Nota:
Sir David Lean (1908-1991), um dos maiores cineastas da História, foi homem de filmografia não muito vasta. Dirigiu apenas 16 longa-metragens, ao longo de 42 anos. Summertime, de 1955, foi o 11º, e o último de seus filmes mais intimistas. A partir daí, ele passaria a fazer superproduções, grandes épicos, gigantescos afrescos.
Para lembrar: depois de Summertime, viriam A Ponte do Rio Kwai (1957), Lawrence da Arábia (1962), Doutor Jivago (1965), A Filha de Ryan (1970) e Passagem para a Índia.
Não poderia haver nada mais distante das superproduções que viriam a seguir do que Summertime.
Em seus filmes seguintes, Lean mostraria, como pano de fundo, passagens marcantes da Grande História: a Segunda Guerra Mundial, os conflitos no mundo árabe ao fim do período colonialista, a Revolução Russa de 1917, o conturbado período de luta pela independência da Irlanda, o choque cultural numa Índia às vésperas de sua libertação do Império Britânico.
Em Summertime não há Grande História como pano de fundo. Não é um afresco, é um pequeno retrato. Não é uma sinfonia, é uma peça de câmara para poucos instrumentos.
É, a rigor, um fiapinho de trama, apenas: solteirona americana de meia-idade faz a primeira viagem internacional, realiza o sonho de conhecer Veneza, e lá conhece um homem, um italiano charmoso.
Só isso. Simples assim.
Na verdade, a história, os fatos, os acontecimentos não importam tanto. O que importa é a personalidade da mulher, são suas reações, seu comportamento, seus sentimentos, a maneira com que ela lida com eles.
Assim, este é um filme que depende, em grande parte, em imensa parte, da atuação da atriz que faz a protagonista, essa Jane Hudson, pessoa simples de uma pequena cidade do interior de Ohio.
Como a atriz é Katharine Hepburn, é uma beleza de filme.
Simples assim.
A protagonista é uma mulher solitária, insegura
Claro, há também as extraordinárias paisagens de Veneza. Os créditos iniciais avisam que o filme foi inteiramente rodado lá. E o diretor de fotografia Jack Hildyard usa e abusa daquela beleza que a equipe tinha diante de si. Há longas, belíssimas tomadas de Veneza, os canais, o casario, detalhes e mais detalhes de estátuas, os becos, a cidade ao anoitecer, ao alvorecer.
É um esplendor de cidade, e as imagens são esplendorosas.
Mas o que importa é Jane Hudson, cada um de pequenos gestos.
O roteiro – de H. E. Bates e David Lean, com base na peça teatral The Time of the Cukoo, de Arthur Laurents – não se preocupa em nos contar muito sobre o passado de Jane Hudson. É mencionado que ela trabalha como secretária, e se considera uma mulher independente. Não é rica, mas poupou dinheiro para gastar na viagem de seus sonhos.
Menciona-se também que ele teve um namorado, quando ainda estava na escola. Mais não se diz – e o o espectador vai percebendo que aquela mulher que está chegando aos 50 anos sempre foi solitária; é bem provável que nunca tenha tido mais que aquele namoro adolescente.
É comunicativa, conversa à vontade com pessoas que acaba de conhecer – mas é extremamente recatada, jamais fala de sua vida pessoal. Provavelmente não se acha bela, atraente.
Quando, sentada em um café da Piazza San Marco, percebe que está sendo observada por um homem sentado pouco atrás dela, mostra-se extremamente insegura, nervosa, quase apavorada.
O acaso a fará reencontrar o homem. Chama-se Renato de Rossi (o papel de Rossano Brazzi), e é dono de uma loja de antiguidades. Comprará dele um belo cálice, que ele garante ser do século XVIII.
Mais tarde, sentada novamente no café da praça central de Veneza, porá a segunda cadeira de sua mesinha encostada nela, para indicar que está com alguém. Quando Rossi passa por ela e a cumprimenta, ela chega a estender a mão para pôr a cadeira direito no chão – mas já é tarde, Rossi já passou por ela e está seguindo em frente.
O filme de diferenças culturais, mas de maneira suave; o foco é o comportamento
Summertime passa pela questão das diferenças culturais – um tema caríssimo ao cineasta, que ele desenvolveria nos seus filmes posteriores. Mostra como aquela mulher do interiorzão da América vem de uma civilização puritana, recatada, repressora, algo profundamente diferente do comportamento europeu, latino.
Mas o filme fala disso de maneira extremamente suave, elegante, quase como se fosse en passant. O foco é o comportamento, a personalidade da protagonista.
E a interpretação dessa atriz esplêndida é extraordinária.
Katharine Hepburn teve com o filme a sexta de suas 12 indicações ao Oscar. Não levou o prêmio, que já havia ganho em 1934 por Manhã de Glória e que voltaria a ganhar três outras vezes depois, por Adivinhe Quem Vem Para Jantar (1967), O Leão no Inverno (1968) e Num Lago Dourado (1981).
David Lean também teve indicação ao Oscar de melhor direção, mas não levou. Nos filmes seguintes, ganharia diversos Oscars: A Ponte do Rio Kwai teve 7 (em 8 indicações), Lawrence da Arábia teve 7 (em 10 indicações), Doutor Jivago teve 5 (em 10 indicações), A Filha de Ryan teve 2 (em 4 indicações), e Passagem para a Índia teve 2 (em 11 indicações).
Segundo o IMDb, consta que David Lean tinha Summertime como o favorito dos filmes que realizou.
Consta também que o número de turistas que visitavam Veneza dobrou depois do lançamento do filme.
A peça de Arthur Laurents em que o filme se baseia estreou na Broadway em outubro de 1952, e teve 263 apresentações. Depois do filme, o próprio autor fez uma adaptação da história para um musical, com o título de Do I Hear A Waltz, com canções assinadas por Richard Rodgers e Stephen Sondheim; o espetáculo musical estreou em 1965, dez anos após o lançamento do filme.
Depois do contato com a água de Veneza, Kate pegou uma conjuntivite que não a largaria
Bem no meio do filme, há uma sequência em que a personagem Jane Hudson cai num dos canais de Veneza. Diz o livro Uma Mulher Fabulosa, a biografia de Katharine Hepburn escrita por Anne Edwards: “A água dos canais de Veneza é uma poluída mistura de lixo, detritos humanos, lama putrefata. Apesar da insistência de Kate de que não queria se arriscar a pegar uma doença rara ou causar mais mal à sua pele, David Lean insistia no realismo da cena. Finalmente Kate concordou, quando Lean conseguiu cercar toda uma paetê de um canal com lençóis de plástico presos às barcas e depois inundar a área de desinfetante. (…)
“Kate, com o rosto e todas as partes expostas do corpo cobertas de vaselina como proteção extra, caiu de costas na hora em que a água ficou limpa. Lean não ficou satisfeito com a tomada. (…) Foram precisas mais três tomadas até Lean se dar por satisfeito.
“Nessa mesma noite os olhos de Kate começaram a coçar e lacrimejar. Ela adquirira uma espécie de conjuntivite que nunca mais a abandonou, causando uma espécie de olhar lacrimoso que se tornou parte de sua imagem e que ninguém suspeita que a umidade não seja proposital.”
A biografia conta também que Spencer Tracy viajou dos Estados Unidos até Veneza para se encontrar com Kate Hepburn – os dois foram amantes durante décadas. O encontro foi tenso: “Tinha havido rumores na imprensa européia de um romance entre Tracy e Grace Kelly”.
“O espectador se emociona com o amor dessa americana muito comum”
Leonard Maltin dá 3.5 estrelas em 4 para o filme: “Suave filme sobre uma solteirona em férias em Veneza, apaixonando-se por homem (e aqui ele revela um pequeno spoiler). O retrato sensível feito por Hepburn é um de seus melhores. Belamente filmado nos locais reais por Jack Hildyard.”
Pauline Kael, como em 99% dos filmes que comenta, é cruel. Aí vai a tradução de Sérgio Augusto para a edição brasileira de 1001 Noites no Cinema:
“Katharine Hepburn, empertigada e esquelética, fazendo uma virgem americana envelhecida em férias na sensual e corrupta Veneza, e Rossano Brazzi como um marchand melífluo e mais magro que a corteja. Há um elemento embaraçoso neste papel de solteirona ansiosa, mas Hepburn é tão hábil que quase – embora não inteiramente – elimina o constrangimento. É difícil acreditar que a reunião de uma puritana murcha e um roué de meia-idade ilumine o céu com os fogos de artifício que o diretor, David Lean, proporciona, mas este é um daqueles filmes românticos supertrabalhados e sutis (como Desencanto, de Lean), que muitas pessoas lembram com emoção considerável.”
(Roué… Dame Kael adora uma palavrinha pouco usual. Roué, vejo no Dictionary da Longman, é uma forma antiga de rake – “um homem que levou uma vida selvagem em relação a bebidas e mulheres”. Um farrista. Vivendo, aprendendo e depois esquecendo…)
Cada vez que leio uma crítica no Guide des Films de Jean Tulard, mais fico impressionado, encantado. Aí vai, sem aspas para não me obrigar a ser literal, o que o Guide diz sobre Vacances à Venise, que foi o título francês do filme.
David Lean é um santo homem. À vontade nos afrescos épicos, ele pode muito bem tratar de um tema delicado, sutil. Este ‘breve encontro em Veneza’ repousa sobre um postulado convencional – e no entanto a mágica opera.
(É bom lembrar que a expressão “breve encontro em Veneza” remete ao grande filme de Lean de 1945, Brief Encounter, no Brasil Desencanto.)
O Guide prossegue:
O espectador se emociona com o amor dessa americana muito comum, que faz compras, filma tudo com sua máquina Kodak e bebe uísque. Acontece que David Lean passou por ali e enriqueceu seu filme, pontuando-o de um grande número de detalhes verdadeiros ou divertidos, de situações inesperadas, de notas de ternura. Um verdadeiro romantismo atravessa Vacances à Venise – não de fotonovelas sem ressonância interior –, e confere a essa história que poderia ser um oceano de platitudes uma autêntica dimensão humana. Lean sabe também explorar um cenário como se fosse um personagem; Veneza é apresentada a cada minuto do filme – a Veneza dos turistas, é claro, mas também aquela mais secreta das vielas escondidas. Magnificamente fotografado por Jack Hildyard em Technicolor de grande sobriedade, Veneza vive sob seus olhos, em vez de ser reduzida a um cartão postal. Não se poderia encontrar, enfim, ninguém para o papel de Jane, senhorita atrasada, banal, um tanto gauche, que essa imensa magreza ossuda de Katharine Hepburn.
Uau! Quando eu crescer, gostaria de saber escrever assim…
A França não é apenas a pátria do cinema – é também das pessoas que sabem escrever sobre os filmes.
Summertime é uma beleza, David Lean é grande e Katharine Hepburn é extraordinária.
Anotação em outubro de 2013
Quando o Coração Floresce /Summertime
De David Lean, EUA-Inglaterra, 1955
Com Com Katharine Hepburn (Jane Hudson), Rossano Brazzi (Renato de Rossi),
e Isa Miranda (Signora Fiorini), Darren McGavin (Eddie Yaeger), Mari Aldon (Phyl Yaeger), Jane Rose (Mrs. McIlhenny), MacDonald Parke (Mr. McIlhenny), Gaetano Autiero (Mauro), Jeremy Spenser (Vito de Rossi), Virginia Simeon (Giovanna)
Roteiro H. E. Bates e David Lean
Baseado na peça teatral The Time of the Cukoo, de Arthur Laurents
Fotogrtafia Jack Hildyard
Música Alessandro Cicognini
Produção London Film Productions. DVD Continental.
Cor, 102 min
R, ***1/2
Título na Inglaterra: Summer Madness. Em Portugal: Loucura em Veneza. Na França: Vacances à Venise.
Não achei muita graça no filme, sei lá, acho meio nada a ver pessoas que envelhecem mas não amadurecem e agem com infantilidade. Se ao menos ela tivesse permanecido na cidade até o final das férias eu poderia simpatizar mais com a história, afinal, ela já estava mesmo na chuva… Ao mesmo tempo, fiquei com um pouco de pena da personagem (não gosto da palavra “solteirona”, acho pejorativa; ninguém fala que um homem é “solteirão”, e se fala, nem de longe tem o mesmo peso).
Queria entender como aquele menino sabia falar inglês, ainda que macarrônico.
Mas eu fiquei abestalhada mesmo foi com a beleza e o charme do Rossano Brazzi. Não me lembro de ter visto outros filmes com ele, e fiquei hipnotizada, talvez o papel de sedutor tenha ajudado (até o sotaque eu achei bonito). Já não se fazem mais galãs como antigamente.
Fiquei um pouco chocada ao saber que a Hepburn teve que cair naquelas águas imundas mais de uma vez (não tenho a menor vontade de conhecer Veneza) e ter adquirido a tal conjuntivite por causa disso (capricho do diretor). Eu desconhecia essa história, e achava estranho os olhos dela lacrimejarem em outros filmes, mesmo em cenas que não tinham emoção.
Gostaria de saber o nome da flor que Rossano Brassi entrega para Katerine e ela deixa cair no canal de Veneza. Obrigada
Estou verdadeiramente surpresa de nunca ter visto esse filme antes. Gostei demais e me deu saudades de filmes adultos assim, elegantes. Me comovi muito com a vulnerabilidade dos personagens. Hoje também vi A Condessa Descalça, foi overdose de charme do Rossano Brazzi
Hepburn foi uma Maravilhosa Atriz. Talento é pouco para definí-la em seu ofício. Prefiro Extraordinária Atriz, como li. Mas surpresa foi Rossano Brassi… ótimo Ator, Bonitão no auge de seu Sex Appeal a La Italiana. Não existem mais Galãs assim hoje em dia. Aquele olhar de Tigre à Caça que seu personagem lança em direção à personagem de Hepburn, no restaurante, enquanto sentada de costas para ele, é fantástico. O filme é uma das ótimas obras de David Lean, Grande Diretor, um de meus favoritos.