Um Triste Prazer / Damaged Lives

Nota: ★★½☆

(Disponível no Dwan e Walsh Filmes, no YouTube, em 7/2023.)

Damaged Lives, de 1933, no Brasil Um Triste Prazer, não é um grande filme, em nenhuma das acepções do adjetivo. Em tamanho, duração, é bem pequeno, com apenas 61 minutos. Mas, para quem gosta de cinema, de História do Cinema, é uma preciosidade. E por vários motivos.

Foi o primeiro longa-metragem dirigido nos Estados Unidos por Edgar G. Ulmer, esse realizador importante, de respeito, nascido na Morávia, na época Império Áustro-Húngaro, hoje República Checa, e que começou a carreira na Alemanha, com F.W. Murnau e Max Reinhardt.

“Ninguém jamais realizou bons filmes mais depressa ou com menos dinheiro do que Edgar Ulmer”, escreveu Peter Bogdanovich em seu gigantesco livro Afinal, Quem Faz os Filmes. “O que ele era capaz de fazer a partir do nada (às vezes também no que tange aos roteiros) permanece uma lição para os diretores (incluo-me entre eles) que reclamam de orçamentos e prazos apertados. Edgar raramente dispunha de mais de seis dias para fazer um filme!”

Para rodar este Damaged Lives, no Brasil Um Triste Prazer, Ulmer levou oito dias. E o filme foi também o seu primeiro longa falado, após o fim da era do cinema mudo.

Foi produzido por Nat Cohn, irmão de Harry Cohn, o famoso chefão da Columbia Pictures, e distribuído pelo estúdio, mas a Columbia preferiu não botar seu nome nos créditos, para não se associar ao tema polêmico, controvertido, ainda mais naqueles anos 1930, em que estava em vigor o Código Hays, o código de autocensura adotado por Hollywood por pressão de entidades conservadoras. Nos créditos, se diz que o filme é uma produção de uma tal Weldon Pictures – uma companhia inventada pela Columbia especificamente para este Damaged Lives.

Mesmo assim, o estúdio preferiu guardar o filme nas latas durante quatro anos – o lançamento só aconteceu em 1938.

A cópia do filme disponível atualmente no YouTube, grátis como um passeio no parque, traz na abertura os nomes dos restauradores do original, em inglês e francês: “Este filme foi preservado pelo UCLA Film and Television Archive e os Arquivos Nacionais do Canadá. Restaurado por Robert Gitt, D.J.Turner. Serviços de laboratório: Film Technology Company e YCM Laboratories.”

Em 1933, a Columbia tinha vergonha de aparecer como produtora do filme. Quase um século depois, é com orgulho que os arquivos da Universidade da Califórnia em Los Angeles e do governo do Canadá têm orgulho em anunciar que restauraram a obra. Não é sensacional?

O tema do filme, a questão que é sua essência, o tópico polêmico, controvertido, só aparece quando estamos aos 27 minutos do filme que dura apenas 61. Todas as sinopses escancaram de imediato qual é esse ponto – mas eu fico cada vez mais preocupado com a questão do spoiler.

Pode até parecer bobagem, besteira, mas faço o aviso: se o eventual leitor ainda não viu o filme, e não quiser saber de antemão qual é o tema controvertido que ele aborda, deveria parar de ler aqui.

Atenção: a rigor, a rigor, o que vem abaixo é spoiler

Nos créditos iniciais, bem rápidos, curtos, como se usava na época, aparece, em letras grandes: “Exibido sob os auspícios da Associação Americana de Higiene Social”.

American Social Hygiene Association. A Wikipedia tem o verbete “Social hygiene movement”:

“O movimento ela higiene social foi uma tentativa feita pelos reformadores da era progressiva de controlar as doenças venéreas, regular a prostituição e o vício, e disseminar a educação sexual através do uso de métodos de pesquisa científica e técnicas dos meios de comunicações modernos. Higiene social como uma profissão se desenvolveu ao lado do trabalho social e outros movimentos de saúde pública da época. Os higienistas sociais enfatizavam a continência sexual e a auto-disciplina estrita como uma saída para os males sociais, ligando a prostituição, o uso de drogas e a ilegitimidade à rápida urbanização. O movimento permaneceu vivo através de boa parte do século XX e chegou às escolas americanas, onde foi transmitido na forma de filmes apresentados nas salas de aula sobre menstruação, doenças sexualmente transmissíveis, abuso de drogas e comportamento sexual aceitável, e também de uma vasta gama de panfletos, cartazes e livros.”

E mais adiante: “A American Social Hygiene Association foi parceira do governo durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Ela dava informações sobre higiene e saúde sexual para os soldados, na esperança de que essa educação pudesse ajudar a tirar menos soldados da ação devido a doenças venéreas.”

O rapaz dá uma trepada com uma puta de luxo

Os personagens principais de Damaged Lives são da classe alta de Nova York, que, naqueles anos 1930, já era, como se sabe, a maior metrópole dos Estados Unidos.

Na primeira sequência, Donald Bradley (George Irving) está ditando para a secretária um memorando dirigido a todos os chefes de departamentos de sua empresa, uma grande companhia marítima, que seu filho, Donald Bradley Jr. (Lyman Williams, na foto acima) está assumindo a chefia executiva dos negócios.

Donald Jr. é o protagonista da história – que foi escrita por Donald Davis e pelo diretor Edgar G. Ulmer, inspirada em peça do francês Eugène Brieux.

Donald Jr. está de namoro firme, e já faz algum tempo, com uma moça também de família rica, distinta, Joan (o papel de Diana Sinclair, na foto acima, o primeiro nome a aparecer nos créditos iniciais e nos cartazes do filme).

Os dois jovens namorados são amigos muito chegados de um simpático casal, Bill e Laura Hall. Bill é médico, o que terá importância na trama, e é interpretado pelo único nome do elenco que eu reconheço, Jason Robards. Laura é o papel de Marceline Day, uma bela atriz.

Os deveres do jovem Donald como principal executivo da empresa da família incluem jantares com outros grandes armadores, colegas da mesma área de atuação. Em uma determinada noite, Donald é obrigado a sair para jantar em restaurante elegante com o dono de outra empresa de navegação, Nat Franklin (Harry Myers), um sujeito chato, que bebe demais, e se faz acompanhar de uma moça loura bonita, atraente, chamada Elise Cooper (o papel de Charlotte Merriam).

O tal executivo Nat volta e meia deixa Donald e Elise sozinhos para ir conversar numa outra mesa com algum outro empresário, ou alguma outra dama da noite.

Para não encompridar muito a história, Donald e Elise acabam ficando juntos durante um bom tempo, se distanciam do tal Nat, que àquela altura já está bem bêbado e foi atrás de outra escort. O rapaz leva a moça à casa dela, um apartamento imenso – puta de luxo ganhava muito bem, segundo mostra o filme.

Donald ensaia ir embora – mas Elise o leva para seu quarto.

Isso acontece quando o filme está com uns 15 minutos. Mais adiante, quando estamos ali com 27 minutos, e Donald e Joan já se casaram, a moça Elise liga para o rapaz, diz que é absolutamente urgente que ele vá conversar pessoalmente com ela.

“Eu não sabia! Eu juro que eu não sabia!”

Vale a pena transcrever o diálogo.

Elise: – “Não! Eu não posso falar ao telefone! Você tem que vir aqui!”

Quando chega ao apartamento da moça, é atendida por uma enfermeira, que conta a ele que Elise tentou se matar: – “Agora está bem, mas temos que observá-la o tempo todo.”

Elise estava deitada em sua cama. Ao ver Donald chegar, senta-se, expressão de susto e medo: – “Não chegue perto de mim! Não me toque!”

Donald: – “O que aconteceu? Por que você me chamou? Há algo que eu possa fazer por você?”

Elise se levanta da cama, dá alguns passos no quarto.

Donald repete a pergunta: – “Como eu posso ajudar?” E, depois de um momento de silêncio: – “Estou casado agora, e…”

Elise: – “Eu sei.” Senta-se, começa a chorar.

Donald: – “O que aconteceu com você?”

Elise: – “Ah, não sou só eu. Essa é a parte terrível. Não sou só eu. Mas você também. Ouça, Don. Você tem que acreditar: eu não sabia. Eu juro que não sabia. Oh, você não vai acreditar em mim, mas é verdade. Eu não sabia!”

O rapaz ainda não entendeu: – “O que você quer dizer?”

Elise: – “Você está casado agora, não é? Você está feliz agora, não está?”

Donald: – “Sim. Sim. Eu não consigo entender…”

Elise: – “Estou tentando dizer… É horrível. Eu não sei como dizer isso. Don, naquela noite em que você esteve aqui… Você tem que acreditar que eu não sabia. Você tem que entender que Nat e eu éramos… Éramos amigos… E ele vinha aqui muitas vezes… Entendeu?”

Donald diz que sim, e Elise encaminha a conversa para um fim: – “Isso é tudo o que eu queria dizer para você. Agora saia. Saia! Me deixe em paz. Seu tolo. Seu tolo estúpido! Você não consegue entender? Eu disse que tinha algo errado com Nat. Agora eu peguei. Sim, eu peguei. Não há dúvida. E pelo que sei passei para você. Você e sua pequena esposa. Agora você entende?”

O ator Lyman Williams (1909-2000) estava com apenas 24 aninhos quando o filme foi feito, e tinha uma absoluta baby face. De terno tão impecável quanto o cabelo louro muitíssimo bem penteado, é a expressão da inocência, da juventude, quando finalmente responde para a moça:

– “Eu não acredito em você. Está me ouvindo? Não acredito em você. Você está mentindo pra mim.”

Elise desaba numa cadeira. Donald, de pé, olhando para ela, diz: – “Uma coisa dessas não poderia acontecer comigo.”

Como é que são mesmo aquelas cinco fases? Negação, raiva, barganha, depressão, aceitação. Donald Bradley Jr., aos 30 minutos de Damaged Lives, está na absoluta negação. Isso só acontece com os outros – não, não pode acontecer comigo.

A peça francesa deu origem a quatro filmes de Hollywood

Como sempre diz a Mary, a gente não sabe coisa alguma. Nunca soube da existência da American Social Hygiene Association. Nunca soube que houve um filme fazendo propaganda dos cuidados necessários para evitar as doenças venéreas. Nunca tinha ouvido falar em Eugene Brieux.

Esse nome do autor não aparece nos créditos do filme, mas o IMDb informa que este Damaged Lives é um dos vários que se inspiraram na peça Les Avariés, damaged, avariados, danificados.

O dramaturgo Eugène Brieux (1858-1932) nasceu em Paris, de pais pobres, humildes. Suas peças, diz a Wikipedia, são essencialmente didáticas, e falam das fraquezas e iniquidades do sistema social.

Blanchette (1892) falava dos resultados da educação das moças das classes trabalhadoras; Monsieur de Réboval (1892) denunciava o farisaísmo;

L’Engrenage (1894) era contra a corrupção na política; Les Bienfaiteurs (1896) criticava a frivolidade de um tipo de ricos caridosos; L’Évasion (1896) satirizavas a crença indiscriminada em que a hereditariedade era responsável por praticamente tudo no comportamento humano.

Les Avariés é de 1901; em inglês a peça teve o título que seria roubado pelo filme, Damaged Lives, e foi proibida pela censura devido – diz a enciclopédia colaborativa – aos detalhes médicos sobre a sífilis. Conta a história de um jovem advogado que não obedece aos conselhos de um médico de que deveria adiar seu casamento e submeter-se a um tratamento contra a sífilis. A peça foi dedicada a Jean Alfred Fournier, na época a maior autoridade européia sobre a doença.

Em 1913, o grande romancista Upton Sinclair (1878-1968) lançou uma versão da peça francesa em forma de romance – e a partir daí a história seria filmada – meu Deus do céu e também da Terra! – quatro vezes. Antes deste filme aqui, de 1933, houve um Damaged Good,s dirigido por Tom Ricketts, de 1914, e outro Damaged Goods em 1919, dirigido por Alexander Butler. E em 1937 ainda haveria outro Damaged Goods, dirigido por Phil Goldstone,

Que coisa impressionante!

O cinema já foi usado como propaganda de tudo

Leonard Maltin deu ao filme 2 estrelas em 4:

“Melodrama sincero pregando contra os perigos dos casos extraconjugais que, neste caso, levam à doença venérea. Definitivamente um filme de orçamento pequeno, mas nada de exploração ou baixaria, ao contrário do que se poderia presumir. Originalmente seguido por uma aula médica de meia hora sobre doenças venéreas. Feito em 1933, mas lançado apenas quatro anos depois.”

Quero ainda fazer dois registros.

O primeiro é sobre Jason Robards, que, como foi dito, faz o papel do dr. Bill Hall, o grande amigo do casal Donald e Joan. Jason Robards (1892-1963) teve uma carreira longa e cheia, com 233 títulos em sua filmografia, entre 1921 e 1963. Seu filho, Jason Robards Jr. (1922-2000), também teve longa e respeitável carreira, com 132 filmes, que incluem desde Suave é a Noite (1962), em que interpretou o protagonista, o dr. Dick Diver, a Todos os Homens do Presidente (1976), em que fez Ben Bradlee, o lendário diretor de redação do Washington Post.

O segundo é sobre o cinema como arma de propaganda.

Os filmes já serviram para fazer propaganda de tudo – e isso não diminui em nada o cinema. Muito antes ao contrário: só demonstra a imensa importância dessa arte fantástica, maravilhosa.

O cinema já serviu como arma de propaganda do nazismo, e muita gente diz que os filmes de Leni Riefenstahl têm seu lado belo, apesar de servirem para glorificar o regime mais atroz, mais abominável que a humanidade foi capaz de criar.

Sergei Mikhailovich Eisenstein fez obras-primas ao exaltar a então jovem União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e o comunismo.

Grandes cineastas dos mais diversos países realizaram belos filmes para condenar duramente tanto o nazismo quanto o comunismo, para mostrar seus crimes – de Andrzej Wajda a François Truffaut, de Costa-Gavras a Steven Spielberg.

Belíssimos filmes homenagearam a imprensa como arma fundamental para a democracia.

Os filmes do chamado “esforço de guerra” foram feitos durante a Segunda Guerra Mundial como propaganda patriótica, para mobilizar a população civil a favor da guerra contra o nazifascismo – e há belíssimas obras, como Nosso Barco, Nossa Alma (1942).

No início dos anos 1950, a General Motors financiou um filme para fazer a propaganda do capitalismo, das grandes empresas privadas, do lucro. O filme, Em Cada Lar, um Romance/Home Town Story (1951), é bem fraquinho; serve mais como peça de museu – e por ter, em um pequenino papel, uma então iniciante com o nome artístico de Marilyn Monroe.

Assim, não há nada de estranho haver um filme que serve de propaganda dos cuidados para evitar as doenças venéreas.

Muito ao contrário: a causa, bem diferentemente daquela de Triunfo das Vontades (1935), da cineasta de Adolf Hitler, é nobre.

Anotação em julho de 2023

Um Triste Prazer/Damaged Lives

De Edgar G. Ulmer, EUA, 1933

Com Lyman Williams (Donald Bradley Jr.),

Diane Sinclair (Joan, a namorada e depois mulher de Donald),

e George Irving (Donald Bradley Sr., o dono da empresa marítima), Almeda Fowler (Mrs. Bradley), Jason Robards (dr. Bill Hall, o grande amigo do casal Donald e Joan), Marceline Day (Laura Hall, a mulher de Bill), Charlotte Merriam (Elise Cooper, a escort de ricaços), Murray Kinnell (Dr. Vincent Leonard), Harry Myers (Nat Franklin, o armador bêbado), Victor Potel (policial), Cecilia Parker (Rosie), Harry Semels (garçom)

Roteiro Donald Davis, Edgar G. Ulmer      

Diálogos Donald Davis

Baseado na peça teatral de Eugène Brieux (não creditada)

Fotografia Allen G. Siegler

Montagem Otto Meyer

Produção J.J. Allen, Maxwell Cohn, Nat Cohn     

P&B, 61 min (1h01)

**1/2

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