Quando a Neve Tornar a Cair / Days of Glory

1.0 out of 5.0 stars

Quando a Neve Tornar a Cair, no original Days of Glory, que o francês Jacques Tourneur fez nos Estados Unidos em 1944, é um baita abacaxi azedo, uma porcaria. No entanto, tem, inegavelmente, um grande valor histórico.

É um filme americano que saúda diversas vezes o camarada Stálin.

Isso já bastaria para assegurar seu lugar como importante peça de museu. Mas, além disso, é o filme em que um locutor apresenta ao respeitável público “Mr. Gregory Peck, distinguished actor of the New York stage”.

Descobri a pérola na prateleira de clássicos da 2001 – DVD lançado pela Silver Screen Collection, uma das pequenas empresas brasileiras especializadas em colocar no mercado filmes que, por um motivo ou outro, não têm mais detentor de direitos autorais, caiu no limbo, e então pode ser reproduzido sem que se pague um centavo ao produtor, a ninguém.

E achei fascinante a experiência de vê-lo. Naturalmente, para gostar de ver Days of Glory é preciso que o espectador esteja disposto não a ver um bom filme, ou um filme importante – mas sim que se disponha a apreciar uma peça de museu. Como tal, é um grande barato.

Um letreiro nos avisa de cara: “Apresenta a estréia cinematográfica de um elenco de novas personalidades”.

E então o locutor, voz em off, vai nos apresentando os personagens, enquanto vemos uma foto do ator, seu nome e o nome do personagem. “Seu líder (dos guerrilheiros russos que enfrentam as tropas invasoras nazistas), designado pelo Exército para comandar o grupo, Vladimir, interpretado pelo sr. Gregory Peck, notável ator dos palcos de Nova York”.

E logo depois: “Nina, a dançarina que se une ao grupo, interpretada pela aclamada bailarina Tamara Toumanova”.

Um filme de 1944 – e o inimigo do meu inimigo é meu amigo

É preciso, evidentemente, ver as coisas em seu contexto. Era 1944, e Estados Unidos e União Soviética eram aliados na luta contra o Eixo, Alemanha-Itália-Japão.

O filme é um esforço de guerra, uma obra feita como peça de propaganda, para insuflar o patriotismo das platéias, para atiçar seu ódio ao inimigo. Naquele exato momento, valia fazer loas ao império do outro lado do mundo ideologicamente oposto aos Estados Unidos – o inimigo do meu inimigo é meu amigo.

Daí a muito pouco, em fevereiro de 1945, iriam se reunir em Yalta o presidente Franklin D. Roosevelt, o primeiro-ministro britânico Winston Churchil e o camarada Stálin, para dividir o mundo para quando a guerra terminasse. E em maio, junho de 1945, as tropas aliadas vindas do Oeste e as do Exército Vermelho vindas do Leste se encontrariam na Alemanha, e a dividiriam em duas, assim como dividiriam em duas Berlim, a capital do Reich finalmente derrotado.

E aí não dá para não lembrar da cena final de Os Vitoriosos/The Victors, que Carl Foreman faria em 1963, sobre a chegada das tropas aliadas a Berlim, vindas dos dois lados – ao final, um soldado americano briga com um soldado soviético. Terminada a Segunda Guerra, começava imediatamente a outra, a Fria.

Mas em 1944 eram aliadas, as tropas ocidentais e as tropas do camarada Stálin.

E então Jacques Tourneur – exilado nos Estados Unidos como dezenas de outros realizadores europeus fugidos do nazismo – fez seu filme que é um esforço de guerra, uma elegia aos bravos russos que lutavam contra o nazismo.

“Juro até meu último fôlego ser fiel à minha pátria mãe soviética!”

Tourneur e o roteirista e produtor Casey Robinson, no entanto, deram uma exageradinha.

Quando o comandante Vladimir, de volta à base de seu grupo de guerrilheiros, encontra aquela bela mulher, e pergunta quem ela é o que está fazendo ali, Nina-Tamara Toumanova, bailarina do corpo de baile de Moscou, responde, sorrindo e com uma voz patriótica:

– “O camarada Stálin pediu para que artistas viessem dar moral aos soldados no front.”

Mítia, o garotinho herói de 16 anos que luta com o grupo de guerrilheiros comandados pelo herói Vladimir, sai-se com esta:

– “A luta pela Mãe Rússia é uma grande aventura!”

E Vladimir e Nina dirão ainda, como um jogral, quase em coro, em uníssono:

– “Eu, Nina Ivanova, cidadã da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, juro solenemente ser uma honrada, disciplinada e audaz combatente! Juro até meu último fôlego ser fiel aos meus compatriotas, à minha pátria mãe soviética! Juro defendê-la corajosamente com sabedoria, honra e dignidade, até minha última gota de sangue!”

(É assim mesmo. O nome União das Repúblicas Socialistas Soviéticas é dito por extenso. Nada de sigla. Por extenso, com voz de imenso orgulho patriótico.)

Fico aqui imaginando se J. Edgar Hoover não mandou botar escuta no telefone na casa do produtor Casey Robinson.

Os personagens não são pessoas – são arquétipos

Há esforço de guerra e esforço de guerra. Juntos, Noel Coward e David Lean fizeram, em 1942, Nosso Barco, Nossa Alma, e, em 1944 – o mesmo ano deste Days of Glory -, David Lean fez This Happy Breed. Esses dois filmes são propaganda: foram feitos com o propósito claro de engajar a população civil inglesa na luta contra o nazismo, fazer as pessoas ajudarem, da maneira que fosse possível, o governo e as forças armadas na luta. Consta que Churchill adorou os dois. Acontece que esses dois filmes são, além de grande e efetiva peça de propaganda, belas obras de arte.

Days of Glory é um tremendo abacaxi.

Focaliza-se, então, um grupo de guerrilheiros russos – perdão: eu quis dizer soviéticos – que combate as tropas nazistas. São gente do povo, sem treinamento; o único ali que é soldado profissional é Vladimir, o papel de Gregory Peck. Mas não são propriamente pessoas, personagens – são, todos eles, arquétipos. E são todos heróicos:

. Yelena (Maria Palmer) é a operária, ou factory girl, segundo a voz do locutor, tornada soldada perfeita; já matou mais de 60 inimigos. Não erra um tiro; tem uma queda afetivo-sexual pelo comandante Vladimir, porque, camaradas, as operárias da Mãe Rússia também são mulheres, pô!;

. Semion (Lowell Gilmore) é o professor, o intelectual. Faz um diário das ações, distribui as tarefas “civis” – determina quem cuida da comida, da limpeza dos pratos a cada dia;

. Sasha (Alan Reed) é o que gosta de beber; Sasha bebe tanto, e com tanto prazer, quanto Michaleen Flynn, o delicioso personagem interpretado por Barry Fitzgerald em Depois do Vendaval do mestre John Ford;

. Fiódor (Hugo Haas) é o ferreiro, sujeito sentimental, passional; ele e Sasha estão sempre às turras, prontos para sair no braço – mas se esquecem das brigas assim que aparece um nazista pela frente;

. Dimitri (Igor Dolgoruki) é o velho fazendeiro russo, com aquela barbona de velho fazendeiro russo;

. Petrov (Edward L. Durst) é o caladão da turma. Creio não ser um gigantesco spoiler se eu adiantar que Petrov irá, lá pelas tantas, ser um dos primeiros homens-bomba da história do cinema;

. E, para dar o toque de juventude, temos os irmãos Mítia (Glenn Vernon) e Olga (Dena Penn).

A esse harmonioso grupo virá se juntar, como que caída de pára-quedas, a bela ballerina moscovita Nina Ivanova.

Uma enorme construção subterrânea no meio da savana russa

Personagens que são esboços, arquétipos. Agora, a situação em que eles todos se encontram, o lugar em que eles se escondem…

Talvez inspirado na expressão underground, que servia para designar os movimentos da resistência civil ao nazismo, o roteirista Casey Robinson bolou que o grupo de felizes guerrilheiros habita um local subterrâneo. É uma gigantesca construção subterrânea, com diversos quartos e salas, algumas delas bastante amplas. Fica no meio do nada, de uma savana russa sem nada ao redor.

Por que raios haveria, no meio da savana russa, uma gigantesca construção subterrânea, feita para acomodar perfeitamente um grande grupo de guerrilheiros?

Ora bolas, essa é uma típica pergunta de idiota da objetividade. Porque é preciso ter um lugar para os personagens se esconderem dos nazistas, cacete!

Numa determinada hora lá, alguém diz que ali funcionou um convento. Um convento subterrâneo, no meio do nada? Tá bom.

Uma indicação ao Oscar e notas medianas nos guias de filmes

Mas estou começando a derrapar como se estivesse andando na neve siberiana. Não é preciso mais descrever como o filme é ruim. Acho que já ficou claro o que eu queria dizer. Melhor ir agora aos alfarrábios, ver informações e outras opiniões sobre esta pérola museológica.

Meu Deus do céu e também da terra, o filme teve uma indicação ao Oscar de efeitos especiais: Vernon L. Walker – Special Effects (Photographic), James G. Stewart – Special Effects (Sound), Roy Granville – Special Effects (Sound).

E aí, quer saber? De fato o som do filme me impressionou – o eterno ruído das bombas ao longe, e depois o ruído das bombas bem perto.

Em frente.

Não sei se Leonard Maltin se deu ao trabalho de ver o filme, mas deu 2.5 estrelas em 4 e resumiu: “Sincero mas arrastado filme de ação na II Guerra Mundial mostrando russos contra nazistas, memorável apenas como a estréia nas telas de Peck”.

Cada um, cada um – mas, se é arrastado e só tem de memorável o fato de ter sido o debut de Gregory Peck, por que então 2.5 estrelas em 4?

Outro guia americano, o de Steven H. Scheur, igualmente dá 2.5 estrelas em 4: “Guerrilheiros russos enfrentam o inimigo nazista. Drama de guerra um tanto lento. Boas atuações. Estréia de Peck.”

O Guide des Films de Jean Tulard, que fala de 15 mil títulos, ignorou solemente o filme de seu conterrâneo Jacques Tourneur, que lá teve título com a tradução literal do original, Jours de Gloire. A edição brasileira do Dicionário de Filmes de Georges Sadoul, com um número bem menor de obras, também não aborda este aqui.

Opa: encontrei boas informações num alfarrábio.

Diz o livro The RKO Story:

“Casey Robinson, o autor dos roteiros de Dark Victory (Vitória Amarga), Now Voyager (A Estranha Passageira), Kings Row (Em Cada Coração um Pecado) e outros grandes filmes da Warner Brothers, virou produtor com Days of Glory, colocando no seu filme atores e atrizes nunca antes vistos nas telas de cinema. Essa experiência ousada pretendia dar ao filme um senso de realismo que se perderia com rostos familiares. Gregory Peck era o maior desconhecido, interpretando o líder de um grupo de patriotas soviéticos escondidos entre as linhas nazistas ao Sul de Moscou e enfrentando o inimigo com táticas de guerrilha. Um romance floresce entre Peck e uma dançarina (Tamara Toumanova, ex-prima ballerina do Ballet Russe de Monte Carlo e agora sra. Casey Robinson)”.

Ahá! Então foi daí que saiu Tamara Toumanova: da cama do produtor e roteirista Casey Robinson, tendo antes uma temporada no Ballet Russe de Montê Carlô! Ah, então tá.

Prossegue o livro sobre a RKO, o estúdio que produziu esta bomba:

“O filme recebeu elogios consideráveis por sua intensidade em tom menor e espírito humanístico, mas foi um fracasso por diversas razões: a ausência de nomes famosos, a atuação uniformemente dura dos neófitos, o final lúgubre e depressivo e os longos diálogos do roteirista Robinson sobre heroísmo, poesia e morte. Jacques Tourneur fez um trabalho satisfatório dirigindo seu primeiro filme A.”

(A classificação de filme A se refere, obviamente, ao orçamento bom, de US$ 958 mil – naquela época, cerca de US$ 1 milhão era um orçamento bom –, em contraposição às produções classe B.)

Muitos daqueles atores iniciantes se deram bem no cinema

Era competente o pessoal de escolha do elenco. A bela Maria Palmer, que faz Yelena, mais Alan Reed, Lowell Gilmore e Hugo Haas, todos tiveram carreiras longas após a estréia neste Days of Glory.

Sem falar, é claro, do tal de “Mr. Gregory Peck, distinguished actor of the New York stage”.

E ainda teve Tamara Toumanova.

Quer dizer então que a Tamara Toumanova, hein, quem diria?, era a sra. Produtor!

Nasceu em março de 1919, apenas um ano e meio depois de Lênin ter desembarcado na Estação Finlândia. Diz o IMDb que ela, conhecida como “A Pérola Negra do Balé Russo”, nasceu num trem, enquanto sua mãe fugia da Rússia em busca do seu marido. Viveram em campos de refugiados em Xangai e no Cairo, antes de se estabelecerem em Paris, onde a jovem Tamara estudou balé. Em 1932, entrou para o Ballet Russe de Monte Carlo, do empresário George Balanchine. Estreou na Broadway em 1939, e, em 1944, o ano de seu casamento com o roteirista e produtor Casey Robinson, fez sua estréia no cinema.

Nossa! Fez um pequeno papel em Cortina Rasgada, o filme reacionário, anti-soviético de Hitchcock de 1966, e, dirigida pelo mestre Billy Wilder, fez o papel de Madame Petrova em A Vida Íntima de Sherlock Holmes, de 1970, sua sétima e última participação no cinema. Morreria em 1996, aos 77 anos, em Santa Monica, pertinho de Hollywood.

Era uma boa atriz, a Tamara Toumanova. Para alguém que nasceu fugindo do comunismo, não deve ter sido nada fácil ela falar aqueles diálogos de elogio ao camarada Stálin e à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.

Anotação em junho de 2012

Quando a Neve Tornar a Cair/Days of Glory

De Jacques Tourneur, EUA, 1944

Com Tamara Toumanova (Nina), Gregory Peck (Vladimir), Alan Reed (Sasha), Maria Palmer (Yelena), Lowell Gilmore (Semyon), Hugo Haas (Fedor), Dena Penn (Olga), Glenn Vernon (Mitya), Igor Dolgoruki (Dimitri), Edward L. Durst (Petrov)

Roteiro Casey Robinson

Baseado em história de Melchior Lengyel

Fotografia Tony Gaudio

Música C. Bakaleinikoff

Produção Casey Robinson, RKO. DVD Silver Screen Collection.

P&B, 86 min

*

 

5 Comentários para “Quando a Neve Tornar a Cair / Days of Glory”

  1. Absolutamente maravilhoso era esse Gregory Peck. Gosto tanto dele que assisto e gosto até dos abacaxis! rs

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *