A imensa maior parte dos bilhões de seres humanos que viveram até chegar aos 80, aos 90, não viveu tanto drama, tanta paixão. com tanta intensidade quanto Mary Wollstonecraft Godwin nos primeiros 21 dos seus parcos 53 anos.
Mary se apaixonou perdidamente com 16 anos. Antes dos 18, vivia com um homem casado com outra mulher numa sociedade – a inglesa do início do século XIX – em que isso era um crime inominável. O pai, não um burguês conservador, mas um filósofo respeitado, livreiro, homem cultíssimo, a proibiu de pisar na casa paterna. Aos 21, depois de uma tragédia pessoal imensa, escreveu um dos romances mais lidos, comentados, reproduzidos, discutidos, copiados e filmados da História – Frankenstein ou o Moderno Prometeu.
Um filme que conta a vida dessa mulher entre os 16 e os 21 anos de idade tem tudo para ser fascinante. Bastaria que não errassem muito – e a verdade é que não erraram. Mary Shelley, co-produção Irlanda-Luxemburgo-Inglaterra, é um filme fascinante. Pode não ser uma maravilha, e de fato não é – mas é um bom filme, que merece, sem dúvida alguma, ser visto por todas as pessoas que se interessam por cinema, por literatura, por História. Ou seja: por todas as pessoas premiadas com alguma inteligência e curiosidade.
A direção é de Haifaa Al-Mansour, a primeira mulher da Arábia Saudita a dirigir filmes. Arábia Saudita, aquele país mergulhado nas brumas da Idade Média, onde as mulheres até outro dia mesmo não tinham praticamente direito a nada – sequer a dirigir carros. Remando contra a maré da ignorância que vem com o machismo e a visão fundamentalista da religião, Haifaa estudou literatura na Universidade Americana do Cairo e depois Cinema na Universidade de Sydney. Em 2012, quando estava com 38 anos (ela é de 1974), lançou O Sonho de Wadjda, um filme maravilhoso, feito com talento, esmero e imensa sensibilidade.
O que pensar diante dessas informações do IMDb sobre as filmagens de O Sonho de Wadjda?
“Por causa das restrições às mulheres na Arábia Saudita, a diretora Haifaa Al-Mansour não era autorizada a interagir com a sua equipe composta principalmente de homens. Ela teve que dirigir as cenas de rua de uma van estacionada nas proximidades, observando através de um monitor e dando instruções através de um walkie-talkie.”
Para uma mulher que fez aquele filme em plena Arábia Saudita, realizar este Mary Shelley na Irlanda e em Luxemburgo deve ter sido moleza.
A mãe de Mary também era uma figura fascinante
Para o papel de Mary Shelley entre os 16 e os 21 anos, os realizadores escolheram uma das mais belas atrizes de língua inglesa que, em 2017, ano de lançamento do filme, estavam nessa faixa etária. Elle Fanning, de 1998, tinha portanto 19 quando Mary Shelley chegou aos cinemas em 2017.
Foi uma ótima escolha. A irmã mais jovem da fantástica, absurdamente competente Dakota Fanning tem, além de uma beleza esplendorosa, bastante talento, que demonstrou cabalmente em Compramos um Zoológico (2011) e Ginger & Rosa (2012), só para dar dois exemplos.
O filme abre com Mary-Elle Fanning tentando escrever uma frase, um conjunto de frases, talvez um poema, num cemitério.
Parece uma coisa boba, uma afetação, um pendor pelo gótico, pelo lúgubre, pelo dark. Só depois de algum tempo o filme mostrará que não é à toa que Mary vai ao cemitério – ela vai visitar o túmulo da mãe, Mary Wollstonecraft, que morreu menos de um mês após dar à luz a filha.
Mary mãe, que a Mary filha jamais conheceu, parece ter sido ela própria uma mulher fascinante, que seguramente mereceria uma boa biografia no cinema. Nascida em 1759 e morta em 1797, Mary Wollstonecraft era filósofa e uma das primeiras ativists britânicas pelos direitos das mulheres, muitíssimo antes de qualquer movimento feminista. Escreveu romances, tratados, uma narrativa de viagem, uma história da Revolução Francesa, um livro de boas maneiras e livros infantis, mas seu trabalho mais conhecido é Uma Reivindicação pelos Direitos da Mulher, lançado em 1792, no qual ela defende os irrefutáveis argumentos de que “as mulheres não são, por natureza, inferiores aos homens, mas apenas aparentam ser por falta de educação e escolaridade”, como registra a Wikipedia. O livro aparece bem rapidamente em uma cena do filme.
Não apenas argumentava e escrevia a favor dos direitos das mulheres – ela os exercia. Ainda no século XVIII, ousou ter relacionamentos fora do casamento, com o pintor Henry Fuseli e com o escritor e diplomata americano Gilbert Imlay. Foi depois deles que se casou com William Godwin, o filósofo, que viria a ser o pai de Mary Wollstonecraft Godwin.
O filme faz uma referência a esse pintor Henry Fuseli: a roteirista Emma Jensen colocou Mary diante de um quadro pintado por ele, na mansão suíça ocupada por Lord Byron em que ela e Percy Shelley ficaram hospedados. Byron pergunta a Mary algo sobre o quadro, e ela conta que aquele pintor havia sido amante de sua mãe.
Mas aí coloquei os carros bastante à frente dos bois.
Mary conhece Shelley durante viagem à Escócia
Mary tinha 4 anos de idade quando seu pai viúvo casou-se novamente, com outra Mary, Mary Jane Clairmont. No filme, essa Mary Jane é interpretada por Joanne Froggatt, a atriz que fez a doce, suave Anna na série Downton Abbey – e aqui Joanne Froggatt faz uma antípoda de Anna. A Mary Jane que o filme retrata é uma madrasta dura, seca como as dos contos de fada, que parece detestar profundamente a filha do marido.
William Godwin é interpretado por Stephen Dilaine, e é retratado como um homem bom, manso, que incentivava as filhas a ler os clássicos e os modernos, a estudar e, se quisessem, também a escrever.
Sim, as filhas. No filme, mostra-se que Mary tem um meia-irmã mais nova, Claire Clairmont, filha de seu pai com sua madrasta. Claire é interpretada por Bel Powley (à direita na foto acima).
O filme mostra a Londres daquele início de século XIX (Mary tinha 16 anos na época do ínicio da ação, em 1813) como uma cidade extremamente pobre, suja, superpovoada, com multidões nas ruas. Pelo menos a região em que morava a família Godwin, os bairros pelos quais Mary transitava, aparecem como aquela Londres miserável da época do início da revolução industrial retratada nos livros de Charles Dickens.
E William Godwin, apesar de ser um filósofo reconhecido, reverenciado, e ser dono de uma livraria, está sempre com problemas financeiros, credores batendo à porta.
Mas tem amigos bem de vida, como o escocês William Baxter e sua filha Isabel (respectivamente Dertek Riddell e Maisie Williams); bem no início da narrativa, Godwin despacha Mary para passar uns tempos na bela propriedade dos Baxters na Escócia.
E é lá que Mary fica conhecendo o poeta e escritor Percy Shelley (o papel de Douglas Booth, que me pareceu mais boa pinta do que talentoso). Aos 21 anos de idade, Shelley já tinha dois livros publicados e alguma fama – viria a se tornar um dos mais importantes poetas ingleses do romantismo, ao lado de Lord Byron (Tom Sturridge).
Apaixonam-se perdidamente.
Um desafio: quem escreveria a melhor história fantástica?
A vida de Mary e Shelley tem mais pathos e drama que qualquer novela de TV – mas não vou ficar relatando sobre ela. O filme faz o relato muitíssimo bem. Mas é necessário registrar que, lá pelas tantas, o destino – ou, segundo o filme mostra, a insistência de Claire Clairmont em perseguir Lord Byron – faz com que se reúnam numa mansão esplendorosa na Suíça o já consagrado, famoso poeta, a própria Claire, o casal Shelley e Mary, e ainda o médico John Polidori (Ben Hardy).
Byron então propõe um desafio: cada um deles deveria escrever uma história fantástica, de fantasmas, de terror. Depois eles se reuniriam para ver quem tinha conseguido criar a melhor história.
As circunstâncias em que esse desafio é feito podem não ter sido exatamente as retratadas no filme. Consta, por exemplo, que o casal Shelley e Mary, diferentemente do que mostra o filme, não ficou hospedado na mansão ocupada por Byron, e sim num imóvel próximo. Mas o tal desafio existiu. E, mais tarde, com base em um ou outro experimento científico sobre o qual havia lido, mas principalmente inspirando-se em seu próprio sofrimento pela perda de um filho, e pela solidão em que mergulhou, afastando-se de Shelley, Mary escreveu Frankenstein ou o Moderno Prometeu.
O livro foi publicado em 1818 – como uma obra anônima. Percy Shelley escreveu o prefácio, a pedido do editor, mas o nome de Mary Wollstonecraft Godwin não apareceu naquela primeira edição.
O nome da autora, já então casada com o poeta, tendo assumido o sobrenome do marido, seria devidamente colocado numa edição posterior, e a partir daí em todas as centenas e centenas de edições do romance mundo afora.
O cinema adorou Frankenstein desde sempre. Não pesquisei o suficiente para saber quantos filmes foram feitos com base no romance de Mary Shelley, mas é fundamental registrar que o primeiro deles surgiu em 1910, uma produção dos Edison Studios – sim, o estúdio do Thomas Alva Edison (1947-1931), o criador do cinematógrafo, a primeira câmara cinematográfica bem sucedida.
O Frankenstein mais famoso, mais importante, certamente é o produzido pela Universal em 1931, dirigido pelo inglês James Whale, com Colin Clive, Mae Clarke, John Boles, e Boris Karloff como o monstro. Foi a obra que deu início à série de filmes de horror da Universal – que incluiu A Noiva de Frankenstein (1935) e O Filho de Frankenstein (1939).
O irreverente, iconoclástico Mel Brooks nos brindou com O Jovem Frankenstein em 1974. E o grande Kenneth Branagh fez em 1994 Mary Shelley’s Frankenstein, com o próprio Branagh mais Robert De Niro, Helena Bonham Carter, John Cleese, Ian Holm e Tom Hulce.
E não pára. Em 2015 foi lançado Frankenstein, uma adaptação para os dias de hoje escrita e dirigida por Bernard Rose. No mesmo ano foi lançado Victor Frankenstein, dirigido pelo escocês Paul McGuigan.
Um belo filme que não teve grande sucesso
Este Mary Shelley dirigido por uma mulher da Arábia Saudita é mais uma de tantas belas provas de que não apenas ingleses sabem filmar histórias inglesas, não apenas negros sabem filmar histórias sobre negros, não apenas mulheres sabem filmar histórias sobre mulheres, não apenas gays sabem filmar histórias sobre gays, etc, etc, etc, etc, etc, etc.
O cinema é uma arte e uma indústria internacional, inter-racial, inter-gênero, inter-opção sexual. Já era globalizado muito antes que o termo globalização começasse a ser usado. É necessariamente produto de todo mundo junto e misturado.
Moderna e cosmopolita, apesar de ter nascido em um país atrasado, medieval, em que tudo é pecado, Haifaa Al-Mansour soube muito bem mostrar aqueles ingleses do início do século XIX, intelectualizados, rebeldes, desafiadores eternos das convenções, chegados a bebidas, drogas, amor livre, orgias.
O filme não foi grande sucesso nem de público, nem de crítica. O site Rotten Tomatoes disse o seguinte: “Mary Shelley atenua a fascinante vida da sua personagem e não consegue comunicar o brilho de seu trabalho clássico, enfraquecendo os ótimos detalhes de reconstituição de época e uma sólida performance de Elle Fanning.”
O site RogerEbert.com dá apenas 1.5 estrelas em 4 para o filme. Em sua crítica, Susan Wloszczyna diz que Mary Shelley é “muito monótono e excessivamente cheio de diálogos”. E que a escritora e seu monstro mereciam coisa melhor.
Acho que esses dois julgamentos são severos demais. Eu gostei bastante de ver o filme.
Anotação em março de 2019
Mary Shelley
De Haifaa Al-Mansour, Irlanda-Luxemburgo-Inglaterra, 2017
Com Elle Fanning (Mary Shelley)
e Douglas Booth (Percy Bysshe Shelley), Bel Powley (Claire Clairmont, a meia-irmã), Stephen Dillane (William Godwin, o pai), Joanne Froggatt (Mary Jane Clairmont, a madrasta), Tom Sturridge (Lord Byron), Ben Hardy (John Polidori), Jack Hickey (Thomas Hogg), Maisie Williams (Isabel Baxter), Derek Riddell (William Baxter), Ciara Charteris (Harriet Shelley), Chloe Vos (Ianthe, a filha de Harriet), Richard Owens (William Godwin, o meio-irmão), Hugh O’Conor (Samuel Coleridge)
Roteiro Emma Jensen
Com textos adicionais de Haifaa Al-Mansour
Fotografia David Ungaro
Música Amelia Warner
Montagem Alex Mackle
Casting Amy Hubbard, Heidi levitt, Katja Wolf
Na Netflix. Produção BFI Film Fund, Film Fund Luxembourg,
Gidden Media, HanWay Films, Head Gear Films, Ingenious,
Juliette Films.
Cor, 120 min (2h)
***
2 Comentários para “Mary Shelley”