Nota:
O Fausto de F.W. Murnau é um filmaço, uma maravilha. Mas, obviamente, tem que ser visto hoje dentro da perspectiva histórica. É preciso – obviamente – que o espectador tenha em mente, o tempo todo, que o filme foi feito em 1926. Quase um século atrás.
Se for visto por quem espera imagens da Industrial Light & Magic de George Lucas, da mais recente aventura visual de um Robert Zemeckis, usando CGI, computer-generated imagery, será, obviamente (com perdão pela repetição – necessária – do advérbio), uma decepção.
Agora, se o espectador se dispuser a ver o filme tendo sempre presente a noção de que ele foi lançado em 1926, terá diante de si um espetáculo monumental.
É um visual de estarrecer, de surpreender, de babar.
Os únicos elementos naturais que vemos na tela são as pessoas, os atores. Todo o resto, absolutamente todo o resto é artificial, é criação do diretor de arte, do cenógrafo, e de sua equipe. Até as casas, tanto vistas de fora quanto nos interiores, são invenções, criações. É assim uma espécie de um mundo futurista, uma visão futurista do passado distante conforme a imaginação de 1926. Não se especifica em momento algum onde e quando se passa a ação, mas dá para o espectador inferir que é na Idade Média, algo aí por 1300, 1400.
Os primeiros minutos são especialmente interessantes: fantasmas demoníacos passeiam nos céus, entre nuvens e fumaça. Um letreiro nos informa: – “Contemplem! As portas das trevas estão abertas e os fantasmas dos mortos caçam pela Terra.”
De imediato, aquelas imagens impressionantes me fizeram lembrar da visão dos quatro cavaleiros do Apocalipse, no filme que tem esse nome, dirigido por Vincente Minnelli em 1962. Minnelli e seu diretor de arte seguramente viram e reviram o Fausto de Murnau para criar aquelas imagens. Para confirmar a remissão a Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, um letreiro diz, neste comecinho de Fausto: – “Pare! Por que tu castigas a humanidade com guerra, peste, fome?”
Guerra, peste, fome. Só faltou a citação do quarto cavaleiro, a morte.
Trava-se um diálogo entre um arcanjo (interpretado por Werner Fuetterer) e o próprio diabo, Mefisto.
Mefisto propõe a aposta. Ele tentará dominar Fausto, o grande sábio, o cientista mais erudito, e convertê-lo em soldado do Mal. – “Nenhum homem pode resistir ao mal”, diz ele para o arcanjo.
Se vencer a aposta, dominará a Terra.
O Fausto de Murnau vai ao diabo por desespero
Sempre ouvi falar do Fausto de Murnau, desde os tempos de cineclubes na adolescência, mas nunca tinha visto o filme até agora. E sempre associei Fausto a, além de F.W. Murnau, Goethe, o grande poeta alemão. Sempre achei que Fausto era uma criação da imaginação de Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832). Não tinha idéia – santa ignorância – de que é um antiquíssimo mito da cultura alemã, que Goethe recriou e recontou na sua obra, na qual trabalhou praticamente ao longo de toda sua vida.
O filme de Murnau não cita Goethe em momento algum. E já no próprio título – Faust: Eine Deutsche Volkssage – avisa, informa: Um Conto Popular Alemão.
Não tinha idéia – e repito: santa ignorância! – que a história do homem bom e sábio que vendia a alma ao diabo era uma lenda popular alemã, e muito menos que a lenda se inspirava numa pessoa real, o mago e alquimista Johannes Georg Faust, que viveu entre 1480 e 1540. Ainda em 1587, quando os portugueses iniciavam a exploração das riquezas de uma terra muito distante da civilização, nos confins do Atlântico Sul, um livreiro e escritor de Frankfurt, Johann Spiess, publicou um volume de mais de 220 páginas, História do dr. Johnn Fausten, em que narrava o que havia compilado sobre a vida do alquimista.
Segundo a Wikipedia, essa primeira narrativa literária sobre o mito de Fausto “contava como ele se vendeu ao diabo a prazo estipulado, as extraordinárias aventuras que viveu nesse ínterim, a magia que praticava, e por fim sua morte e danação”. A intenção do autor era divulgar uma “advertência sincera contra os que levavam a curiosidade intelectual além do limite estabelecido pelas Igrejas”.
O Fausto de Murnau é levado ao diabo pelo desespero. Não por vaidade, não propriamente para ter os prazeres materiais, não para manter a eterna juventude – como foi o caso com Dorian Grey, o Fausto criado por Oscar Wilde e publicado pela primeira vez em 1890, 36 anos antes do filme de Murnau.
Eventualmente, depois de se entregar a Mefisto, ele desfrutará, sim, dos prazeres materiais, hedonistas – como, por exemplo, a mulher que é tida como a mais bela de Pádua, que ele rouba do noivo no momento mesmo da festa de casamento. E pedirá de volta a juventude, para tentar conquistar o amor de Gretchen (o papel de Camilla Horn), moça pia, imaculada, temente a Deus, por quem se apaixona perdidamente.
Mas não procurou o diabo por querer o prazer. Procurou-o pelo desespero.
Depois que faz a aposta com o arcanjo, Mefisto lança sobre a Terra o negror da peste. É uma das tomadas mais impressionantes deste filme impressionante: um manto negro vai descendo do céu sobre a cidade.
Um letreiro informa: “Para encontrar uma cura para a peste, Fausto passou dias e noites rogando a Deus – e um grande grito ergueu-se, pois não havia uma casa sem um morto.”
Fausto se dirige a Deus: – “Senhor Deus, abençoai este ato de redenção. Só vós podeis amenizar nosso sofrimento”.
As preces são em vão. A peste continua tirando vidas e mais vidas. E é aí que o sábio cede ao desespero: – “Estamos perdidos! Nem a fé, nem o conhecimento nos ajudará. Tudo é uma mentira.”
E então ele chama pelo diabo.
Dois atores de grande fama, um sueco, um alemão
Fausto é interpretado por Gösta Ekman – e é difícil acreditar que o mesmo ator faça o cientista bem velhinho, com vasta barba branca, cabelos longos mas entradas avançadas junto à testa, e também o Fausto no esplendor da juventude, rosto belo.
Gösta Ekmann era sueco, e tido como o mais legendário ator de teatro sueco do início do século XX. Viveu apenas 47 anos, entre 1890 e 1938; sua filmografia inclui 37 títulos – inclusive Intermezzo: Uma História de Amor, de 1936, em que interpretava um famoso violinista que se apaixona por uma jovem pianista, feita por uma conterrânea linda de morrer, então com 21 aninhos, Ingrid Bergman. Ingrid era uma presença tão fulgurante na tela que o todo-poderoso produtor David O. Selznick fez de tudo para importá-la para Hollywood. Três anos depois, em 1939, a atriz faria de novo o mesmo papel de Anita Hoffman em Intermezzo: Uma História de Amor, desta vez falando em inglês, ao lado de Leslie Howard.
Consta que Gösta Ekmann tornou-se viciado em cocaína exatamente durante seu período em Berlim para as filmagens de Fausto.
Mefisto é o papel de Emil Jannings (1884-1950), o primeiro ator a ganhar um Oscar, na primeira premiação da Academia, em 1929, por sua atuação em A Última Ordem/The Last Command. Emil Jannings e faria o papel do pobre professor Immanuel Rath, que perde a cabeça pela dançarina de cabaré interpretada pela jovem Marlene Dietrich em O Anjo Azul (1930).
Foi a produção mais cara do cinema alemão
Em 2000, o diretor E. Elias Merhige fez A Sombra do Vampiro, que reconstitui como foram as filmagens de Nosferatu, outro dos filmes mais clássicos e mais famosos de F.W. Murnau. As filmagens deste Fausto mereceriam certamente virar um filme – ou uma série.
Foi a produção mais cara do cinema alemão até ali – custou a fortuna de 2 milhões de marcos, e só rendeu nas bilheterias metade disso. (No ano seguinte, o recorde de maior orçamento seria quebrado por outro grande clássico, Metropolis, de Fritz Lang.)
As filmagens duraram seis meses. Murnau e seu diretor de fotografia Carl Hoffmann usavam duas câmaras simultaneamente, e cada tomada era refeita diversas vezes. A curta sequência em que um contrato é assinado em um pergaminho que pega fogo levou um dia inteiro para ser feita.
Houve várias versões, vários final cuts do filme, com grandes diferenças entre uma e outra.
Uma versão restaurada em 1999 tem a aprovação da Fundação Friedrich Wilhelm Murnau. Essa é a versão que foi lançada no Brasil pela empresa M.D.V.R., no seu selo Obras-Primas, em uma caixa de DVDs com o título Expressionismo Alemão.
Consta que Leni Riefenstahl se candidatou a interpretar Gretchen, o principal papel feminino do filme. Tinha, na época, 24 anos de idade, e estava começando a carreira de atriz; a partir de 1932, passaria a dirigir, e se tornaria a principal cineasta do nazismo.
O desejo de Murnau era ter no papel de Gretchen Lillian Gish, então uma das maiores estrelas de Hollywood, se não a maior de todas. Não deu certo, e o diretor então escolheu a novata Camilla Horn, que ele havia conhecido durante as filmagens de Tartufo, do ano anterior, 1925 – ela trabalhava então como dublê da atriz Lil Dagover. Camilla Horn teria uma extensa carreira, com mais de 70 títulos na filmografia; seu último filme foi em 1990.
O papel de Valentin, o irmão de Gretchen, coube a Wilhelm Dieterle, na época com 33 anos e mais de 30 filmes no currículo. No início dos anos 30, emigraria para os Estados Unidos e, com o nome passado para o inglês, se tornaria um bom diretor. Fez, entre muitos outros, Ver-te-ei Outra Vez / I’ll Be Seeing You (1944), O Retrato de Jennie / Portrait of Jennie (1948), Cidade Negra / Dark City (1950) e No Caminho dos Elefantes / Elephant Walk (1954). Em 1941, fez O Homem Que Vendeu a Alma/The Devil and Daniel Webster (1941), que é uma das muitas versões que o cinema já fez da lenda de Fausto.
“Uma composição plástica de extraordinária beleza”
“Antes de Murnau, Méliès já havia se interessado pelo mito de Fausto”, diz o Guide des Films de Jean Tulard, “mas, de todos os realizadores que lidaram com o personagem célebre, foi Murnau que melhor soube transpor o mito para as telas. Seu filme ‘pode ser considerado a obra-prima do cinema fantástico e legendário. A tradução do tema faustiano não está nem no desenvolvimento da história nem dentro de qualquer filosofia verbal, mas dentro de uma composição plástica de extraordinária beleza. O movimento das formas, o jogo de sombras e luzes, os cenários, tudo aqui tem valor de signos e símbolos’ (Jean Mitry).”
Diz Georges Sadoul em seu Dicionário de Filmes: “A câmara de Hoffman e Feund volteia por cima das maquetes, num esplêndido movimento de ópera.”
Le Petit Larousse des Films diz: “Último filme alemão de Murnau, Fausto mistura influências visuais precisas, os grandes temas do romantismo alemão e do expressionismo e as preocupações tanto temáticas quanto estéticas do autor. Raramente um filme terá deixado tão pouco espaço ao acaso. Tudo ali é subordinado à vontade de expressão metafísica do cineasta: o jogo dos atores, roupas, cenários e sobretudo luz, esta ‘stimmung’ que une seres, almas e objetos dentro de uma unidade mística.”
Stimmung, diz o dicionário, é espírito, ânimo.
Sim, o último filme alemão de Murnau. Se fosse engenheiro na Antiguidade, provavelmente teria ido para o Egito construir pirâmides. Como era um cineasta, foi para Hollywood. Em 1927, lançou Aurora/Sunrise, o filme que, segundo Charlie Chaplin, eleva “o cinema mudo a seu ponto de perfeição absoluta”. Depois vieram O Pão Nosso de Cada Dia/City Girl (1930) e Tabu/Tabu: A Story of the South Seas (1931). Morreria no ano em que foi lançado seu último filme, com apenas 42 anos de idade.
Anotação em dezembro de 2019
Fausto/Faust: Eine Deutsche Volkssage
De F.W. Murnau, Alemanha, 1926
Com Gösta Ekman (Fausto), Emil Jannings (Mephisto), Camilla Horn (Gretchen), Frida Richard (a mãe de Gretchen), Wilhelm Dieterle (Valentin, o irmão de Gretchen), Yvette Guilbert (Marthe Schwerdtlein, a tia de Gretchen), Eric Barclay (o duque de Parma), Hanna Ralph (a duquesa de Parma), Werner Fuetterer (o arcanjo)
Roteiro Hans Kyser
Baseado na peça de Johann Wolfgang von Goethe (não creditado)
Fotobrafia Cal Hoffmann
Música (2007) Javier Pérez de Azpeitia
Montagem Elfried Böttrich
Direção de arte Robert Herith e Walter Röhrig
Produção Erich Pommer, Universum Film (UFA). DVD Obras Primas, M.D.V.R.
P&B, 107 min.
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Essa minha fase de ler “50 Anos de Filmes” quase que diariamente está uma delícia, pois tenho me lembrado da minha meninice e adolescência, com grande alegria! Como nasci em 1934, comecei a ir ao cinema depois de 40. Aí, estou tentando me lembrar dos filmes dessa época, Entretanto, curiosa, fui ver a relação dos filmes de 30.
E não é que vi alguns? No Tempo das Diligências – não me lembro bem do filme,mas da Marlene Dietrich e James Stewart , sim. Marlene Dietrich em Anjo, me lembro bem. Picolino – Fred Astaire e Ginger Rogers. Como me lembro! Expresso de Xangai, com Marlene Dietrich, me lembro bem. Assisti no Cine São Carlos, em Carlos Prates, com papai. Criança podia entrar à noite. Do Mundo Nada Se Leva – Este, quando assisti, já era mocinha, em São Lourenço. Nessa cidade foi quando comecei a ir ao cinema todos os domingos à tarde ver os filmes seriados. Depois falarei sobre eles. Jezebel – Me lembro bem desse filme. Como esquecer Bette Davis e Henry Fonda? Primeiro filme que vi com ele. Interessante: nesta época, no carnaval, fizeram uma música chamada Jezebel Como havia passado o filme Gilda, com Rita Hayworth e Glenn Ford, na música enalteceram Gezebel e baixaram a bola da Gilda. Era mais ou menos assim: Perdoa-me, ó Gilda, Se eu fui um banal… cantando a sua beleza…No outro carnaval!!! continua um pouco mais e depois vem: Jezebel, el, el… Um sonho, uma canção…Jezebel, el el… Um pedaço do céu e do meu coração… A música cantava as duas: Gilda e Jezebel. Carnavais passados…