Nosso Barco, Nossa Alma / In Which We Serve


Nota: ★★★★

Anotação em 2007, com complemento em 2008: Este é, talvez, o mais perfeito exemplar do filme esforço de guerra, absolutamente inigualável dentro do que ele se pretendia – engajar a população civil na luta contra o nazismo, fazer as pessoas ajudarem, da maneira que fosse possível, o governo e as forças armadas na luta.

Eu já tinha, naturalmente, ouvido falar demais neste filme do então quase principiante David Lean e do homem de todas as artes Noël Coward – e mesmo assim me surpreendi com a qualidade dele. Os filhos da puta dos ingleses conseguiram transformar um instrumento de propaganda em belíssimo cinema.

O filme é a história de um navio de guerra inglês, o destróier HMS Torrin, que é atingido por um torpedo mas não afunda; é levado de volta para a Inglaterra, reparado e volta à ação para ajudar na retirada de Dunquerque; mais tarde, é bombardeado perto de Creta, e finalmente submerge.

inwhich2A ação começa quando o navio está afundando, e vários de seus marinheiros estão em botes salva-vidas, à espera do resgate por outras naves aliadas. Enquanto aguardam o resgate – que talvez não chegue -, os sobreviventes do navio naufragado vão lembrando histórias das lutas do Torrin, juntamente com histórias de suas próprias vidas, e essas histórias todas vão sendo mostradas em flashbacks.

Noël Coward – que escreveu o roteiro e co-dirigiu o filme – faz o papel do capitão do HMS Torrin, Kinross, um herói de guerra, embora não mais herói que o mais humilde dos marinheiros do navio. Aliás, uma das muitas maravilhas deste filme é isso: a insistência em que a participação de cada um é importante, que um marujo humilde e iniciante vale tanto quanto um oficial, que todos são igualmente merecedores de todas as honras.

Qualquer pessoa que não conheça um pouquinho da biografia de Noël Coward (1899-1973) e veja hoje o filme certamente achará sua atuação muito boa – ou, no mínimo, convincente, correta. É verdade que seu tom é um tanto monocórdico: seu Capitão Kinross é um homem duro, dedicado, competente, sério, extremamente sério – acho que ele não sorri uma única vez no filme. Está sempre com a cara fechada de um homem ocupado em cumprir seu dever bem cumprido.

Assim, é fascinante imaginar como as platéias da época, especialmente as inglesas, reagiram à interpretação de Coward como o duro Capitão Kinross. Noël Coward – que figura absolutamente fascinante – era pintor, ator de teatro, dramaturgo, compositor, letrista, cantor; fez todo tipo possível e imaginável de peças de teatro, mas era conhecido basicamente por comédias e canções sofisticadas, intelectualizadas, inteligentes, brilhantes. E era homossexual assumido desde os 14 anos de idade.

Uma das muitas histórias que se contam sobre In Which We Serve (e ele é absolutamente cheio de histórias) é que o jornal Daily Express, em diversas ocasiões, enquanto o filme era rodado e montado, ridicularizou o projeto, contestando a escolha de Coward para interpretar um bravo, e muito macho, capitão da Real Marinha. Tadinho do povo do Daily Express: que coisa triste confundir opção sexual com caráter ou falta de caráter, bravura ou falta de bravura, competência ou falta de competência. Marta Suplicy que o diga.

O fato é que Coward acabou se vingando ao reproduzir no filme uma ridícula manchete do jornaleco, publicada em 1939, poucos meses antes do início da Segunda Guerra: “No war this year”.

Mais histórias sobre o filme:

Noël Coward – que muitos anos depois receberia da Coroa britânica o título de Sir – era amigo do primeiro-ministro Winston Churchill. Consta que os dois muitas vezes se reuniam para pintar. Teria sido pensando em ajudar o amigo que Coward teria imaginado a história deste filme: ele queria fazer alguma coisa mais útil ao esforço de guerra do que escrever mais comédias sobre gente rica e suas aventuras nos salões.

Aliás, consta também que Coward trabalhou para o serviço secreto inglês durante a Segunda Guerra.

inwhich1Conta-se também que Coward estava um tanto inseguro em dirigir um filme de guerra, e perguntou ao amigo John Mills quem ele recomendaria para ajudá-lo. O pequeno em tamanho, gigante em talento John Mills (1908-2005) – aliás pai de Juliet Mills, que aparece no filme como a filhinha bebê de Shorty Blake, o personagem interpretado pelo ator, e também da gracinha Hayley Mills – sugeriu “o melhor montador do país”, um tal de David Lean.

David Lean (1908-1991) àquela altura já havia assinado a montagem de uns 20 filmes, inclusive Pigmalião, de 1938, e Major Barbara, os dois baseados em obras de George Bernard Shaw. Consta que Lean perguntou a Coward como ele imaginava que seu nome apareceria nos créditos, e Coward sugeriu “com a ajuda de David Lean”. O outro pediu que fosse “dirigido por Noël Coward e David Lean”. Assim foi feito.

Quando Sir David Lean morreu, em 1991, deixou uma das mais esplêndidas obras da história do cinema. Apenas 16 filmes, ao longo de 42 anos como diretor. Poucos, mas vários deles extraordinários, dos melhores que já foram feitos – Desencanto/Brief Encounter, Quando o Coração Floresce/Summertime, A Ponte do Rio Kwai/The Bridge on the River Kwai, Lawrence da Arábia, Doutor Jivago, Passagem para a Índia/A Passage to India. Sir John Mills trabalhou em vários deles.

Estréia de Lean na direção, Nosso Barco, Nossa Vida foi também a estréia do jovem Richard Attenborough no cinema. Sir Richard Attenborough foi ator em mais de 70 produções e diretor de 12, inclusive Gandhi, Um Grito de Liberdade/Cry Freedom, Terra das Sombras/Shadowlands e Chaplin; em 2007, aos 84 anos, dirigiu Um Amor para Toda a Vida/Closing the Ring, um filme competente mas com uma história bocózinha.

Sir Noël, Sir John, Sir David, Sir Richard. Impressionante como o filme reuniu pessoas que seriam recompensadas mais tarde com o título de nobreza pela Coroa britânica.

Como era um filme sobre marujos, falava-se muito palavrão – ou o que na época era considerado palavrão. O iMDB conta que o povo encarregado de fazer valer os “é proibido” do Código Hays, o código da autocensura de Hollywood, quis vetar os God, hell, damn e bastard que saem a toda hora das bocas sujas da marujada. Os ingleses protestaram violentamente, e vários palavrões foram então permitidos, embora outros tenham sido expurgados na versão exibida na puritana América dos anos 40.

(O que diriam os zelosos censores dos anos 40 dos filmes de hoje, em que há mais fucks do que estrelas no céu?)

O AllMovie diz que, durante muitos anos, as únicas cópias do filme disponíveis nos Estados Unidos eram da versão filtrada para não ofender os ouvidos puros da época do lançamento, mas que agora, felizmente, “a versão completa, gloriosa, de 115 minutos” é a que pode ser vista nos EUA.

A versão em DVD disponível no Brasil tem 109 minutos. Deve, certamente, ser a higienizada pela censura americana dos anos 40.

Nosso Barco, Nossa Alma/In Which We Serve

De Noël Coward e David Lean, Inglaterra, 1942.

Com Noël Coward, John Mills, Michael Wilding, Richard Attenborough

Argumento e roteiro Noël Coward

P&B, 115 min.

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