do carro Vanderléa)
Argumento e roteiro Halder Gomes
Fotografia Carina Sanginitto
Música Herlon Robson
Montagem Helgi Thor
Desenho de produção Juliana Ribeiro
Figurinos Jo Fonteles
Coreografia Edmilson Filho
Produção Halder Gomes, ATC Entretenimentos, Downtown Filmes, com apoio da Riofilme, Ministério da Cultura, Governo Municipal de Pacatuba, AFG Tazekwondo Instituto Fabio Goulart.
Cor, 91 minutos (1h31)
****