(Disponível no Dwan e Walsh Filmes no YouTube em 7/2023.)
Típico estilo B em história sobre a suposta assassina Payton descobrindo o verdadeiro criminoso. Com essa frase, ou algo bem parecido (a tradução que fiz não é literal), o crítico Leonard Maltin matou o verbete sobre o filme Murder is My Beat, no Brasil O Morto Desaparecido, que Edgar G. Ulmer lançou em 1955. Simples assim.
Payton é Barbara Payton, a atriz pouco famosa que interpreta Eden Lane, a loura que pode (ou não) ser a femme fatale deste filme considerado noir – e, para ser noir, é necessário que haja uma femme fatale, de preferência linda e loura.
Eden é apontada como a provável criminosa por uma vizinha do homem assassinado, com o rosto jogado na lareira de seu apartamento, as mãos lançadas sobre o fogo. Essa vizinha da vítima, Miss Sparrow (Kate MacKenna). é uma senhorinha extremamente careteira e com todo jeito de tremenda fofoqueira. Ela vai respondendo às perguntas do detetive da polícia Ray Patrick, o protagonista da trama (o papel de Paul Langton). Quando ele quer saber se ela conhecia bem a vítima, o sr. Deane, Miss Sparrow diz que ninguém o conhecia direito – ele costumava usar o apartamento só uma vez por mês, mais ou menos. À pergunta sobre eventuais visitas ao sr. Deane, a velhinha diz:
– “Só uma. Uma mulher jovem. Usava roupas apertadas. Indecente o jeito que mostrava suas formas. Me pergunto se não foi ela que o matou. Tem o tipo das que trabalham em boates, essas coisas.”
Que boate? – “The Spotlight”, responde ela. “Ouvi o nome ser falado uma vez.” E, para não ser julgada uma intrometida, dá a explicação: – “Paredes finas…”
– “Essa moça… Como ela é?”, pergunta o detetive Ray Patrick.
– “Usava roupas apertadas”, repete a velhinha. – “O nome é Eden. Pelo menos era como o sr. Deane a chamava. Nome idiota para uma moça. Lembra o pecado original. O jardim do Eden…”
Nesse momento, ainda não chegamos aos 8 minutos do filme que dura apenas 77. Quando estamos com 28 minutos de filme, o detetive Ray Patrick, que havia localizado e prendido a suspeita Eden Lane, está lendo no jornal a notícia de que a moça havia sido condenada pela morte de Deane – e sua apelação havia sido negada.
O espectador vê no rosto da acusada que ela é inocente
Naturalmente, Eden havia negado a autoria do crime. Quando o investigador Ray a encontrou, escondida em uma cabana numa montanha coberta de neve, a moça admitiu que, quando Deane avançou sobre ela, reagiu, pegou a primeira coisa que viu, uma pesada estatueta, bateu nele e fugiu…
O espectador vê o rosto dela quando Ray diz que Deane havia sido achado morto, cabeça e mãos jogados na lareira – e percebe claramente que ela é inocente.
Mas foi presa, e levada a julgamento. O defensor público seguramente não era bom… E agora estava condenada. (Não há sequência alguma no tribunal que condena a moça.)
Como prêmio pelo excelente trabalho, o chefe de Ray, o simpático e competente capitão de polícia Bert Rawley (Robert Shayne), dá a ele a tarefa de acompanhar a condenada até o presídio, em uma longa viagem de trem.
Quando o trem passa pela estação de uma pequena cidade, Eden se mostra absolutamente surpresa, chocada. Ela viu o morto. Tem certeza: ela viu o sr. Deane na plataforma da estação.
A loura é bonita, atraente. Muito diferentemente da descrição feita pela senhorinha fofoqueira, não usava roupas escandalosas, indecentes, de forma alguma. É um tanto tímida, é simpática, tem todo jeito de ser boa pessoa. Tudo isso seguramente pesa na decisão do detetive Ray Patrick: ele resolve não entregar a moça ao presídio. Juntos, vão tentar achar o morto que não morreu, e assim provar a inocência dela.
Há buracos na trama – mas também boas idéias
Há quase tantos buracos no roteiro deste Murder is My Beat quanto no asfalto da cidade de São Paulo neste ano santo de 2023, Tipo: por que Eden Lane é condenada numa cidade grande e cumprirá pena em um presídio tão distante assim? (A viagem de trem dura duas noites inteiras.) Tipo: como Eden Lane conseguiu chegar até aquela cabana na montanha nevada caminhando com salto alto? Tipo: como era possível que Ray conhecesse tão bem cada detalhe do percurso do trem, para saber exatamente o momento em que a composição diminuiria a velocidade, permitindo que ele e Eden pulassem?
Em especial: por que raios um competente e elogiado detetive de polícia acompanha uma condenada até a prisão?
Sim, há trocentos furos – mas, diabo, também há belas idéias na trama.
Assassinato – com a vítima tendo o rosto e as mãos queimadas na lareira, impedindo a identificação. Uma loura cantora de boate suspeita. A amiga da loura, uma tal Patsy Flint (o papel de Tracey Roberts), aparecendo na cidade em que o morto foi visto pela suspeita que viajava a caminho do presídio. Um ricaço e sua mulher envolvidos de alguma maneira na história. Chantagem!
Ah, meu, se pusessem esses elementos nas mãos de um James M. Cain… E se dessem a Edgar G. Ulmer as condições de trabalho que Billy Wilder teve ao filmar Pacto de Sangue/Double Indemnity (1944), ou que Tay Garnett teve para fazer O Destino Bate à Porta/The Postman Always RIngs Twice (1946)…
Se… Se… Diabo! “Se…” é um troço absolutamente sem jeito.
Um diretor fascinante, um mestre dos filmes B
As histórias em torno de Edgar G. Ulmer são melhores que as de muitos de seus filmes – e, diacho, ele fez filme demais na vida. Disse a Peter Bogdanovich, que o entrevistou para o que viria a ser o cartapácio (978 páginas na edição brasileira, da Cia. das Letras) Afinal, Quem Faz os Filmes, que foram 128. Vários deles foram produções baraticíssimas, faladas em ídiche, para o público judeu, e outras faladas em ucraniano, que sequer figuram em sua filmografia no Baseline, um banco de dados da era pré-internet, ou no IMDb – que registra apenas e tão somente 57 títulos na filmografia do diretor, realizados entre 1930 e 1964.
Ulmer nasceu em 1904 na Morávia, na época parte do Império Austro-Húngaro, hoje República Checa. Começou a carreira no cinema alemão; colaborou com Max Reinhardt, depois com F. W. Murnau em Fausto (1926) e Tabu (1931). Viajou aos Estados Unidos acompanhando Reinhardt em 1929, voltou à Alemanha, e em 1933 radicou-se de vez nos Estados Unidos, onde morreria em 1972.
Diz dele Jean Tulard no seu Dicionário de Cinema – Os Diretores:
“Algumas fitas irão garantir seu prestígio junto aos cinéfilos, fundando a lenda de um grande diretor confinado nas realizações de série B. O Gato Preto contrapunha Bela Lugosi a Boris Karloff em uma fantástica partida de xadrez num castelo isolado; Flor do Mal tinha uma atmosfera envolvente; Barbazul valia pela atuação de (John) Carradine, e sobretudo Madrugada da Traição, western intimista em que um fora da lei perturbava a vida de um casal de jovens camponeses mexicanos.”
Diz Peter Bogdanovich em seu Afinal, Quem Faz os Filmes:
“Ninguém jamais realizou bons filmes mais depressa ou com menos dinheiro do que Edgar Ulmer. “O que ele era capaz de fazer a partir do nada (às vezes também no que tange aos roteiros) permanece uma lição para os diretores (incluo-me entre eles) que reclamam de orçamentos e prazos apertados. Edgar raramente dispunha de mais de seis dias para fazer um filme! É quase milagroso que, nessas condições, ele tivesse conseguido comunicar forte estilo pessoal e personalidade com os recursos tão escassos de que geralmente dispunha. Mas ele conseguia isso – e o fez mais de uma vez –, realizando clássicos da pobreza como o definitivo filme do gênero ‘aconteceu quando eu passava numa noite escura’, Detour (Curva do Destino); o místico thriller Karloff-Lugosi, The Black Cat (O Gato Preto); os melodramas densamente psicológicos Ruthless (O Insaciável) e Naked Dawn (Madrugada da Traição); Bluebeard (Barbazul), com John Carradine – apenas para mencionar os primeiros que vêm à mente.”
Uma atriz de vida terrivelmente trágica
Murder is My Beat foi o penúltimo dos 15 filmes que Barbara Payton fez em uma carreira tumultuada, marcada por escândalos.
Não sabia absolutamente nada sobre essa moça. Teve uma vida trágica, terrivelmente trágica – e curta: nascida em novembro de 1927, morreu em maio de 1967, com apenas 39 anos, por insuficiência cardíaca e renal, causados por álcool e drogas.
Filha de imigrantes noruegueses que se tornaram alcoólatras, com cinco irmãos, Barbara Lee Redfield se casou aos 16 anos de idade com um colega da high school. Os pais conseguiram anular o casamento, mas a garota logo abandonou a escola e. com 18 anos, estava casada pela segunda vez, com um piloto da Força Aérea, John Payton, de quem adotou o sobrenome e com quem teve um filho, John Lee, nascido em 1947. Em 1950, divorciaram-se. Mais tarde ela perderia na Justiça a guarda do filho para o ex-marido.
A beleza da moça a levou a uma carreira de modelo e rapidamente chamou a atenção de caça-talentos dos estúdios de Hollywood. Em 1949, estrelou ao lado de Lloyd Bridges (o pai dos irmãos Beau e Jeff Bridges) um filme noir, O Cerco/Trapped. Em 1950 e 1951 trabalhou ao lado de James Cagney em outro noir, O Amanhã Que Não Virá/Kiss Tomorroy Goodbye, de Gary Cooper em Vingador Impiedoso/Dallas e de Gregory Peck em Resistência Heróica/Only the Valiant.
Por esses quatro filmes, poderia parecer que estava começando uma belíssima carreira. Mas Barbara Peyton ficaria mais famosa pela “tempestuosa vida social e batalhas com o alcoolismo e o vício por drogas”, como resume a Wikipedia em inglês e detalham matérias em sites brasileiros. Dou dois exemplos: “A Vida de Barbara Payton”, no site Aventuras na História, e “Barbara Payton, a atriz que preferiu beber a viver”, no site Memórias Cinematográficas.
Ela se casou de papel passado mais três vezes – foram cinco no total. O terceiro casamento foi com o ator Franchot Tone, e durou de setembro de 1951 a maio de 1952. Durante o namoro e o casamento com Franchot Tone, ela manteve um conturbado romance com o também ator Tom Neal. Em setembro de 1951, os dois homens partiram para uma briga no apartamento de Barbara; Neal, que tinha treinamento como boxeador, quebrou o nariz e um osso da face de Tone, que foi hospitalizado e ficou em coma por 18 horas. Dá para imaginar o escândalo nos jornais.
Cinco casamentos – já o número de amantes é difícil de calcular. Na lista figuram Howard Hughes, Bob Hope, Woody Strode, Guy Madison, George Raft, John Ireland, Steve Cochran e Bob Neal.
O caso com Woody Strode – de Spartacus, Audazes e Malditos, O Homem Que Matou o Facínora -, em uma época em que relações entre brancos e negros era inimaginável nos Estados Unidos, ajudou a transformá-la em nome indesejado para os estúdios.
Barbara Payton foi presa várias vezes, por roubo em loja, por cheques sem fundos, por prostituição: em julho de 1962, passou uma cantada em um policial disfarçado de cliente normal em um bar do Sunset Boulevard e foi levada para a cadeia na hora. Conta-se que, em uma das vezes em que foi presa, as autoridades ofereceram a ela a opção de se internar em uma clínica de desintoxicação – e ela teria respondido “Prefiro beber e morrer”.
A vida de Barbara Payton foi contada em vários livros, diz a Wikipedia, que cita os títulos de três deles. Kiss Tomorrow Goodbye: The Barbara Payton Story (2007) de John O’Dowd. L.A. Despair: A Landscape of Crimes and Bad Times (2005), de John Gilmore. E B Movie: A Play in Two Acts (2014) by Michael B. Druxman.
Há também uma “autobiografia”, escrita, naturalmente, por um ghost writer, Leo Guild. O livro, I Am Not Ashamed, eu não sinto vergonha, reeditado em 2016, foi lançado originalmente em 1963. Ofereceram a ela a ridícula quantia de US$ 1 mil pelos direitos de publicação da “autobiografia”. Consta que como devia dinheiro a muita gente, não poderia receber através de banco – e então pediu que o pagamento fosse feito em bebida.
É. Diante da vida de sua estrela, este filme O Morto Desaparecido não é noir – é cor de rosa.
Anotação em julho de 2023
O Morto Desaparecido/Murder Is My Beat
De Edgar G. Ulmer, EUA, 1955
Com Paul Langton (investigador da polícia Ray Patrick),
Barbara Payton (Eden Lane, a acusada)
e Robert Shayne (capitão da polícia Bert Rawley), Selena Royle (Beatrice Abbott), Roy Gordon (Abbott, o empresário rico), Tracey Roberts (Patsy Flint, a amiga de Eden), Kate MacKenna (Miss Sparrow, a vizinha), Harry Harvey (o frentista do posto), Jay Adler (o bartender Louie), Anthony Jochim (Buckley, o gerente do motel)
Roteiro Aubrey Wisberg
História Aubrey Wisberg e Martin Field
Fotografia Harold E. Wellman
Músics Albert Glasser
Montagem Fred R. Feitshans Jr.
Direção de arte James W. Sullivan
Produção Aubrey Wisberg, Allied Pictures.
P&B, 77 min (1h17).
**1/2
É triste uma pessoa, perder a vida dessa forma, como a Barbara !