Em Cada Lar, um Romance / Home Town Story

Nota: ★★☆☆

(Disponível no Cine Antiqua do YouTube em 6/2022.)

Eis aqui uma interessantíssima peça de museu – e não apenas porque tem, em um pequenino papel, visível durante uns quatro minutos na tela, com direito a umas três ou quatro falas, a jovem Marilyn Monroe.

Se não fosse por Marilyn, este Home Town Story, no Brasil Em Cada Lar, um Romance, lançado em 1951, teria sido perfeita e completamente esquecido. O que seria uma pena, acho: como peça de museu, é, repito, interessantíssimo.

A principal característica do filme, o que o torna algo de interesse (além dos quatro minutos em que Marilyn aparece), deveria estar logo na abertura desta anotação, se ela fosse um bom texto jornalístico: uma das regras básicas do jornalismo é que o mais importante tem que vir logo no princípio do texto. Na abertura – o lead, no jargão dos jornalistas.

Mas, diabo, isto aqui não é um texto jornalístico, é uma anotação minha, apenas – e então vou adiar o que é mais importante. Ou, ainda no jargão das redações, vou fazer um nariz de cera e botar o lead no pé da matéria.

Falando sério: revelar de cara essa tal principal característica de Em Cada Lar, um Romance seria, a rigor, um spoiler. Por isso pensei em postergar a informação.

Um político que não se reelegeu volta para casa

Começo então pelo título.

Home Town Story é um título perfeito – embora de fato “home town” soe muitíssimo melhor do que “cidade natal”. “História da Cidade Natal” de fato seria um título pouquíssimo atraente.

Segundo o IMDb, na França o filme foi lançado com o título original, embora – ao menos teoricamente – os franceses detestem os anglicismos e que se usem lá termos em inglês. Não há por que duvidar do IMDb, mas o Cineguide não registra o filme entre os seus 18 mil verbetes, nem o Guide des Films de Jean Tulard o tem entre os 15 mil títulos que comenta.

Os exibidores espanhóis souberam captar o espírito da coisa, e lá o filme se chamou Vuelta a Casa – um título perfeito, já que a narrativa começa exatamente com o protagonista da história voltando para casa, voltando para sua home town, sua cidade natal.

Agora, Em Cada Lar, Um Romance é uma absoluta excrescência, uma total loucura. Não faz sentido algum. Não há romances na história. Os exibidores brasileiros, sempre extremamente criativos, inventaram essa bobagem que não tem nada a ver com o filme – provavelmente inspirados em Em Cada Coração um Pecado, o ridículo título no Brasil para Kings Row, de 1942.

Bem. Para um país que criou os títulos Noivo Neurótico, Noiva Nervosa para Annie Hall, Depois Daquele Beijo para Blow-up, Os Brutos Também Amam para Shane, Assim Caminha a Humanidade para Giant e Amor, Sublime Amor para West Side Story

Home Town Story começa com o protagonista voltando para casa, para a sua cidade natal. Chama-se Blake Washburn (o papel de Jeffrey Lynn), e estava voltando da capital do Estado após ter sido derrotado na eleição para o Senado estadual. Ao descer do pequeno avião, passa por um grupo que está para entrar na aeronave – o rapaz que havia sido eleito para o lugar dele e sua equipe. Um dos sujeitos dá uma gozeira nele – e Blake desfere um poderoso murro de direita no queixo do gozador.

Um motorista de táxi acolhe o recém-chegado. Conhece-o bem, sabe até que o aniversário dele foi dias atrás. Os dois vão conversando no caminho entre o aeroporto e a casa do ex-senador não reeleito. No meio do caminho, o motorista (o papel de Renny McEvoy) nota, pelo retrovisor, que Blake presta muita atenção a um prédio bem grande pelo qual passam. E explica para o passageiro que a indústria MacFarland está indo muito bem, e tinham acabado de ampliar a sua fábrica e de pintar toda a frente do prédio.

O sujeito que acabava de ser eleito senador estadual no lugar que havia sido de Blake é exatamente o filho do dono da indústria, a maior indústria da home town dele.

O motorista é extremamente simpático a Blake – mas conta que havia votado em MacFarland filho para o Senado.

O político derrotado herda um jornal

Eu não sabia absolutamente nada sobre este Home Town Story, a não ser que Marilyn tinha uma pequena participação nele, uma das suas várias aparições mínimas no começo de carreira.

E então fiquei contente, assim como Mary, por ver que o filme tratava de algo relacionado a política. Gosto de filmes que têm qualquer coisa relacionada a política.

Pouco adiante vemos que o filme trata também de jornal, jornalismo. Epa: política e jornalismo! Que beleza, pensei! (E tenho certeza de que Mary também pensou.)

Não uma comedinha romântica, ou um dramalhãozão romântico – mas um filme dos anos de ouro de Hollywood falando sobre política e jornalismo! Algo totalmente inesperado! Que maravilha!

Bem… Maravilha em termos, porque, embora com esses elementos interessantíssimos, o filme ia se mostrando bem esquemático, previsível…

Blake volta para sua casa, seu home. Ele não é casado; seu lar, seu home, é a casa da mamãe, a sra. Washburn (o papel de Barbara Brown), onde vive também sua irmãzinha Katie, aí de uns 7 anos de idade (interpretada por Melinda Casey, as duas na foto abaixo).

E logo Blake revê sua namorada, Janice Hunt (o papel de Marjorie Reynolds).

Ficamos sabendo que, sete anos antes daquilo que estamos vendo, Blake havia sido convocado e ido para a guerra, a Segunda Guerra Mundial. Havia voltado para casa cheio de medalhas, um herói de guerra – e por isso havia sido eleito para o Senado estadual. Mas não havia sido um bom senador.

Ele mesmo se achava excelente – mas a percepção das pessoas não era a mesma dele. E então o filho do industrial MacFarland havia sido eleito no lugar dele.

Estava sofrendo demais pela derrota o nosso herói – e sequer percebia direito que era um sujeito de muita sorte. Não apenas tinha uma mãe e uma irmã que o adoravam, e mais uma bela namorada que havia esperado por ele ao longo de sete anos, que nem a Penélope de Ulisses, como ainda por cima…

… Tinha um jornal para herdar!

Titio Cliff (Griff Barnett) era o dono do Herald, o jornal da cidade, E, assim que o sobrinho – que no passado, antes de se alistar e ir para a guerra, havia sido um bom editor – chega de volta, titio Cliff anuncia que vai se aposentar e gozar a vida. E deixa o jornal nas mãos de Blake.

Uau, meu! Política e jornalismo, num filme em que Marilyn faz um papelzinho mínimo! Que sorte que é um filme de tema interessante, embora seja assim tão… Tão tudo certinho, tão esquemático…

Marilyn faz a séria secretária do jornal

Mas – poderia perguntar um fã ansioso – e a Marilyn, meu? Como é que a Marilyn aparece? Dá pra ver as coxinhas, digo, os coxões, que nem em O Inventor da Mocidade/Monkey Business, do ano seguinte, 1952? Sabe aquela cena, em que ela, no papel de Miss Lois Laurel, a secretária, bota o pé esquerdo numa cadeira e levanta a saia até um pouco acima do joelho, de forma a revelar para o dr. Barbaby Fulton-Cary Grant o material de que é feita a sua meia?

Que nada… Mas que nada, como diria o Jorge Ben… Nadinha, meu.

Marilyn interpreta uma secretária, sim, a da redação do Herald, o jornal que Blake herda do titio Cliff – mas uma secretária danada de séria. O repórter Slim Haskins (Alan Hale Jr.) dá em cima dela – mas Iris Martin o espanta como o rabo de uma vaca espanta as moscas. Sem dar a menor bola, sem abrir a menor janela para que o cara insista.

Confesso que até que passou pela minha cabeça, muito rapidamente: meu Deus, será que Blake, agora dono do jornal, vai partir pra cima da secretária linda?

Qual o quê. Nada a ver. Nada, nada, nada a ver.

Blake Washburn só pensa no poder. Só pensa no status de senador, que perdeu, e que quer porque quer retomar.

Rapidamente o espectador vê que Blake – herói de guerra, eleito senador estadual exatamente por causa disso, não reeleito porque não foi um bom parlamentar, embora se ache um gênio da raça, um mito – vai usar o jornal como trampolim para retomar sua carreira política.

Na desesperada caça de votos na eleição seguinte, vai abandonar o bom jornalismo.

A essa altura do filme, me entusiasmei – e percebi que Mary estava também achando aquilo muito, muito interessante. Meu! Um filme de que a gente não esperava nada, a não ser ver umas rápidas tomadas de Marilyn, e se revelava de repente uma obra sobre um mau jornalista fazendo mau uso do jornalismo para angariar votos!

Que interessante!

O jornalista passa a combater o lucro – o capitalismo

Blake percebeu que as críticas às grandes empresas agradava às pessoas comuns, os leitores do seu jornal, os eleitores. E começou a fazer uma campanha contra elas, contra o alto lucro delas.

A princípio, até agradou. A circulação do Herald aumentou. Mas a campanha começou a ficar repetitiva, exagerada. Sem profundidade, sem seriedade.

Há muito o que se criticar nas grandes corporações, no seu poder excessivo – e o cinema americano é pródigo em belos filmes em que pessoas abnegadas, de bom caráter e bons ideais, lutam contra as grandes corporações, pequenos Davis enfrentando os Golias do capitalismo. Silkwood, Retrato de uma Coragem (1983), Síndrome da China (1979), Erin Brockovich, Uma Mulher de Talento (2000), A Qualquer Preço (1998), O Homem Que Fazia Chover (1997), Terra Fria (2005), para citar só alguns poucos.

Mas a luta desse Blake Washburn não é específica contra uma corporação que comete abusos criminosos, ou polui o ambiente, ou maltrata os funcionários, ou qualquer coisa assim. Não, nada disso – é ampla, genérica, contra todas as grandes empresas, contra o lucro.

Ele às vezes centra fogo na indústria MacFarland, do pai de seu inimigo político – mas a campanha é ampla, geral e irrestrita contra todas as grandes empresas, contra o lucro.

Ora, ser contra o lucro é ser contra a própria essência do capitalismo. E não chega a ser inteligente, lógico, lúcido – muito antes ao contrário.

Quando o filme chega nesse ponto, Mary e eu nos entreolhamos – e comentamos que a campanha promovida pelo jornalista Blake tinha virado uma cruzada contra o capitalismo!

Bem: me alonguei ao relatar o início do filme. Sintetizo o que vem a seguir. Primeiro o próprio industrial MacFarland pai (o papel deDonald Crisp) irrompe na redação do Herald e faz um belo discurso a favor do lucro – demonstrando que o lucro das empresas é necessário e ajuda todas as pessoas da sociedade. Em seguida acontece um grave acidente que coloca em risco a vida de Katie, a irmãzinha de Blake. E MacFarland usa maquinário, tratores, meios de transporte, seu avião particular para salvar a vida de Katie.

C.Q.D. Como queríamos demonstrar: o capitalismo é bom, salva vidas.

Uma peça de propaganda corporativa!

Uau! Um filme em que o herói – na verdade o anti-herói – faz mau uso do jornalismo, em benefício próprio, numa luta contra um inimigo político. Para, ao fim e ao cabo, ser um panfleto a favor do capitalismo, da grande empresa, do lucro.

Coisa esquisita…

E agora chego à tal principal característica do filme, que adiei até aqui.

Bastou uma rápida olhada na página de Trivia do IMDb para ficarmos sabendo algo absolutamente fantástico, incrível, inimaginável: o filme foi feito sob encomenda da General Motors – e financiado pela grande corporação!

Home Town Story é, de fato, uma peça de propaganda!

A GM pagou por essa peça de propaganda do regime capitalista!

Transcrevo o que diz o IMDb:

“De acordo com artigos da época no Daily Variety, este filme foi feito por uma produtora chamada Wolverine Production, sob os auspícios da General Motors Corporation, e era para ser o primeiro das ‘produções de serviço público’ da empresa de carros. Nenhuma menção a qualquer uma das duas firmas é feita no filme, e nenhum carro da GM aparece, a não ser o Cadillac dirigido por John MacFarland (Donald Crisp). Dore Schary (então chefe de produção da Metro-Goldwyn-Mayer) comprou os direitos para a MGM por uma ninharia, e o estúdio teve um bom lucro com essa propaganda corporativa.”

Achei esse caso fantástico, fascinante. Nunca tinha ouvido falar de um filme de Hollywood encomendado como uma propaganda, patrocinado por uma empresa!

E é interessante também o fato de que o filme é de fato muito pouco conhecido.

Citei lá em cima que o filme não consta do Cineguide nem do Guide des Films de Jean Tulard. Mas não é só nesses livros franceses. Ele não consta também do guia da dupla Mick Martin & Marsha Porter, nem no de Steven H. Scheuer. Nem no 5001 Nights at the Movies de Pauline Kael. Nem no Film Guide da Time Out (que traz resenhas sobre 13.300 filmes).

É um filme pouco conhecido – apesar de ter Marilyn

Ou seja: é de fato um filme obscuro, pouco falado – mesmo sendo um dos 29 feitos por Marilyn Monroe, uma das maiores estrelas do cinema mundial, se não a maior de todas.

Só vi referências a ele no IMDb, o site enciclopédico que tem absolutamente tudo sobre os filmes, no livro The MGM Story e no guia de Leonard Maltin. Este último deu ao filme 2 estrelas em 4, e escreveu apenas o seguinte:

“Óbvio relato sobre político (Jeffrey) Lynn recentemente derrotado, que culpa as grandes empresas por sua derrota e tenta difamar o industrial (Donald) Crisp. De interesse principalmente pelo papel pequeno de Monroe como uma das pessoas que trabalham para Lynn.”

O livro sobre os filmes da MGM diz: “Home Town Story foi um produto de outros que veio parar com a MGM, deixado pela General Motors, que o havia encomendado ao autor e diretor Arthur Pierson como uma peça de propaganda. Ele ingenuamente conta como o jornalista Jeffrey Lynn aprendeu que vinha agindo errado, compreendendo a bondade das Grandes Empresas quando sua irmã pequena, presa em uma mina que sofre um desabamento, é salva pelo maquinário do magnata Donald Crisp.”

E em seguida o texto cita os atores que estão na foto do filme: “Lynn, Nelson Leigh, Melinda Plowman, Alan Hale Jr., Crisp e Marjorie Reynolds. Também no elenco: Barbara Brown, Marilyn Monroe, Glenn Tryon”.

Assim. Desse jeito. O livro The MGM Story cita o nome de Marilyn Monroe dando a ela a mesma importância que dá a Barbara Brown e Glenn Tryon. Um absurdo, para dizer o mínimo.

Aliás, não achei explicação para o fato de Marilyn, uma atriz contratada pela 20th Century Fox, ter tido autorização para trabalhar num filme de uma pequena produtora, a tal Wolverine Production. Certamente a Fox a emprestou para essa produtora – em 1950, 1951, Marilyn ainda era apenas uma atriz iniciante que fazia pequenos papéis em filmes do grande estúdio. Mas é interessante o fato de a página de Trivia do IMDb não tratar do assunto. Afinal, este é o único filme de Marilyn fora da Fox depois de assinado o contrato em 1950 – e o único filme distribuído pela concorrente MGM em que ela aparece. (O cartaz acima é da epoca de lançamento do filme. O abaixo, claro, é bem mais recente.)

O Encouraçado Potemkim também é propaganda…

Um filme encomendado por uma indústria de carros para fazer propaganda do lucro e, portanto, do capitalismo!

Que coisa interessante…

Me ocorreu, antes de começar a escrever esta anotação, que, por si só, o fato de ter sido encomendado como peça de propaganda não desmerece um filme. Os filmes do chamado “esforço de guerra” foram feitos durante a Segunda Guerra Mundial como propaganda patriótica, para mobilizar a população civil a favor da guerra contra o nazifascismo – e há belíssimas obras, como Nosso Barco, Nossa Alma (1942)O Encouraçado Potemkin (1925) foi da mesma maneira encomendado a um diretor como uma peça de propaganda. No caso, encomendado a Sergei Mikhailovich Eisenstein pelo governo da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas para comemorar os 20 anos das revoltas populares de 1905.

O Encouraçado Potemkim é um dos melhores filmes da História do Cinema. Já este Home Town Story provavelmente já teria sido inteiramente esquecido se não fosse por Marilyn Monroe.

É uma peça de museu interessantíssima – um caso raro, um caso interessante. Mas um filme ruim. Não porque seja um panfleto, uma propaganda – mas porque não é bom. É fraco. É esquemático demais. É, como diz o livro sobre os filme da MGM, ingênuo.

Naïve.

Anotação em junho de 2022

Em Cada Lar, um Romance/Home Town Story

De Arthur Pierson, EUA, 1951

Com Jeffrey Lynn (Blake Washburn)

e Alan Hale Jr. (Slim Haskins, o repórter do jornal de Blake), Marjorie Reynolds (Janice Hunt, a namorada de Blake), Donald Crisp (John MacFarland, o industrial), Barbara Brown (Mrs. Washburn, a mãe de Blake), Melinda Casey (Katie Washburn, a irmãzinha de Blake), Marilyn Monroe (Iris Martin, a secretária do jornal), Griff Barnett (Cliff, o tio de Blake), Renny McEvoy (o motorista de táxi), Glenn Tryon (Kenlock), Byron Foulger (Berny Miles), Virginia Campbell    (Phoebe Hartman), Harry Harvey (Andy Butterworth), Nelson Leigh (Dr. Johnson), Speck Noblitt (policial de moto)

Argumento e roteiro Arthur Pierson

Fotografia Lucien N. Andriot

Música Louis Forbes

Montagem William F. Claxton

Direção de arte Hilyard M. Brown

Produção Arthur Pierson, Wolverine Productions e (não creditada) General Motors Company. Distribuição MGM.

P&B, 61 min (1h01)

**

Título na Espanha: Vuelta a Casa

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