Clube Havana / Club Havana

Nota: ★★½☆

(Disponível no YouTube em 11/2023.)

Club Havana, de 1945, é um típico filme B – de orçamento baixo, sem atores famosos e de curta duração –, categoria que Hollywood produziu às pencas nos anos 1930 e 1940, e foi dirigido por um talentoso especialista no assunto, Edgar G. Ulmer. A idéia básica é muito interessante: ao longo de uma noite, em um único ambiente, um grande nightclub de estilo latino, o espectador fica conhecendo mais de uma dúzia de pessoas – frequentadores e funcionários -, ao mesmo tempo em que assiste a vários números musicais.

Alguns diálogos – e vem um número musical. Mais diálogos – e mais uma música.

Os créditos iniciais destacam duas das canções – e a escolha delas é algo que torna o filme ainda mais interessante. “Besame mucho”, de Consuelo Velázquez, e “Tico Tico”, de Zequinha de Abreu. O nome artístico do compositor José Gomes de Abreu, nascido em Santa Rita do Passa Quatro, SP, em 1880, morto em São Paulo em 1935, está grafado corretissimamente – ao contrário do nome da mexicana, que aparece como Consuela Velazquez . O título de uma das mais famosas canções do compositor, um espetacular sucesso no Brasil e no exterior, muito divulgada nos Estados Unidos naqueles anos 40 por Carmen Miranda, aparece americanizado. O título completo, “Tico-Tico no Fubá”, foi também o da cinebiografia do compositor – produção de 1952 da Vera Cruz em que o galã Anselmo Duarte o interpretou.

Quem apresenta “Tico-Tico no Fubá” para os frequentadores do Club Havana e para o espectador é a cantora principal da casa, Isabelita (o papel de Lita Baron, na foto abaixo). Isabelita – não por coincidência, de forma alguma – faz uns trejeitos de Carmen Miranda, como, por exemplo, os movimentos rápidos dos olhinhos em todas as direções.

Entre uma música e outra, os diálogos e situações mostram amores, desamores, um assassino, um contrato para um novo assassinato, uma tentativa de suicídio – e algumas boas filosofadas de botequim sobre a vida, cette chienne, como diria a cantora Coralie Clément.

A cantora Isabelita é protagonista de um fascinante diálogo desses, bem no início dos curtíssimos 62 minutos de duração do filme.

Edgar G. Ulmer abre seu filme com um número musical, uma rumba, apresentada por Carlos Molina and His Music of the Americas. Em seguida há uma breve sequência em que aparecem o maître do nightclub, Charles (o papel do mexicano Pedro de Cordoba), a loura Myrtle (Sonia Sorel), telefonista e responsável por anotar as reservas de mesa, uma jovem e bela moça que parece aguardar alguém e a cantora Isabelita. O maître Charles pede a ela que capriche na apresentação daquela noite, pois a casa está lotada.

E em seguida a cantora entra no banheiro feminino, o território da simpática Hetty (o papel de Gertrude Michael). Hetty cuida da ampla sala de estar, com fartos espelho e cadeiras para as madames retocarem a maquiagem antes ou depois de visitar uma das casinhas fechadas. Powder room, em Inglês, essa língua fantástica que tem palavras e expressões para tudo, até para aquelas coisas que em `Português não existem. Ou existiria na Flor do Lácio algo como “sala de pó”, “sala de retocar a maquiagem”?

“Quem foi que disse a vida noturna é glamourosa?”

Eis o rico, delicioso diálogo entre a cantora e a chefe do powder room:

Hetty: – “Precisamos de um bom posto de primeiros socorros.”

Isabelita: – “Eles nunca se cansam de vir aqui? Toda noite a mesma comida, os mesmos rostos, o mesmo entretenimento.”

Hetty: – “Eles não vêm aqui pelo entretenimento. Aqui eles encontram compensação para seu vazio. O menor comentário hoje à noite será o escândalo nos jornais de amanhã.”

Isabelita: – “Você nunca fica cansada de tudo isso, Hetty?”

Hetty: – “Não posso me dar a esse luxo. Essas mulheres me contam mais coisas do que falam com seus maridos. Mas recebo boas gorjetas para ouvi-las.”

Isabelita: – “Pois o dinheiro não compensa o meu trabalho. Toda vez que um sujeito me dá uma gorjeta de 25 cents, acha que isso faz dele um massagista credenciado.”

Hetty: – “Esse é um problema que eu ainda não tive.”

Isabelita: – “E quando não estou tentando me livrar de atrevimentos, fico andando até meus pés doerem. Meu próximo trabalho será demonstrar cadeiras de roda.”

Hetty: – “Às vezes me pergunto quem foi o gênio que disse a vida noturna é glamourosa.”

Isabelita: – “É… Glamourosa demais! Mulheres casadas brincando de pezinhos debaixo da mesa com o marido da outra.”

Entram na sala duas frequentadores do Club Havana, e vão direto para as casinhas. Isabelita pega então um jornal que Hetty havia deixado sobre uma das mesinhas de maquiagem. O título em letras bem grandes é  “Jogador acusado de assassinato é libertado”. Abaixo dele há as fotos de um homem e uma mulher, com as legendas: “Jogador Joe Reed, cantora de nightclub Julia Dumont”.

Fica claro que as duas mulheres conheciam bem tanto a vítima Julia Dumont quanto seu assassino Joe Reed. Este, aliás, está naquele momento no grande salão do Club Havana (é o papel de Marc Lawrence).

O sujeito havia apresentado um álibi – segundo uma testemunha, na hora em que Julia Dumont foi assassinada, ele estava em outro lugar -, e a polícia teve que soltá-lo.

Veremos logo em seguida que o pianista do nightclub, que é também o namorado da cantora Isabelita, Jimmy Medford (Eric Sinclair), viu o acusado no prédio em que Julia Dumont morava. Jimmy viu Joe Reed descer as escadas logo depois do barulho de tiros – e viu que ele estava guardando uma arma no terno.

O testemunho de Jimmy, portanto, anularia o outro – seguramente um testemunho forjado, pago. E levaria Joe Reed para a cadeia e o banco dos réus. A questão, é claro, era o medo: para testemunhar, o pianista Jimmy precisaria ter a certeza de que Joe Reed não teria chance de se vingar dele.

Lá pelas tantas, policiais surgem no Club Havana. E não para jantar ou ouvir música.

Quatro casais de frequentadores – gente de todo tipo

Além das pessoas já citadas – o maître Charles, a telefonista Myrtle, a moça do Powder room Hetty, a cantora Isabelita, o pianista Jimmy, o jogador e assassino Joe –, vamos conhecer também quatro casais:

* Um casal jovem, que está no iniciozinho do namoro. A moça, Lucy (Dorothy Morris), linda, ao que tudo indica uma balconista de loja, comprou um vestido pelo preço de custo, mas mesmo assim caro, para aquele encontro. Ele é um médico em início de carreira; chama-se Bill Porter, e é o papel de Tom Neal.

* Um casal de duas pessoas mais velhas, que já estiveram separadas e estão naquele momento reatando. Ao contrário de Lucy e Bill, são frequentadores assíduos do Club Havana – ou eram, antes de se separarem. Ele, Willy Kingston (Ernest Truex), havia ido ao nightclub apenas duas vezes depois da separação; ela, Suzie, diz que tinha vindo várias vezes – e aqui há algo estranho, esquisito: não encontro o nome da atriz que interpreta Suzie Kingston. Não está no breve “cast of characters”, aquela relação de nomes dos atores e dos personagens que vem ao final do filme, e não está sequer no IMDb, o site enciclopédico que tem tudo, absolutamente tudo… Bem, com algumas poucas exceções…

* Uma recém-divorciada e o homem que ela amava. Rosalind (Margaret Lindsay) estava acabando de chegar de Reno, Nevada, a cidade em que divorciar é mais fácil do que dizer bom dia. O maître Charles a recebe com um “bem-vinda, Mrs. Lineker”, e ela, apressada, pergunta logo onde está Mr. Norton, e, diante da resposta de que ele está no bar, vai correndo para lá. Johnny Norton (Donald Douglas), no entanto, não a recebe com o entusiasmo do amante que agora poderá se casar com a amada. Muito ao contrário. Há algum problema ali.

* E, finalmente, há um casal formado por uma senhora já de meia idade, feia feito a fome, porém milionária, e um homem de negócios que havia perdido tudo. Ela se chama Mrs. Cavendish (Renie Riano) e ele, Clifton Rogers (Paul Cavanagh, os dois na foto abaixo),

Um diretor que fazia filmes com pouquíssimos recursos

O sujeito que criou a história da reunião desses personagens em um nightclub tipo latino, de músicas latinas e nome em homenagem à capital daquele país que era o paraíso dos turistas americanos é Fred L. Jackson. Há pouquíssimas informações sobre ele. Uma delas é de que esteve ativo no teatro da Broadway entre 1914 e 1944. No cinema, tem o crédito de autor da história original deste Club Havana e da peça de teatro que deu origem ao filme The Hole in the Wall, de 1921, não lançado comercialmente no Brasil.

Já o autor do roteiro do filme, Raymond L. Schrock (1892-1950), ao contrário, escrevia demais. Sua filmografia como roteirista contém nada menos que 159 títulos, e ele foi também diretor de cinco curta-metragens ainda nos anos 1910.

Um autor de poucas obras, um roteirista prolífico e um diretor idem. Edgar G. Ulmer afirmava ter dirigido 128 filmes. Vários deles foram produções baraticíssimas, faladas em ídiche, para o público judeu, e outros eram faladas em ucraniano. Acho que não faz mal algum reproduzir aqui informações sobre Ulmer que juntei ao comentar Flor do Mal/The Strange Woman (1946), em que ele dirigiu a beldade Hedy Lamarr.

“Ninguém jamais realizou bons filmes mais depressa ou com menos dinheiro do que Edgar Ulmer”, escreveu o diretor e historiador Peter Bogdanovich em seu calhamaço Afinal, Quem Faz os Filmes, de 1997. “O que ele era capaz de fazer a partir do nada (às vezes também no que tange aos roteiros) permanece uma lição para os diretores (incluo-me entre eles) que reclamam de orçamentos e prazos apertados. Edgar raramente dispunha de mais de seis dias para fazer um filme! É quase milagroso que, nessas condições, ele tivesse conseguido comunicar forte estilo pessoal e personalidade com os recursos tão escassos de que geralmente dispunha. Mas ele conseguia isso – e o fez mais de uma vez –, realizando clássicos da pobreza como o definitivo filme do gênero ‘aconteceu quando eu passava numa noite escura’, Detour (Curva do Destino); o místico thriller Karloff-Lugosi, The Black Cat (O Gato Preto); os melodramas densamente psicológicos Ruthless (O Insaciável) e Naked Dawn (Madrugada da Traição), Bluebeard (Barbazul), com John Carradine – apenas para mencionar os primeiros que vêm à mente.”

Ulmer nasceu em 1904 na Morávia, na época parte do Império Austro-Húngaro, hoje República Checa. Começou a carreira no cinema alemão; colaborou com Max Reinhardt, depois com F. W. Murnau em Fausto. Viajou aos Estados Unidos acompanhando Reinhardt em 1929, voltou à Alemanha, e em 1933 radicou-se de vez nos Estados Unidos, onde morreria em 1972.

“Algumas fitas irão garantir seu prestígio junto aos cinéfilos, fundando a lenda de um grande diretor confinado nas realizações de série B”, escreve sobre ele Jean Tulard no Dicionário de Cinema – Os Diretores. “O Gato Preto contrapunha Bela Lugosi a Boris Karloff em uma fantástica partida de xadrez num castelo isolado; Flor do Mal tinha uma atmosfera envolvente; Barbazul valia pela atuação de Carradine, e sobretudo Madrugada da Traição, western intimista em que um fora da lei perturbava a vida de um casal de jovens camponeses mexicanos.”

Anotação em novembro de 2023

Clube Havana/Club Havana

De Edgar G. Ulmer, EUA, 1945

Com Tom Neal (Bill Porter, o médico), Margaret Lindsay (Rosalind, a mulher que acaba de se divorciar de um tal de Linekar), Donald Douglas (Johnny Norton, o que namora Rosalind), Lita Baron (Isabelita, a cantora), Dorothy Morris (Lucy, a jovem convidada pelo médico), Renie Riano (Mrs. Cavendish, a milionária), Ernest Truex (Willy Kingston, o senhor mais velho), ?????? (Suzie Kingston), Gertrude Michael (Hetty, a funcionária do banheiro feminino), Eric Sinclair (Jimmy Medford, o pianista, namorado de Isabelita), Paul Cavanagh (Clifton Rogers, o homem de negócios que está sem um tostão), Marc Lawrence (Joe Reed, o jogador e assassino), Pedro de Cordoba (Charles, o maître), Sonia Sorel (Myrtle, a telefonista), Carlos Molina (Carlos Molina, o líder do conjunto Carlos Molina and His Music of the Americas)

Roteiro Raymond L. Schrock  

Baseado em história de Fred L. Jackson     

Fotografia Benjamin H. Kline, Eugen Schüfftan  

Música Howard Jackson

Montagem Carl Pierson

Direção de arte Edward C. Jewell     

Produção Leon Fromkess, Producers Releasing Corporation (PRC).

P&B, 62 min (1h02)

**1/2

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