Downton Abbey é magnífico, grandioso, colossal em todos os aspectos. A reconstituição de época, o cuidado com cada pequeno detalhe de figurino, cada objeto. A fotografia esplendorosa, os movimentos de câmara elegantes, suaves. As atuações britanicamente perfeitas, impecáveis.
E também no número espetacular de personagens, de conflitos entre eles, e das emoções que vivenciam e passam para o espectador.
É shakespeariano.
Alguém disse que Shakespeare foi o autor que conseguiu reunir em sua obra toda a imensa gama de sentimentos, emoções, de que a humanidade é capaz.
No cinema, mestre Akira Kurosawa conseguiu o mesmo que o bardo inglês.
Downton Abbey chega lá também. Há amor, ódio, inveja, simpatia, solidariedade, traição, ciúme, vingança, honra, dignidade, ofensa, rivalidade, orgulho, arrependimento, tenacidade, força, fraqueza, dúvida, certeza, incerteza, pusilanimidade, desejo, repulsa, prepotência, ira, generosidade, ganância.
Todo mundo já falou sobre a série. Mas ela não poderia ficar fora deste site
Me sinto atrasado ao falar de Downton Abbey, assim como me senti em relação a diversos outros filmes e/ou séries de TV. Se há uma característica nítida neste site é que ele não é, de forma algum, uptodate, atual. Vejo os filmes uns quatro, seis meses depois que eles estréiam nos cinemas, e as anotações só entram no site uns dois meses depois de escritas. Definitivamente, este é um site que não é atual, atualizado, em dia com os lançamentos recentes.
Fazer o quê?
Paciência. Embora com grande atraso, vimos agora a primeira temporada de Downton Abbey, quando a quarta já está sendo exibida. (O primeiro episódio da quarta foi ao ar na TV inglesa em 22 de setembro de 2013; no Brasil, ela deve estrear no primeiro semestre de 2014, no canal GNT, parece).
Vimos encantados, mesmerizados – a tal ponto que devoramos todos os sete episódios, num total de 378 minutos, ou seja, 6 horas e 18 minutos, em um único sabadão. Para, logo em seguida, atravessarmos a segunda e a terceira temporadas, rapidamente, sofregamente. No total, as três temporadas têm 1.449 minutos, mais de 24 horas de duração. Batem de longe as 15 horas e meia de Berlin Alexanderplatz, a minissérie de Rainer Werner Fassbinder
Assim, embora com grande atraso, embora todo mundo já tenha falado, comentado e escrito sobre Downton Abbey, vou fazer aqui minhas considerações. Não dá para deixar de fora do 50 Anos de Filmes esta maravilha.
Para evitar a possibilidade de spoilers, vou me concentrar apenas na primeira temporada. Falar da segunda e da terceira poderia fazer revelações que não deveriam ser feitas.
É difícil não lembrar de Gosford Park. Tem tudo a ver. Inclusive o autor
Chovendo no molhado: Downton Abbey narra o dia a dia de uma família nobre, riquíssima, do interior da Inglaterra, e de seus diversos serviçais, a partir de 1912.
Não é, portanto, um tema novo, inovador. Muito ao contrário. Todos nós já vimos diversos retratos da vida de ricos nobres ingleses e seus serviçais. A lista não teria fim. Sem grande esforço, dá para lembrar de Brideshead – Desejo e Poder (2008), Bons Costumes/Easy Virtue (2008), Retorno a Howards End (1992), A Taça de Ouro/The Golden Bowl (2000), Vestígios do Dia/Remains of the Day (1993).
Os três últimos citados são todos do trio James Ivory-Ismail Merchant-Ruth Prawer Jhabvala, e são ótimos. Vestígios do Dia, em especial, tem muitos elementos parecidos com Downton Abbey – e o relacionamento entre o mordomo Mr. Stevens (Anthony Hopkins) e a governanta Miss Kenton (Emma Thompson) é uma das mais tristes histórias de amor que o cinema já mostrou.
Assassinato em Gosford Park, que o americano iconoclasta Robert Altman fez em 2001, é outra maravilha. Quando o revi mais uma vez em 2010, anotei: Há dezenas e dezenas e dezenas de filmes retratando o forte classismo da sociedade inglesa, uma chaga que mudou muito pouco ao longo dos últimos séculos. Vários deles são ótimos. Este filme do americano Robert Altman de 2001 é um dos melhores – e talvez o mais virulento.
É difícil não lembrar de Gosford Park ao ver Downton Abbey. Como no filme de Altman, a série focaliza, com a mesma atenção, tanto a família milionária quanto o grupo de serviçais. Diversos personagens da classe alta, diversos personagens da classe baixa – e todos são bem mostrados, têm relevância na trama.
Como Gosford Park, Downton Abbey vai fundo, muito fundo, na dissecação do classismo da sociedade inglesa, a horrenda distinção entre as classes sociais que impregna tudo, tudo, absolutamente tudo.
Não há aí uma coincidência. Gosford Park partiu de uma idéia de Robert Altman e de Bob Balaban, mas quem desenvolveu a idéia inicial, escreveu a história e o roteiro cinematográfico foi Julian Fellowes. Julian Fellowes é o escritor, o produtor executivo e o criador da série Downton Abbey.
O autor conhece muito bem o meio aristocrático que descreve
Julian Alexander Fellowes é um inglês nascido no Cairo, em 1949. Da minha geração, portanto. Nos anos 1970, escreveu novelas românticas sob o pseudônimo de Rebecca Greville. Ator em mais de 60 produções, assinou o roteiro de 20 filmes e/ou séries – inclusive de Feira das Vaidades/Vanity Fair, adaptação do romance de William Makepeace Thackeray, dirigido pela indiana Mira Nair, de 2004, e A Jovem Rainha Vitória/The Young Victoria, de 2009. Foi o realizador de um belíssimo drama sobre infidelidade conjugal, Mentiras Sinceras/Separate Lies, de 2005.
As indicações são de que Fellowes conhece bem esse meio aristocrático que descreve em Gosford Park e em Downton Abbey: entre seus ancestrais estão Sir James Fellowes, médico do exército real durante o reinado de George III, e o almirante Sir Thomas Fellowes, que serviu com ninguém menos que Lord Nelson, que está para as forças armadas do Império Britânico meio assim como o Duque de Caxias para este paisinho tropical terceiro-mundista aqui.
Fellowes mora no interior idílico daquela ilhota maluca que já foi dona de metade do mundo, em Dorset, perto da casa que pertenceu ao grande escritor Thomas Hardy. Em sua propriedade, de 50 acres, há uma casa construída em 1633 e uma porção feita bem mais recentemente, em 1840.
Como muita gente de nossa geração – assim das anteriores e das posteriores –, Fellowes é, tudo indica, fascinado pela epopéia do Titanic. Em 2012, foi o autor do roteiro de Titanic, uma minissérie da TV inglesa.
A tragédia do Titanic está presente em Downton Abbey.
Uma notícia bombástica chega ao grande palácio em 1912, início da série
O primeiro episódio desta primeira temporada abre com um close-up de um telégrafo. Em seguida vemos imagens maravilhosas dos campos ingleses – “o verde também tão lindo dos gramados campos de lá” – sendo cortados por um trem ainda a vapor.
E então entramos em Downton Abbey – uma gigantesca, secular construção no meio do campo, um palácio de vários andares, mais cômodos do que a maioria dos hotéis do mundo.
É de manhãzinha. Uma criada, depois da batida na porta e do aviso de que são 6 horas, diz: – “Pelo menos uma vez na vida, gostaria de acordar naturalmente, quando o sono terminasse.”
Em breve, a criadagem toda movimenta-se a mil por hora.
Para impressionar o cinéfilo mais apaixonado, o diretor nos apresenta um plano-sequência majestoso, em que a câmara atravessa diversos cômodos do palácio, seguindo vários serviçais.
Chegam os jornais. Antes dos senhores, que ainda dormem, os criados ficam sabendo da notícia bombástica que o espectador ainda ignora.
A informação corre rapidissimamente entre os criados.
Um letreiro havia precisado a data: 1912.
Os proprietários começam a acordar, a tocar os sinos para chamar os serviçais.
Demorou para cair a ficha na minha cabeça: o que houve de notícia assim tão impressionante em 1912?, me perguntei. Tudo bem, daí a dois anos começaria a Primeira Guerra. Mas 1912…
De repente, pouco antes de Robert Crawley, conde de Grantham (Hugh Bonneville, na foto acima), receber das mãos do mordomo, Mr. Carson (Jim Carter), o telegrama que havia sido enviado na primeira tomada, finalmente me caiu a ficha: o Titanic!
Uma complexa questão de sucessão, de direitos de herança
Julian Fellowes escolheu para abrir sua monumental, extraordinária minissérie na manhã de abril de 1912 em que os jornais noticiariam que o RMS Titanic, o navio insubmersível, que nem Deus poderia afundar, submergiu, afundou.
É um início eletrizante, mesmerizante, apavorantemente bem feito. E o que vem a seguir, nesta primeira temporada, assim como nas duas seguintes, se mantém no mesmo nível.
Dois primos do conde de Grantham estavam no Titanic – e não sobreviveram.
Através das conversas dos numerosos personagens que estamos começando a conhecer, ficamos sabendo de uma complexa questão de sucessão, de direitos de herança.
Lord Robert e sua mulher, Cora (interpretada pela belíssima, maravilhosa Elizabeth McGovern de Na Época do Ragtime de Milos Forman e Era uma Vez na América de Sergio Leone, na foto abaixo), têm três filhas, três mulheres.
Décadas antes, o patrimônio da família, inclusive o próprio palácio Dowmton Abbey, havia sido salvo com a injeção de dinheiro obtida quando Robert se casou com Cora, uma americana herdeira de formidável fortuna.
Pelos costumes e leis britânicas, mesclados com um acordo estabelecido pelo já falecido pai de Robert, toda a propriedade de Downton Abbey e também o título de conde de Granthan deverão passar, na morte do atual lord, para seu parente masculino mais próximo.
Como não tem filho, Lord Robert, ao morrer, deveria passar então o título e toda a propriedade para seu primo agora morto no naufrágio do Titanic.
O segundo parente homem mais próximo era o filho daquele primo, ele também dado como morto no Titanic.
O seguinte na linha de sucessão é um primo distante, Matthew Crawley (Dan Stevens, na foto abaixo), que a família jamais havia visto. Matthew é um jovem advogado em Manchester, filho de um médico; sua mãe, Isobel (Penelope Wilton), havia tido bom treinamento como enfermeira.
Tudo isso é o que poderia haver de mais absurdo para os padrões da família de Lord Grantham: aristocrata não trabalha, muito menos em profissões vulgares (nos termos deles) como advocacia e medicina.
Mas não havia outra saída, decide a decididíssima condessa viúva, mãe de Robert, Violet (Maggie Smith, na foto acima, num papel que lhe cabe como uma luva perfeita): o jeito seria casar a filha mais velha, Mary (Michelle Dockery) com aquele estrupício de primo Matthew.
Violet convoca a nora (e fica logo evidente que nunca se deram muito bem, a idosa, cheia de si, presunçosa aristocrata inglesa e a milionária americana), ainda no primeiro episódio da primeira temporada, a fim de que, juntas, mexam os pauzinhos necessários para Mary se casar com Matthew.
O problema é que Violet e Cora não são deusas, nem autoras do roteiro da história – e Mary e Matthew vão se recusar, decididamente, a fazer papel de marionetes.
Os aristocratas e os serviçais têm a mesma importância na trama
O roteiro de Downton Abbey mescla, de maneira admirável, os acontecimentos, os dramas, as intrigas dos senhores do castelo com os acontecimentos, os dramas, as intrigas que ocorrem entre os serviçais.
Ao longo de toda a primeira temporada (e também na segunda e na terceira), as vida dos criados são tão importantes quanto as dos senhores.
Já no primeiro episódio da primeira temporada, o perfeito mordomo Carson enfrentará o que considera um grave problema: chega ao castelo, para assumir o cargo de criado particular, valete, do conde um homem chamado John Bates (Brendan Coyle, na foto abaixo). Bates manca de uma perna, usa bengala, não consegue carregar peso, às vezes deixa cair alguma coisa no chão. Para Mr. Carson, Bates não está à altura daquela posição tão importante. Mas acontece que Lord Robert tem profundo afeto por Bates, que havia sido seu criado durante a Guerra dos Boers, na África do Sul, anos antes.
De cara, Bates atrairá o ódio de Thomas (Rob James-Collier), o primeiro criado, que vinha cumprindo provisoriamente as funções de valete do conde. Thomas fará todo tipo de canalhice, sacanagem, filha-da-putagem possível contra Bates.
Esse canalha desse Thomas tem a seu lado Miss O’Brien (Siobhan Finneran), a criada particular de Lady Grantham. Os dois são a união do mal em si.
Ao mesmo tempo em que atrai o ódio dos dois canalhas da criadagem, Bates atrai a simpatia de Anna Smith (Joanne Froggatt, na foto abaixo), a camareira.
Anna e John Bates são, provavelmente, os personagens mais simpáticos, mais admiráveis de toda a série.
A série vai fundo no classismo da sociedade inglesa – mas vai bem além
Me impressionou demais como Downton Abbey, mais ainda do que realçar o classismo, o horroroso fosso entre as classes sociais, que na Inglaterra deverá ter sido o mais terrível de todos, privilegia outro tipo de distinção entre as pessoas.
A série vai fundo, sim, como já foi dito, na questão do classismo, terreno já exaustivamente esmiuçado em tantas outras obras. Mas, além disso, Downton Abbey vai fundo também em outra distinção que existe entre as pessoas.
Ao fim e ao cabo, o que me parece que Downton Abbey quer dizer é que, antes mesmo de se dividirem entre ricos e pobres, as pessoas se dividem entre boas e más.
E, assim, a série me parece absolutamente inovadora, até mesmo revolucionária.
Downton Abbey é (ou ao menos me pareceu) algo que poderíamos chamar, de maneira talvez grosseira, de pós-marxista. Pós essa coisa idiota, burra, revoltantemente simplista, reducionista, de entender que o mundo se divide entre de um lado pessoas pobres, e todas elas são boas, santas, puras, apenas exatamente por isso, porque são pobres, e de outro lado as pessoas que têm posses, e portanto são filhas da mãe, cruéis, imbecis, doentes da cabeça ou do pé ou as duas coisas juntas.
Downton Abbey é anti-Claude Chabrol! É anti-Godard, anti todo aquele tipo de cinema – em especial o italiano e o francês – que durante meio século simplificou a vida dizendo que todo pobre é necessariamente gente fina e quem tem mais do que comida e teto é filho da mãe, safado, sacana.
Lord Grantham é uma espécie de príncipe de Salina ainda mais aberto às mudanças
Creio que não é possível ver Downton Abbey sem lembrar de O Leopardo, que Luchino Visconti transformou num dos filmes mais belos de todos os tempos.
Exercitando o que seria um axioma político das décadas que viriam a seguir, o príncipe de Salina criado por Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957) entendia que é preciso mudar para que tudo permaneça exatamente como sempre tinha sido. É preciso entregar um pequeno anel para que o dedo e o resto das jóias se mantenham, para que tudo se fique exatamente igual ao que sempre havia sido.
Como o príncipe de Salina, Lord Grantham luta para manter seu mundo do jeito que ele é – mas, de alguma forma, ele compreende perfeitamente que o mundo muda, que nunca mais será o mesmo que seu pai e avô e bisavó haviam conhecido.
Ao mesmo tempo em que luta para manter o status quo, Lord Grantham vai permitindo que o status quo vá mudando dentro de seus domínios. De uma certa forma, muito britanicamente, ele até ajuda o mundo a mudar.
E aí é que está: a forma com que o conde inglês vê o mundo em mutação é o que há de bom na vida. Não se trata de manter tudo como sempre havia sido: estamos diante da evolução, da melhoria, do caminhar para a frente.
O processo não é indolor, de forma alguma. Lord Grantham sofre profundamente com as mudanças imensas, ciclópicas que vão acontecendo – assim como sofre também o mordomo, o irrepreensível Mr. Carson, que, como todo mordomo irrepreensível das histórias inglesas, é profundamente mais realista que o rei. Mas simplesmente não há o que se possa fazer diante do caminhar da História: as mudanças vêm, com a força violenta das águas represadas de um rio quando a represa se rompe – e vão carregando tudo o que encontram pela frente.
Ao contrário do que acontece nos filmes de Chabrol, os ricos não são pessoas ruins
Acho absolutamente fascinante como a série criada por Julian Fellowes foge, como o diabo da cruz, daqueles antigos estereótipos – rico é ruim, pobre é bom.
Chabrol detestaria Downton Abbey.
A rigor, não há, entre os personagens principais do andar de cima, a família de Lord Grantham, ninguém simplesmente mau caráter, sacana, safado, filho da mãe.
Robert, Lord Grantham, tem um excelente caráter. Nisso, se parece muito com o príncipe de Salina. É uma pessoa extremamente boa. Preocupa-se com o bem estar de seus criados. Procura ser o mais justo, o mais honesto possível. Tem lá seus defeitos, é claro – quem não tem? Veremos, na segunda e terceira temporadas, que não é um bom administrador dos bens da família; no job profile de um aristocrata inglês do início do século XX não havia a exigência de saber administrar fortunas. É apegado às tradições – e isso, sim, fazia parte do job profile de um aristocrata inglês do início do século XX. Mas, mesmo no que diz respeito às tradições, é maleável. Sabe ouvir os outros – e é capaz de, diante de bons argumentos, mudar de idéia.
A filha mais velha, Lady Mary, de início parece uma pessoinha menor, desprezível, fútil, vã. A cada episódio, vai demonstrando que não é bem assim. É uma pessoa complexa, com defeitos e virtudes como em geral são os seres humanos; é uma jovem que vive em conflito consigo mesma e com o mundo que a cerca, talvez com um pouco mais de soberba do que deveria, mas que sofre muito com o peso de suas escolhas. Aqui do meu lado, Mary não gostou muito da jovem Lady Mary, e lá pelo meio da segunda temporada definiu que ela é bastante parecida com a avó, a condessa viúva Violet. Eu, no meu cantinho, fui sendo cada vez mais encantado, seduzido por Lady Mary – assim como todos os homens, diz aqui Mary. É uma boa atriz, essa Michelle Dockery (na foto acima), que eu não conhecia – mas, também, não tem ator ruim na série.
A condessa viúva interpretada pela gigante Maggie Smith parece a princípio o mais próximo de mau caráter entre as pessoas da família. É seca, implacável, a personificação da nobre que aparentemente não está disposta a abrir mão sequer do menos precioso de seus anéis. Mas com o tempo vai se mostrando menos dura, menos inquebrantável; vai se revelando capaz de um humor, de uma ironia fina – até com relação a si mesma e às suas certezas.
A filha do meio, Lady Edith (Laura Carmichael, à esquerda na foto acima), e a caçula, Lady Sybil (Jessica Brown Findlay, no centro), são personagens – a exemplo de todos os demais – extremamente bem construídas, e bem interpretadas. E, cada uma a seu jeito, encantadoras.
Edith, como costuma muito acontecer com os filhos do meio, que não têm o privilégio de ser nem a primogênita nem a caçula, é a que tem menos atenção dos pais. É também a menos bela, menos charmosa das três. Vai se ressentir de seu pouco brilho ao longo de toda a primeira temporada, e também da segunda. E vai ser uma das maiores inimigas da irmã mais velha, com quem tenta – sem sucesso – competir.
Sybil, a caçula, é uma gracinha. Como é a mais jovem, terá maior paixão pelas idéias inovadoras, revolucionárias, que vão mais profundamente contra o status quo: o voto das mulheres, a igualdade de direitos. Na segunda temporada, vai extrapolar todos os limites possíveis de sua posição de nobre na sociedade mais classista que a humanidade já teve.
Cora, a americana milionária que com sua fortuna havia salvado o patrimônio dos Crawley, é outra personagem fascinante, maravilhosa. Adaptou-se bem ao papel de esposa de conde – que milionária do Novo Mundo não gostaria de ser da nobreza do Velho Mundo? Décadas de Velho Mundo, no entanto, não conseguiram transformá-la em inglesa – e então é ela mezzo condessa, mezzo milionária americana. Parecida com as pessoas de sua nova pátria, mas ainda assim uma estrangeira.
(Na segunda temporada, sua primogênita, Mary, dirá duas vezes, se não estou enganado, que a mãe continua sendo americana – e, quando uma inglesa diz isso, diz com uma certa decepção, um certo desprezo.)
O maior defeito de Cora, na primeira temporada, é não perceber que sua criada O’Brien é o suprassumo da falta de caráter. Não, não: de caráter ruim.
Mais importante que ter ou não ter bens materiais é ter caráter
Os dois personagens mais maus caracteres da série (sobretudo nas duas primeiras temporadas) são a criada O’Brien e o criado Thomas.
São dois canalhas escancarados, O’Brien e Thomas (na foto abaixo). São o perfeito exemplo do que a humanidade consegue ter de pior: invejosos, ambiciosos, mentirosos, melífluos, instigadores de cizânia entre os pares e os patrões. São daquele tipo capaz de fazer tudo o possível para prejudicar quem passa por seu caminho para obter algum tipo de vantagem.
Do lado oposto de O’Brien e Thomas estão John Bates e Anna Smith. John Bates e Anna Smith são pessoas em tudo por tudo admiráveis.
Downton Abbey, uma série sobre o classismo da sociedade inglesa,
é algo que, para mim, não poderia ser melhor. É pós-marxistoidismos, pós Chabrol, pós-maniqueísmo idiota. É pós-divisão estúpida, empobrecedora, entre os have e os have not.
O que realmente divide as pessoas – isso é o que me parece que essa série extraordinária tem a dizer – é algo mais bem complexo do que o conjunto de bens materiais que as pessoas têm. É um negócio chamado caráter.
As três primeiras temporadas ganharam 33 prêmios e outras 89 indicações
As três primeiras temporadas da série ganharam 33 prêmios e tiveram outras 89 indicações. Entre os prêmios estão os Globos de Ouro de melhor atriz coadjuvante série e/ou filme para a TV para Maggie Smith em 2013 e de melhor série e/ou filme para a TV, categoria drama, em 2012.
A Universal lançou no Brasil as três temporadas em DVD; uma caixa reúne as três temporadas, em 11 discos.
É necessário ainda registrar que Julian Fellowes e seus colegas que também escreveram os roteiros dos episódios souberam, magistralmente, criar diversas tramas romanescas, folhetinescas, que deixam o espectador fascinado, incapaz de deixar de ver o episódio seguinte. Escreveram um folhetim com o brilho de uma Janete Clair.
As tramas e subtramas se entrecruzam de maneira formidável.
Há um tanto de Jane Austen na história de Matthew e Mary. Um tanto de Charles Dickens na história de John Bates e Anna Smith. Um tanto da dupla Noel Coward-David Lean de Nosso Barco, Nossa Alma e This Happy Breed na elegia da fibra britânica na adversidade absurda da guerra.
O roteiro da série como um todo, nestas três primeiras temporadas, sabe temperar com maestria o drama pesado e o bom humor. Mas registro, para encerrar, que Mary e eu ficamos bastante chocados com a crueldade do destino que os autores reservaram para o final da terceira temporada.
Anotação em outubro de 2013
Downton Abbey – As Três Primeiras Temporadas
De Julian Fellowes, criador, roteirista e produtor executivo, Inglaterra, 2010 a 2012
Diretores: Brian Percival, Andy Goddard, Brian Kelly, David Evans, Ben Bolt , Ashley Pearce e outros
Com (nos andares de cima) Hugh Bonneville (Robert Crawley, conde de Grantham), Elizabeth McGovern (Cora Crawley, a condessa), Michelle Dockery (Lady Mary Crawley, a primogênita), Laura Carmichael (Lady Edith Crawley, a filha do meio), Jessica Brown Findlay (Lady Sybil Crawley, a caçula), Maggie Smith (Violet Crawley, a condessa viúva), Penelope Wilton (Isobel Crawley, mãe de Michael), Dan Stevens (Matthew Crawley, o herdeiro do título), David Robb (Dr. Clarkson)
(nos andares de baixo) Jim Carter (Mr. Carson, o mordomo), Phyllis Logan (Mrs. Hughes, a governanta), Brendan Coyle (John Bates, o valete do conde), Joanne Froggatt (Anna Smith, a camareira), Siobhan Finneran (Sarah O’Brien, a criada da condessa), Rob James-Collier (Thomas Barrow, criado), Thomas Howes (William Mason, criado), Sophie McShera (Daisy, a ajudante de cozinha), Lesley Nicol (Mrs. Patmore, a cozinheira), Allen Leech (Tom Branson, o chofer), Amy Nuttall (Ethel Parks, criada), Kevin Doyle (Joseph Molesley)
Argumento e roteiro Julian Fellowes
Fotografia Nigel Willoughby, Gavin Struthers, David Katznelson, David Marsh, Graham Frake
Música John Lunn
Produção Carnival Pictures, Masterpiece. DVD Universal.
Cor, 378 min (a primeira), 562 min (a segunda), 509 min (a terceira).
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Sergio, tem certeza de que a quarta temporada começou no Brasil? Tinha lido que chegaria por aqui no 1º semestre de 2014.
Downton Abbey é mesmo fantástica! Atualmente é uma das minhas séries preferidas, do tipo que me fez comprar os DVDs, mesmo tendo baixado todos os episódios. Já comecei a ver a quarta temporada.
Sou suspeita, pois tenho uma certa atração pela Inglaterra, e adoro séries e filmes que fazem reconstituição de época. Sem falar no sotaque mais bonito entre os países de língua inglesa.
O plano-sequência inicial é mesmo majestoso, acho que o revi umas três vezes.
Também acho maravilhosa essa questão de não colocarem os ricos como maus e os pobres como bons. Eu logo notei que toda a família tinha um bom coração, por assim dizer, e que são todos muito educados. Dizem sempre “por favor”, “obrigado”, “desculpe” não exploram os empregados, vão à parte do castelo onde eles moram (acho que nem todos os aristocratas fariam isso).
Em relação à lady Mary, eu fico no time da sua Mary: também não gosto muito da personagem. Acho que ela tem o nariz empinado, é arrogante, esnobe, sem sal, a que tem o coração mais frio (a Mary a definiu bem: ela é parecida com a avó, só que sem o humor e a ironia fina). A atriz eu considero bem mais ou menos, e de beleza ela é beem sem graça e anoréxica. Por outro lado, Matthew, o primo esnobado por ela, é um dos meus personagens preferidos (além de ser gatinho, e olha que loiros não me atraem) e acho que transmite com propriedade a fleuma inglesa. O ator está perfeito no papel.
A condessa é outra personagem que considero meio blé, mas é uma boa mãe e sabe fazer o contraponto com o marido, em relação às filhas. Gosto bastante do conde (o ator também está perfeito no papel) e da Sybil (ela é mesmo uma gracinha, como disse você, além de carismática).
Concordo que a Ana e o Bates são pessoas admiráveis. Quem é que não torceu e sofreu com eles?
Dentre os personagens mais importantes, você só não falou da Mrs. Hughes, de quem gosto bastante também, muito humana e por isso mesmo com qualidades e defeitos, mas com o adicional de ter um bom coração. Torço para que ela e o Mr. Carson, de quem também gosto, fiquem juntos um dia.
Ainda entre os empregados eu gostava da Gwen Dawson, e adoro as peripécias da Daisy e da Mrs Patymore. Ô povo que comia! Os aristocratas passavam muito bem. Tudo era motivo para fazer um jantar. Aqueles sim, sabiam viver.
A distinção entre as classes é realmente uma coisa horrorosa; eu chego a sentir certa pena dos empregados e da profunda subserviência e submissão de alguns, de serem considerados “inferiores”, “menores”. Acho isso muito triste.
O final da terceira temporada eu só senti pela falta que o ator está fazendo na quarta (ele pediu pra sair, não havia muito um final diferente para o personagem). Mas como não gosto da outra personagem envolvida na questão, não senti pena dela. Sejamos sinceros: ela fez um doce danado pra ficar com o cara e o esnobou o máximo que pôde. Fiquei mais com pena dele do que da chatonilda.
Enfim, penso que a série merece todos os adjetivos e predicados, e assino embaixo de tudo o que você escreveu (embora com atraso, tenho certeza que nenhum outro texto ficou tão bom e completo quanto o seu) mas destaco o seguinte parágrafo:
“O que realmente divide as pessoas – isso é o que me parece que essa série extraordinária tem a dizer – é algo mais bem complexo do que o conjunto de bens materiais que as pessoas têm. É um negócio chamado caráter.”
Jamais esquecerei os dias que estive aí com vocês e a aflição que eu ficava para chegar a hora de assistirmos a essa série maravilhosa.
Brilhante seu comentário. Não faltou nada.
Espero terminar de assistir os últimos capítulos da 3ª temporada, esperando ansiosa pela 4ª.
Bjos.
Sogrinha
Grande Jussara! Delícia de comentário!
Cara Stella, não estou muito certo quanto à quarta temporada. A Mary viu no site da Fox que aquele canal estava exibindo a quarta temporada. Me fiei na informação dela…
Um abraço!
Leio agora a informação de que no Brasil a quarta temporada deve estrear no primeiro semestre, no GNT. Já corrigi a informação que estava errada no texto.
Também já ouvi algumas pessoas inclusive uma de minhas irmãs falar muito bem sôbre esta série. Da mesma forma que voce e a Jussara, dizem que é muito linda, maravilhosa.
Não sou muito de assistir séries. Não que não goste, não é isto.
É que, sei lá, sinto-me preso em uma coisa ao mesmo tempo que queria fazer outra.
Veja só; gosto demais de “Mad Men” e, ainda estou no capitulo 11 da primeira temporada.
Não resisto, volto a ver filmes e acabo não voltando lá.
São 13 episódios de uma hora = 13 horas.
Neste mesmo tempo vejo 6 filmes de 2 horas.
É neste ponto onde digo que me sinto preso.
Estou errado? Não sei, mas é uma verdadeira loucura por filmes que sinto.
Então , não vou colocar minha opinião sôbre “Downton Abbey” pois não a assisti.
Mas quero sim e muito, dizer uma coisa:
Jussara, o parágrafo final do teu comentário é de uma verdade inconteste e de uma beleza infinita. Parabéns, amiga .
Um abraço para voce e outro para ti, Sergio!!
Olá Sergio, bom dia !!
Fazendo uma revisão, uma releitura de algumas partes,notei uma grande falha minha.
Tenho que te pedir um milhão de desculpas por essa falha.
Quanto ao parágrafo:
“ O que realmente divide as pessoas – isso é o que me parece que essa série extraordinária tem a dizer – é algo mais bem complexo do que o conjunto de bens materiais que as pessoas têm. É um negócio chamado caráter.”
Eu disse ser da Jussara mas na verdade é teu.
Não sei dizer mesmo o que aconteceu com o meu engano. Se pulei onde voce cita o mesmo ou se não li com a devida atenção onde a Jussara comenta.
O fato é que agora, fazendo esta releitura,
pude observar que ela diz assinar embaixo de tudo que voce escreveu e destaca o parágrafo citado.
Aí me lembrei do grande ( falecido ) Jorge Dória e me perguntei: onde foi que eu errei?
Então dei outra passada no texto e notei que é quando falas sôbre a O’Brian e o Thomas.
Foi uma grande falha, um grande engano meu e mais uma vez peço-te, que me desculpes.
Então, o elogio e os parabéns pela verdade e a beleza do parágrafo, são para voce.
Se bem que devo dizer uma coisa e tenho certeza que voce vai concordar.
” A jussara também sería e é capaz de citar um parágrafo tão lindo quanto “.
Gosto muito de muita coisa que ela escreve.
Ela tem muita competência.
Um grande abraço para voces dois !!
todo análise que você faz sobre essa série são formidáveis. lamentavelmente não temos mais grandes diretores e produtores que possam deselvolver algo tão primoroso como essa obra esplèndida. O refinamento desenvolvido pelos personagens é tal que não dá para acreditar que se consiga fazer um filme desse quilate nos tempos atuais. O que vemos nas telas são tragédias, filmes sem expressão etc. Não se dá mais valor a interpretação dos atores, coisa que nos anos 40,50,60 era de suma importância. Canastrões não tinham vez(atores como Marlon Brandon, Burt Lancaster, James Cagney, Karl Malden Lee J.Cobb, Spencer Tracy, Marlene Dietrich, Ava Gardner, Liz Taylor Montegmonery Cliff, etc
Já vi a quarta temporada, e ontem vi o especial de Natal, que sempre nos brinda com mais tempo de duração. A série conseguiu manter a qualidade, apesar de terem colocado um fato gravíssimo desnecessário (e uma dúvida) na vida de personagens muito queridos do público. Na minha opinião, Downton Abbey e The Good Wife foram as melhores séries de 2013 (sendo que TGW ainda tem um bom caminho pela frente até encerrar a temporada).
Duas ou três coisas que esqueci de falar no meu comentário anterior: acho triste a Mary e a Edith não se darem bem, e a Mary não fazer nenhum esforço nesse sentido (ô mulher chata e esnobe) principalmente depois do que aconteceu à Sybil. O que me faz ter ainda mais pena da Edith, já que nada dá muito certo pra ela, e nos últimos tempos as coisas só vêm complicando.
E acho que subestimam a inteligência do espectador ao fazer os Crawley acreditarem sempre nas artimanhas, armações e mentiras do Thomas, como se todos na família fossem ingênuos; ainda mais o conde, que é macaco velho (e mais uma vez, repito, Hugh Bonneville está perfeito no papel).
Esqueci também de mencionar uma “personagem” secundária que eu adoro: a fiel escudeira do conde, a linda cachorra Isis.
Dizem que o Fellowes vai sair para assumir o roteiro de uma série americana; com a próxima etapa confirmada, não sei se isso vai ser bom, mas que venha a quinta temporada!
Vi ontem o último episódio da terceira temporada. Estou absolutamente fascinado. Confesso que estava um tanto relutante em ver esta série por causa do assunto. Dos filmes e séries que o Sérgio refere apenas vi The Remains of the Day e por ter lido uma crítica aqui no 50 Anos de Filmes.
Seguir a vida de uma família aristocrática inglesa e da sua criadagem não me fascinava e fui deixando para trás, até que comecei a ver e fui apanhado!
Acho excelente – argumento, realização, interpretação e só não vou dizer que está “bem feitíssimo” porque “feitíssimo” não existe em Português, embora esteja farto de ler, incluindo aqui.
O final desta 3ª temporada foi um choque brutal, deixou-me triste.
Esqueci-me de dizer que estou a gostar tanto desta série que comprei a edição completa em DVD, deve chegar para a semana.