Nota:
O Presidente é um filme forte, poderoso, fascinante, muitas vezes descaradamente assustador.
Após muitos anos de uma ditadura sanguinária, explode de repente uma revolta popular que rapidamente ganha o apoio dos militares. O governo é derrubado, e o ex-ditador foge com o netinho de 5 anos para o interior do país; o novo regime põe sua cabeça a prêmio, e ele é obrigado a se disfarçar para não ser reconhecido pelas pessoas que governou com mão de ferro e estilo de rei absolutista.
Não se diz o nome do país – pode ser qualquer um.
O filme foi todo rodado na Geórgia, que até o finalzinho dos anos 80, início dos 90, era uma dos países que formavam a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. É uma co-produção Geórgia-Inglaterra-França-Alemanha, os atores são todos georgianos, a língua falada é o georgiano – mas o diretor é o experiente e premiadíssimo iraniano Mohsen Makhmalbaf, e a história e o roteiro são de autoria dele e de sua mulher, Merziyeh Meshkini.
Apesar de ter sido escrito e dirigido por um iraniano, o filme tem uma característica que está presente em muitas obras realizadas em países que foram comunistas, a Romênia, em especial, a Rússia e a própria Geórgia: ele foge do realismo como o diabo da cruz. É uma parábola. O tom muitas vezes é de sátira, sátira aberta, furiosa, que não teme afundar muitas vezes em desbragada caricatura. Os fatos se desenrolam como num romance do mais alucinado realismo fantástico, à la Gabriel García Márquez ou Manuel Scorza.
Não evita a violência. Muito ao contrário. É um filme violento, virulento.
Ao final, deixa uma mensagem semelhante às dos filmes de Robert Guédiguian, o realizador marselhês que por imensa coincidência (ou não) descende de família da Armênia, país vizinho da Geórgia. É uma negação da Lei do Talião, do olho por olho, dente por dente. É uma ode à esperança de que em algum momento se possa deixar o desejo de vingança de lado e construir um futuro de paz.
O filme abre com uma sequência extraordinária que sintetiza o que é absolutismo
O tom de fantasia, de fantástico, de mágica, de narrativa que não quer saber de jeito nenhum de realismo aparece bem no início dos 119 minutos de um cinema competente feito para incomodar, cutucar, remexer a cabeça do espectador. Estão em seu palácio, no alto de um morro, de onde se vê lá embaixo a grande capital do país, o ditador e seu netinho de 5 anos de idade. Vestem-se, os dois, em uniformes militares – o ditador tem no peito aquela longa fileira de medalhas que parece piada, mas que a gente via no peito dos generais e marechais soviéticos, por exemplo.
O espectador percebe imediatamente que o garoto é o xodó da vida do ditador.
Ele diz para o netinho que quando ele for grande tudo aquilo será dele.
O neto chama o avô de Vossa Majestade. E o cerimonial do palácio ensina a todos que o garoto deve ser chamado de Vossa Alteza Real.
E nesse detalhe a imaginação solta de Mohsen Makhmalbaf e Marzieh Meshkini criou algo bem à imagem e semelhança de algumas ditaduras modernas, que recriaram a figura da monarquia, em que o poder passa de ditador para filho de ditador para filho de ditador, como na Coréia do Norte. (No Caribe, há uma em que o poder passa de irmão para irmão.)
Para demonstrar as maravilhas do poder que o netinho irá herdar, o ditador pega o telefone – uma peça de museu, um lindo aparelho de telefone que teria ficado muito bem no Castelo de Windsor no início do século XX –, e diz: – “Apaguem as luzes da cidade” – e todas as luzes da cidade lá embaixo são apagadas.
O ditador sugere que o netinho tente ele mesmo. Pega o telefone e diz que as ordens do neto são como as ordens dele mesmo.
O garotinho de cinco anos pega o telefone e diz: – “Liguem as luzes da cidade” – e a cidade se ilumina. Ele gosta da brincadeira: – “Desliguem as luzes da cidade”.
É uma sequência antológica, impressionante. Pouquíssimas vezes o cinema terá conseguido sintetizar tão bem o que é o absolutismo.
Essa sequência deveria ser usada por professores ao redor do mundo para demonstrar aos alunos o que é o absolutismo, o que é o poder sem limites, o que é a antítese da democracia.
Num momento, o povo aplaude o ditador. Em seguida, festeja o fim da ditadura
O ditador é interpretado por Mikheil Gomiashvili, ator com 17 títulos na filmografia, nascido em 1961 em Tbilisi, a capital da Geórgia. Tem um desempenho magnífico. Mas o impressionante é o desempenho do garotinho Dachi Orvelashvili, escolhido para fazer o neto do ditador. Está presente em praticamente toda a ação do filme, assim como o ator que faz o avô, e sua atuação parece de um profissional experiente.
Nos dias seguintes àquele mostrado na sequência impressionante, a situação no país se complica. O ditador resolve embarcar a mulher, as duas filhas (que se detestam e não param de brigar, da forma mais vulgar possível) e o neto no avião presidencial para uma viagem ao exterior. No aeroporto, o neto se recusa de todas as formas a embarcar – quer ficar com o avô, quer voltar ao palácio para brincar com Maria (Nuca Sanadze), sua maior amiguinha, provavelmente a única.
A mulher e as filhas embarcam, o jato parte. O ditador e o neto iniciam o caminho de volta até o palácio na gigantesca limousine em que, além do motorista, viaja apenas um ajudante, um guarda-costas.
Na ida para o aeroporto, a limousine havia passado por avenidas apinhadas de gente que aplaudiam a família real, carregando cartazes com a foto do ditador.
Na volta do aeroporto, o povo está comemorando a queda da ditadura.
É fascinante, chocante, como o roteiro de Makhmalbaf e Marzieh Meshkini consegue, com isso, realçar como o poder é efêmero, fugaz, passageiro. Magalhães Pinto dizia que a política é como as nuvens – quando você olha de novo, o que você vê não é igual ao de meio minuto antes. O poder absoluto corrompe absolutamente (não me lembro o autor da frase perfeita), mas depois da corrupção absoluta pode vir o tombo gigantesco. “Maior o coqueiro maior é o tombo do coco, afinal”, como diz Billy Blanco. Ou “Basta ver que um povo / derruba um czar / derruba de novo / quem pôs no lugar” – que maravilha esses versos de Gilberto Gil em “O Fim da História”.
Sequências com imensas multidões filmadas com absoluta competência
As sequências da revolta popular se espalhando pelas ruas, enquanto o ditador vai sendo acuado pela turba e obrigado a fugir, são impressionantemente bem realizadas. É incrível – é como se Mohsen Makhmalbaf tivesse gritado Shazam! e se transformado num diretor hollywoodiano especializado em cenas de ação, tipo Michael Mann ou Antoine Fuqua.
Fiquei impressionando com a absurda quantidade de figurantes que a produção conseguiu reunir para essas sequências. Uma multidão de não deixar nada a dever a Cecil B. DeMille e suas tomadas de construção das pirâmides ou de travessia do Mar Vermelho em Os Dez Mandamentos (1956). Mas não é algo para se estranhar. Makhmalbaf já havia demonstrado sobejamente que sabe filmar multidões em seu Salve o Cinema, de 1995.
O que vem a partir daí é a fuga desesperada daquele homem que foi ditador implacável, o rei absolutista do país, pelas regiões pobres de sua terra, tentando proteger a si mesmo e ao netinho adorado, enquanto o rádio vai anunciando quantias imensas e crescentes de recompensa para quem encontrá-lo.
Com precisão cirúrgica, o realizador vai demonstrando como as turbas, as multidões têm vontades voláteis, facilmente cambiáveis. Gente que aplaudia o ditador nas ruas, que pendurava seus retratos em suas casas ou lojas, agora quer que ele pague por seus muitos crimes. Opositores que foram torturados querem que ele agora seja torturado. E a soldadesca que protegia a ditadura, agora que o regime caiu, se encanta com o poder que as armas garantem, e vão reproduzindo, na sua vida, as crueldades que o regime antes permitia apenas ao ditador e seu círculo íntimo.
Aquela triste verdade de que o guarda da esquina, se lhe for dado algum poder, se transformará rapidamente num ditadorzinho.
Nas suas andanças, o velho ditador conviverá com homens que foram presos e torturados pela sua polícia política. Ficará frente a frente até mesmo com um deles que participou do atentado que matou seu filho e sua nora. Pouquíssimas vezes foi tão verdadeiro aquele velho dito popular: Nada como um dia depois do outro.
É como se os cineastas quisessem se vingar dos tempos do realismo socialista
Para demonstrar tantas verdades, exibir tantas questões importantes para que o espectador pense sobre elas, pese, analise, Mohsen Makhmalbaf recorre – volto ao tema – a uma narrativa que usa e abusa de elementos fantásticos, surreais.
Essa fuga do naturalismo, do realismo, é um fenômeno incrível que está presente em diversos filmes feitos em países que pertenceram ao Império Soviético ou foram satélites dele após o fim do comunismo.
É exatamente assim um outro filme realizado na Geórgia, Os 27 Beijos Perdidos, de 2000, que também foi uma co-produção Geórgia-Alemanha-Inglaterra-França, os mesmos deste O Presidente.
Casamento Silencioso, co-produção Romênia-França-Luxemburgo, de 2008, tem o mesmo estilo anti-realismo.
Salada Russa em Paris, co-produção Rússia–França de 1993 – feito, portanto, mal tinha desaparecido a União Soviética – também usa a fantasia, a mágica.
É como se os realizadores quisessem se vingar dos longos anos do comunismo, em que só se podiam fazer filmes dentro do mais rigoroso realismo socialista – a exaltação da pátria, do valor das Forças Armadas a serviço do governo popular, as odes aos camponeses, aos operários –, e partissem para o oposto, o inverso, a mais tresloucada viagem pelo surreal.
Um filme absolutamente obrigatório para quem gosta de cinema – e de democracia
Ao contrário de seu colega Asghar Farhadi, por exemplo, que preferiu continuar dando seus murros em ponta de faca em seu próprio país, Mohsen Makhmalbaf abandonou o Irã dos aiatolás e da intolerância religiosa e de costumes. Na verdade, o Irã é que expulsou o diretor – e faz todo o possível para apagar sua vida e sua obra da História, como Stálin fazia com os inimigos.
Desde 2009, todos os cerca de 40 filmes feitos por Makhmalbaf e por membros de sua família, assim como seus 30 livros publicados, foram proibidos no Irã. A imprensa do país está proibida de publicar seu nome. Em 2013, o governo mandou retirar do museu de cinema do Irã os 120 prêmios internacionais concedidos ao diretor e aos membros de sua família.
(É uma família dedicada ao cinema. Sua filha Samira é uma talentosa diretora, roteirista e atriz, autora, por exemplo, do fascinante Às Cinco da Tarde; outra filha, Hana, também é diretora. E a mulher, Marzieh Meshkini, é diretora, roteirista, montadora e diretora de fotografia.)
Depois de ter abandonado seu país, o diretor já trabalhou na Índia, no Afeganistão, em Israel, na Coréia do Sul e na Geórgia.
Em entrevistas, ele disse que escreveu este O Presidente inspirado pelas destituições de dirigentes árabes nos últimos anos – Ben Ali, Mubarak, Kadhafi – e pela proliferação da violência em seus países após sua queda.
Este é um daqueles filmes que são obrigatórios, que devem ser vistos por todos os que gostam de bom cinema – e de democracia.
Anotação em março de 2017
O Presidente/President
De Mohsen Makhmalbaf, Geórgia-Inglaterra-França-Alemanha, 2014
Com Mikheil Gomiashvili (o presidente), Dachi Orvelashvili (o neto)
e Leo Antadze (o coronel), Zura Begalishvili (o barbeiro), Lazare Kervalishvili (o filho do barbeiro), Elene Bezarashvili (a filha mais jovem), Tornike Bziava (soldado), Davit Davishvili (o marechal), Guja Burduli (prisioneiro politico, o que canta), Kakha Gabelaia (prisioneiro político torturado), Radjen Kervalishvili (prisioneiro politico), Gia Gogishvili (o noivo), Tekla Javakhadze (a noiva), Lasha Kankava (oficial do exército), Avto Karashvili (o homem que vê o presidente), Soso Khvedelidze (prisioneiro politico, o amante), Jaba Kiladze (o tutor de dança), Nuki Koshkelishvili (a filha mais velha), Rezi Kuparadze (prisioneiro político), Vano Kuparadze (prisioneiro politico torturado), Nuca Sanadze (Maria, a garotinha), Ia Sukhitashvili (a prostituta)
Argumento e roteiro Mohsen Makhmalbaf e Marzieh Meshkini
Fotografia Constantin Mindia Esadze e Konstantin Esadze
Música Tajdar Junaid
Montagem Hana Makhmalbaf e Marzieh Meshkini
Produção 20 Steps Productions, Brummer & Herzog Filmproduktion, Creativity Capital, Film and Music Entertainment (F&ME).
Cor, 119 min
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http://anticast.com.br/2016/11/feitoporelas/feito-por-elas-10-samira-makhmalbaf/