Sem Amor / Nelyubov

Nota: ★★★½

Sem Amor (2017), do diretor russo Andrey Zvyagintsev, é um filme aterrador. Apavorante, chocante, horripilante. Não, não é um filme de terror. Não tem fantasmas vingativos, espíritos maus – são só seres humanos. Sem Amor é um dos filmes mais pessimistas, mais desesperançados que já vi. Ele não tem dúvida alguma: tem certeza de que a humanidade é uma invenção que não deu mesmo certo. 

No começo dos seus 127 longos minutos, achei que o estilo do diretor tinha um pouco a ver com o maravilhoso iraniano Ashgar Farhadi, um cineasta que como poucos sabe explicitar na tela os ventos cambiantes, inseguros, do comportamento humano. Não demorei muito para perceber que aquela impressão estava errada. Ashgar Farhadi – assim como outros grandes realizadores, Frank Capra, Akira Kurosawa, Satyajit Ray, François Truffaut, Federico Fellini, Woody Allen, Steven Spielberg – tem imensa simpatia pelos pobres seres humanos que protagonizam as histórias que conta.

Esses grandes realizadores todos têm essa característica em comum: eles têm simpatia, consideração, compaixão, até mesmo amor por seus personagens. A simpatia inclui pena, dó, por eles sofrerem tanto, por errarem tanto, por fazerem tanta besteira, por escolherem quase sempre os piores caminhos.

Andrey Zvyagintsev não tem qualquer simpatia por seus personagens – e constrói todo o seu filme de tal maneira a não permitir que o espectador sinta qualquer coisa positiva em relação a eles.

Ele se esforça para que o espectador tenha repulsa, nojo, por aquelas pessoas.

E consegue. É extremamente competente, consegue o que quer. O espectador entra na dele, segue o que ele indica, e fica com a absoluta certeza de que aquelas pessoas todas são desprezíveis, nojentas, horrorosas, vomitativas.

Pai e mãe não sabem nada sobre o filho

Os personagens principais da história são um homem e uma mulher que estão se divorciando. Ele é Boris (Aleksey Rozin), ela é Zhenya (Maryana Spivak). São classe média, moram num bom apartamento junto de um enorme parque em Moscou, e têm um filho, Alyosha (Matvey Novikov), que está agora com 12 anos.

A decisão de divorciar está mais do que tomada; o apartamento está à venda. Só não definiram ainda o que fazer com Alyosha. A mãe quer enfiá-lo num internato, o pai é contra.

Zhenya, a mãe, é uma pessoa absolutamente repugnante. Mulher belíssima, atraente, vaidosa, coquete, trabalha num salão de beleza. Veremos claramente, explicitamente, que ela nunca amou Boris: casou-se com ele apenas para fugir da casa da mãe horrorosa, monstruosa, que por sua vez jamais tinha amado a filha. Não queria ter tido Alyosha. Pensou muito em abortar, mas acabou tendo o filho. Nunca teve amor por ele. Trata-o mal, com absoluta indiferença.

Tanto Zhenya quanto Boris têm amantes. Zhenya está pela primeira vez na vida sentindo o que é o amor, apaixonada por Anton (Andris Keiss), um homem mais rico, divorciado, livre, a filha estudando em Portugal. E Boris já engravidou Masha (Marina Vasileva).

Interessados pelos amantes, sem nunca terem de fato amado Alyosha, não percebem nada a respeito do filho, que ouve tudo o que eles conversam, tudo o que eles discutem, toda a sujeira que um joga na cara do outro.

Aí, de repente, Alyosha some, desaparece.

Começa uma gigantesca procura pelo garoto desaparecido. Não por parte da polícia, que não liga quase nada para o caso – afinal, tantos adolescentes somem… –, mas por uma ONG, especializada na procura de crianças e jovens desaparecidos em Moscou, a cidade que havia sido a capital da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a fábrica do homem novo, solidário, eterno lutador pela beleza da vida do amor da justiça.

O filme é construído para ser desagradável

Impressiona demais como o realizador Andrey Zvyagintsev insiste em fazer um filme frio, horripilantemente gélido, de tal forma que o espectador não entre com seus sentimentos, não simpatize com um ou outro, não antipatize com um ou outro.

Falava-se muito, décadas atrás, do distanciamento entre o espectador e a ação. Falava-se que o distanciamento era o método de Bertold Brecht.

Caramba, se o distanciamento era mesmo o método de Brecht, o russo muito pós-comunismo Andrey Zvyagintsev conseguiu a perfeição nele. Zvyagintsev constrói um filme gélido, gelado, frígido, distanciado. O filme fica lá longe, nós, os espectadores, ficamos aqui a anos-luz de distância.

Em hora alguma nos envolvemos emocionalmente com o que o está acontecendo ali.

O espectador não sente pena dos personagens, da situação dramática que estão enfrentando. Nem sequer pena. No máximo, sente nojo.

Um horror, um horror.

Para intensificar o horror, Andrey Zvyagintsev (ele também co-autor do roteiro original, ao lado de Oleg Negin) constrói todo o filme de tal maneira que ele não seja agradável de se ver. Tudo é apresentando propositadamente de maneira feia, chata, agressiva. A câmara, por exemplo, quase nunca se move. Fica estática, parada – e muitas vezes permanece ali, parada, depois que os personagens já saíram do quadro, do campo de visão da câmara, e então o espectador fica vendo o nada.

Minha sensação foi de que foi mesmo para intensificar o horror que Zvyagintsev optou por fazer o filme longo, um tanto mais longo que o padrão, 127 minutos. Poderia ter contado perfeitamente a história, com bastante horror, em 90 minutos – mas a sensação é de que ele quis prolongar o desconforto do espectador.

O diretor é duríssimo com seus personagens

Depois que o filme terminou – e depois que tomei mais uma dose de vodca russa que Mary me trouxe, para ver se meu desconforto diminuía –, me lembrei de uma belíssima canção de Donovan Leitch dos anos 60, na verdade de Donovan e Christopher Logue, uma rara música dele com algum parceiro, “Be not too hard”.

Em “Be not too hard”, o narrador aconselha o ouvinte a não ser duro demais com as pessoas, já que a vida é curta, e nada é dado a elas de graça. “Não seja duro demais quando ele cegamente morre, lutando por coisas que não são dele. Não seja duro demais quando ele conta mentiras ou se seu coração às vezes fica como uma pedra. Não seja duro demais porque logo ele vai morrer – muitas vezes não mais sábio do que era antes.”

Andrey Zvyagintsev é duro com seus personagens. Duríssimo. Tão duro quanto – creio – nenhum outro realizador já foi.

E mostra que eles não aprendem. Não ficam mais sábios nem mesmo após enfrentar uma dura tragédia.

Zhenya e Boris terminam o filme exatamente como começaram. Sem ter aprendido nada, nadica, coisa alguma.

Um diretor de poucos filmes

Este foi o primeiro filme de Andrey Zvyagintsev depois de Leviatã (2014), que foi muitíssimo bem falado, mas ainda não vi..

Leviatã – uma parábola, parece, sobre a corrupção e o poder gigantesco do Estado – teve 36 prêmios e outras 46 indicações mundo afora. Foi um dos indicados tanto ao Oscar quanto ao Globo de Ouro e ao Bafta de melhor filme estrangeiro; levou o Globo de Ouro. E, no Festival de Cannes, levou o prêmio de melhor roteiro.

Andrey Zvyagintsev não é um realizador prolífico, daquele tipo Ingmar Bergman ou seu adorador Woody Allen, ou Clint Eastwood, que realizam praticamente um filme a cada ano. Nascido em Novosibirsk, interiorzão da então União Soviética, em 1964, dirigiu seu primeiro longa-metragem em 2003, aos 39 anos, portanto. Depois desse filme de estréia, O Retorno – premiado com o Leão de Ouro no Festival de Veneza –, fez O Desterro em 2007, Elena em 2011, Leviatã em 2014 e este Sem Amor em 2017. Cinco filmes, ao longo de um período de 14 anos.

Definitivamente, não é do tipo Ingmar Bergman, Woody Allen, Clint Eastwood. É do tipo Milos Forman – ourives. Muito cuidado, muito tempo de maturação para cada obra.

Sem Amor seguiu o percurso de Leviatã: foi muitíssimo bem recebido no circuito dos festivais. Ganhou 11 prêmios, fora outras 45 indicações – inclusive as indicações ao Oscar, ao Globo de Ouro e ao Bafta de melhor filme estrangeiro.

Não é por mostrar podres da Rússia que o filme é bom

No site RogerEbert.com, que continua a tradição do grande crítico de Chicago que perdemos em 2013, o crítico Godfrey Cheshire começa sua crítica sobre Loveless, publicada em dezembro de 2017, contando que no mês anterior havia passado uma semana em St. Petersburg participando de um colóquio sobre o cinema russo atual. Andrey Zvyagintsev e Alexander Sokurov (de Arca Russa, 2002, e Fausto, 2011) foram nomes muito falados no encontro. “Em um determinado momento”, diz o crítico americano, “um russo muito cético me perguntou se Zvyagintsev era tão estimado no Ocidente porque seus filmes retratam a Rússia de uma forma tão negativa.”

Cheshire respondeu ao russo que havia ouvido o mesmo tipo de pergunta quando visitou o Irã nos anos 90 – quando realizadores como Abbas Kiarostami e Mohsen Makhmalbaf faziam filmes maravilhosos que eram aplaudidos nos principais festivais do mundo, Cannes, Berlim e Veneza – filmes que mostravam pessoas pobres, vilarejos caindo aos pedaços. Na época, ele respondeu aos iranianos que o questionavam que a fama desses diretores no Ocidente tinha menos a ver com a pobreza que eles mostravam em seus filmes do que com suas vozes fortes, humanistas, autorais e a sofisticação estilística de suas obras.

Sem dúvida, é a mesma coisa: os filmes de Kiarostami, Makmalbaf, Farhadi – exatamente como os de Andrey Zvyagintsev – não são aplaudidos e premiados no Ocidente porque mostram as misérias dos regimes autoritários, autocráticos, do Irã dos aiatolás e da Rússia do czar Vladimir Putin. Mas sim porque são belos filmes.

Há críticas de sobra à Rússia de hoje para quem estiver interessado nelas neste filme tão aterrador e desagradável quanto bom. Está lá uma desconhecida – por nós, do Ocidente – presença de um cristianismo fanático, fundamentalista, entre alguns grandes empresários no país em que o capitalismo chegou há tão pouco tempo, e chegou selvagem, bravio e cercado por mais máfias do que os Estados Unidos da época da Grande Depressão e da Lei Seca. Está lá a crítica a essa coisa tão presente na sociedade capitalista ocidental que é o apego louco à beleza, ao corpo, e à tecnologia, ao celular, às redes sociais. Está lá – forte, brutal – a crítica à incapacidade da polícia de cuidar da segurança dos cidadãos.

Crime horrendo, pavoroso, inafiançável

Para mim, no entanto, muito mais importante do que as críticas à Rússia de hoje são as críticas que Andrey Zvyagintsev faz aos pais que não deveriam jamais ter tido filhos, aos pais que tratam de forma criminosa os filhos, com a arma fatal, mortal, da indiferença, da absoluta falta de amor, carinho, consideração.

E essa não é, evidentemente, uma questão russa – é planetária. É um problema da humanidade, não das pessoas deste ou daquele país.

Há algumas boas décadas defendo a tese de que quem criou a humanidade – tenha sido Deus, com um sopro, tenha sido uma complexa e longa, longa, longa evolução a partir de formas primitivíssimas de vida – errou profundamente num ponto básico, crucial: os homens e as mulheres não deveriam ser capazes de fazer filhos com tamanha facilidade assim, enfia o pau, mexe, mexe, sai o espermatozoide, cruza com um óvulo, pronto: daí a pouco tem uma nova pessoa no mundo.

Esse é o maior erro que Deus ou a biologia cometeram.

Ter filhos, a possibilidade de ter filhos, deveria ser uma conquista. Para que um casal tivesse direito a ter filhos, deveria haver concurso exigente, com banca examinadora severíssima.

Do jeito que a coisa é, não tem jeito: produzem-se, aos magotes, aos milhares, aos milhões, filhos da puta. Filhos não desejados, não queridos – ou, na melhor das hipóteses, não planejados. No mais das vezes miseráveis – sem garantia de ter qualquer uma das necessidades básicas atendida.

Ter filho sem ter condições e/ou vontade de criá-lo bem é um dos crimes mais horrendos que pode haver. É tão ou mais horrendo que racismo, homofobia, homicídio. É tão horrendo quanto genocídio. Cada pai ou mãe que não está preparado para ter filho e tem é tão criminoso quanto um Napoleão, um Hitler, um Stálin.

Esta é a minha tese, minha teoria, minha doutrina.

A extraordinária realizadora libanesa Nadine Labaki fez um filme que demonstra perfeitamente que minha tese é correta: em Cafarnaum (2018), um garoto miserável vai à Justiça contra os pais, para processá-los pelo crime de o terem trazido ao mundo.

Como Cafarnaum, este Sem Amor vem demonstrar a mesma coisa. Ter filhos sem ter condições e/ou vontade de criá-los bem, com conforto material mas sobretudo com amor, afeto, dedicação, carinho, é crime horrendo, pavoroso, inafiançável.

Anotação em dezembro de 2019

Sem Amor/Nelyubov

De Andrey Zvyagintsev, Rússia-França-Alemanha-Bélgica, 2017

Com Maryana Spivak (Zhenya), Aleksey Rozin (Boris)

e Matvey Novikov (Alyosha, o filho), Marina Vasileva (Masha, a amante de Boris), Andris Keiss (Anton, o amante de Zhenya), Aleksey Fateev (Ivan, da ONG), Natalya Potapova (Mat Zheni), Anna Gulyarenko (Mat Mashi), Artyom Zhigulin (Kuznetsov), Maksim Solopov (Otets Kuznetsova), Sergey Badichkin (Sosluzhivets Borisa), Tatyana Ryabokon  (Rieltor), Maxim Stoyanov (Pokupatel), Varvara Shmykova (Lena, voluntária)

Argumento e roteiro Oleg Negin & Andrey Zvyagintsev

Fotografia Mikhail Krichman

Música Evgueni Galperine e Sacha Galperine

Montagem Anna Mass  

Cor, 127 min (2h07)

***1/2

Título em inglês: Loveless.

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