A Datilógrafa / Populaire

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Nota: ★★★☆

A Datilógrafa, no original Populaire, é um filme bem sem-vergonha – sem vergonha de ser alegre, pra cima, de ter um gosto de nostalgia, de fugir do realismo como o diabo foge da cruz. É uma absoluta delícia.

A ação dessa gostosa, inteligente, bem realizadíssima comedinha romântica se passa em 1958 e 1959, uma década e meia antes do nascimento do ator principal, o feioso, careteiro e bem-amado pelas platéias francesas Romain Duris, três décadas antes do nascimento da atriz que faz a protagonista, Déborah François. Uma década e meia antes do nascimento do diretor Régis Roinsard, também o autor do argumento e do roteiro original (que, segundo depreendo, teria depois um polimento, uma revisão feita pela dupla Daniel Presley & Romain Compingt).

Para dar os números exatos aos bois: o diretor Roinsard é de 1972, Duris é de 1974 e a garotinha Déborah François é de 1987.

zzdati4Quando essa gracinha de atriz nasceu, minha filha, então com 12 anos, já via comigo, com prazer, filmes dos mais diversos gêneros, e gostava em especial de Hitchcock e Spielberg. (Ela e Inês tinham também um Polanski preferido, A Dança dos Vampiros, que viam e reviam na fita VHS.)

Quando Déborah François estava com uns quatro ou cinco anos, matriculei minha filha, um tanto contra a vontade dela, numa escola de datilografia.

Sim, datilografia – uma daquelas escolas tradicionais, com máquinas de datilografar antigas, manuais, duras, pesadas, a s d f g, a s d f g, e, com a mão direita, h j k l ç, h j k l ç. As máquinas mecânicas já eram então quase coisa pré-histórica, amplamente substituídas pelas elétricas, e todas as máquinas de escrever, mecânicas ou elétricas, já estavam condenadas ao oblívio total, porque se avizinhava o tempo dos PCs, e minha filha ia bastante a contragosto às aulas jurássicas. Mas eu insistia em que ela deveria continuar. Forcei minha filha a fazer poucas coisas que ela não queria; as aulas de datilografia foram dessas poucas. Não me arrependo. Acho que ela também não.

A máquina de escrever acabou, sumiu do mapa – mas está na nossa imaginação

Há muitas coisas que o desenvolvimento tecnológico condena ao oblívio eterno, e no entanto acabam ficando indeléveis no imaginário das pessoas. O disco de vinil, por exemplo. O compact disc chegou lá pela primeira metade dos anos 80, antes de a gracinha da Déborah François nascer, e então condenou-se o disco de vinil, o LP, ao parque histórico das jurassidades. Há vários anos a gente lê que os CDs estão condenados à morte, e eis que os LPs estão de volta.

Umas duas ou três semanas antes de vermos A Datilógrafa, a Revista do Globo fez matéria de capa sobre a máquina de escrever – aquela coisa tão “muy antigua, ya superada por la técnica de hoy”, para citar o verso de Horácio Ferrer.

zzdati6Em Até o Fim do Mundo, que o grande Wim Wenders lançou em 1991, havia um pau universal de eletricidade, e então um personagem tirava do baú uma máquina de escrever.

Há pouco, em uma comédia romântica americana escrita pela neta do mestre Elia Kazan, Zoe, Ruby Sparks (2012), o personagem central, um jovem escritor na Los Angeles de hoje, escreve em uma máquina de escrever tradicional, em vez de num teclado Apple. (O eventual leitor já reparou que todos, mas absolutamente todos os computadores usados pelos personagens dos filmes americanos dos últimos 20 anos são Apple?)

O oblívio não é tão simples como talvez sonhem as vãs filosofias dos nerds. Como dizia Paul Simon na canção “Old”: “Buddy Holly still goes on”. O LP está de volta, embora jamais tenha a rigor ido embora. A máquina de escrever acabou, sumiu do mapa – mas está na nossa imaginação.

Rose de início é catilógrafa – mas catilografa com uma rapidez impressionante

Na primeira sequência de A Datilógrafa, Rose (o papel de Déborah François), pé ante pé, pega a máquina de escrever que ornamenta a loja de seu pai, Jean (Frédéric Pierrot), leva-a para o balcão e, com muito medo de que o barulho desperte os outros, escreve seu nome: Rose Pamphyle.

A loja do pai de Rose fica numa cidadezinha minúscula da Baixa Normandia. Era 1958 (não há letreiro nos informando sobre o ano, mas a narrativa vai mostrar isso), e Rose queria ser algo mais do que a assistente do pai em sua lojinha de uma cidade minúscula. Então pega um ônibus e vai até a maior cidade da região, Lisieux, para tentar a vaga – que havia sido anunciada no jornal – de secretária de uma companhia de seguros.

zzdati7O dono da empresa é Louis Échard (o papel de Romain Duris, essa espécie assim de Jean-Paul Belmondo do cinema francês a partir dos anos 1990 e para frente). E é ele que fará as entrevistas com as candidatas ao cargo.

Mulheres de todas as pequenas cidadezinhas da Baixa Normandia tinham acorrido ao lugar. Todas queriam obter a vaga.

Haviam, todas elas, ou a imensa maioria delas, lido tudo o que era possível sobre como se candidatar a uma vaga de secretária. Não usar maquiagem forte, optar por roupas distintas.

Louis, o empregador, olha para aquele mundaréu de mulheres sentadas em uma das salas de sua empresa, à espera de uma chance. Chama Rose.

O único talento que Rose tem a mostrar é sua maestria na datilografia. Ela copia uma carta comercial com agilidade incrível – embora seja uma catilógrafa, uma pessoa que só datilografa com os dois dedos indicadores.

Mas Rose é jovem, e bela.

O severo, sério, sisudo dono de agência de seguros Louis Échard contrata Rose.

Rose se mostra uma péssima secretária. Mas na máquina de escrever é um assombro

E este é um dos muitos encantos deste filme encantador.

Poderíamos presumir, nós, os espectadores de um filme feito em 2012, que tudo o que Louis queria era comer a secretária bonitinha, gostosinha, charmosinha.

Mas isso é porque estamos vendo o filme com nossos olhos corruptos, corrompidos – ou talvez mais liberados, mais soltos – dos anos 2000, 2010.

zzdati8A ação do filme se passa em 1958 e 1959. Eram anos inocentes. De maior repressão, é verdade – uma repressão danada. Mas eram mais inocentes. Mais pudicos. E então a intenção de Louis não é, ao contrário do que poderia parecer, comer a gatinha.

Depois de contratada, Rose se demonstra uma secretária horrorosa. É sem jeito, bagunçada, um pavor. Deixa cair as coisas no chão. Não consegue achar um papel no escritório para anotar um recado. Destrói documento importante. Queima uma máquina de picotar papéis.

Mas leva muito jeito com a máquina de escrever.

E então Louis passa a achar que pode fazer dela uma campeã na datilografia.

Havia, então (jamais soube disso, e então acredito que muita gente também não saiba), concursos de melhores datilógrafas.

Havia os concursos regionais, nacionais e internacionais.

Louis acredita que pode treinar Rose, ensiná-la a datilografar usando os dez dedos, corretamente, e fazer dela uma campeã.

Quando isso acontece, estamos aí com uns 20 minutos de filme. Muita coisa haverá de rolar.

O tom é de realismo fantástico, de fantasia. E os atores estão estudadamente exagerados

A Datilógrafa tem todos os itens que uma boa comédia romântica tem que ter – incluindo aí a previsibilidade. Quem não gosta de histórias previsíveis não deveria ver este filme, nem qualquer outra comédia romântica.

Mas o que torna o filme especial, diferente da maior parte das demais comedinhas românticas, é a sua clara, firme, forte fuga do realismo, do naturalismo.

Em diversas sequências, A Datilógrafa beira assim um realismo fantástico, uma fantasia – como a sequência em que as folhas de papel saem voando pela sala em que Louis está treinando Rose para as competições.

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E, em praticamente todo o filme, há um tom estudadamente, propositalmente teatral, suavemente, brincalhonamente exagerado, over. Como, por exemplo, nas competições, as finalistas fazem caras ferozes umas para as outras. Ou fazem gestos amplos, largos, na hora de retirar uma folha de papel da máquina e colocar outra.

É como se os atores estivessem o tempo todo brincando com o espectador, dizendo: isto não é a vida real, nem a recriação da vida real, é um filme! Uma diversão!

É uma questão de estilo.

Em Angel, de 2007, François Ozon foi tão fundo em fazer de seu filme um arremedo do tom dos romances para jovens moças que eu demorei para sacar que era uma brincadeira, um estudo de estilo. Ozon subiu umas oito escalas acima do natural.

A Datilógrafa é um filme anti-realismo, anti-naturalismo. Só que o que o distancia do que o público em geral vê nas novelas da TV é bem mais suave do que o tom de romantismo exacerbado, exagerado, adotado por Ozon em Angel, ou o tom absolutamente surrealista com que o também jovem diretor Joann Sfar usou na sua biografia de Serge Gainsbourg, Gainsbourg – O Homem que Amava as Mulheres.

A Datilógrafa só foge um pouquinho do naturalismo a que as audiências normais estão acostumadas.

Não faz um corte absoluto, como o que Ozon fez em Angel ou Sfar em Gainsbourg. Faz uma variação pequena, sutil, suave.

É um brilho.

O diretor faz uma bela, deliciosa recriação de uma cena de Vertigo

E há ainda a deliciosa homenagem a Um Corpo que Cai/Vertigo, a obra-prima de Alfred Hitchcock. O diretor Régis Roinsard cita, quase recria a seqüência esplendida em que o ex-policial Scottie Ferguson (James Stewart) consegue finalmente fazer com que Judy (Kim Novak) se vista e se penteie exatamente como Madeleine.

Scottie-James Stewart está no quarto de Judy num hotel de San Francisco. É noite, e o quarto é invadido pelo verde do gigantesco anúncio luminoso do lado de fora, na parede dianteira do prédio. E aí então Judy-Kim Novak sai do banheiro e entra no quarto, iluminada de verde – e Judy não é mais Judy, é de novo Madeleine, a que Scottie acreditava ter visto morrer.

zzdati3No hotel em que estão Rose e Louis, também há um grande anúncio luminoso no lado de fora, e as cores que vão sendo alternadas – ora azul, ora vermelho – invadem o quarto, no momento em que a pobre e provinciana Rose sai do banheiro em um caro, elegante vestido de noite vermelho vivo.

Louis leva um choque quase tão violento quanto o pobre Scottie.

Ele diz, numa óbvia referência às personagens Judy e Madeleine de Vertigo: – “Você não é a mesma pessoa”.

E Rose diz: – “Sou a mesma. O vestido é que é diferente.”

Claro, Déborah François não tem a beleza inacreditável de Kim Novak. É bela, sim – mas não aquela coisa esfuziante, enlouquecedora.

Está uma absoluta gracinha, uma total delícia como Rose Pamphyle, a mocinha provinciana simples, toda atrapalhada, mas que possui dedos que no teclado têm a velocidade de um Usain Bolt na pista de atletismo, de um Mark Spitz na piscina. Parece que o papel foi escrito para ela.

Como Cécile de France, que tem França no nome, Déborah François não é francesa, e sim belga. A Datilógrafa é o 17º título de sua filmografia, iniciada em 2005. Em 2008, fez Contratadas para Matar/Les Femmes de l’Ombre, um drama ambientado na Segunda Guerra Mundial de que não gostei; naquele filme, não reparei muito nela. Depois de A Datilógrafa, não dá mais para deixar de reparar em Déborah François.

zzdati99Uma curiosidade: o título original do filme, Populaire, se refere ao nome de uma máquina de escrever criada na França pela família Japy, uma dinastia de industriais. No filme aparecem dois representantes da dinastia, Gilbert e André Japy (interpretados por Nicolas Bedos e Féodor Atkine). Os roteiristas incluíram em sua história fictícia personagens e situações reais – mesmo tendo optado por fazer um filme em tom de fantasia.

Dois detalhinhos: os créditos finais mostram que o filme teve uma consultoria para assuntos específicos de datilografia, a Académie de l’Écrit. E, nos créditos finais, Gilbert Bécaud canta uma canção chamada “La machine à écrire”. Não conhecia a canção – ela não está em nenhum dos discos de Bécaud que tenho.

A máquina de escrever é coisa do passado jurássico, mas inspirou música e filmes.

Um filme que tem qualidade artística. Mas é divertissement

Cinema é arte, mas também é indústria. Cria produtos, que têm que ser comprados – ou então dá prejuízo.

Há quem entenda que, para dar muito, mas muito lucro, deve-se fazer porcaria, porque a imensa maioria das pessoas adora uma porcaria.

zzdati9Há de tudo.

Há os filmes que recorrem ao que deu certo na TV, e então vão nessa. Há gente fazendo isso no cinema brasileiro, e seus filmes têm tido muito sucesso.

Há filmes franceses que se inspiram no tipo de humor televisivo mais popular, como, por exemplo, O Cruzeiro/La Croisière, de Pascale Pouzadoux. Como cinema, é fraquinho – mas é divertido, o público ri, e então o filme foi, parece, um sucesso de bilheteria na França.

Não é o caso deste A Datilógrafa. Este aqui é um filme de qualidade artística, bem realizado; a trama é interessante, o roteiro é bem desenvolvido, os personagens são simpáticos, gostosos, bem desenhados. Tem estilo.

Mas é comedinha romântica, divertissement. As pessoas que acham que filme, para ser bom, tem que chato de doer, esses devem passar longe de A Datilógrafa.

Anotação em agosto de 2013

A Datilógrafa/Populaire

De Régis Roinsard, França, 2012

Com Romain Duris (Louis Échard), Déborah François (Rose Pamphyle),

e Bérénice Bejo (Marie Taylor), Shaun Benson (Bob Taylor), Mélanie Bernier (Annie Leprince-Ringuet), Nicolas Bedos (Gilbert Japy), Féodor Atkine (André Japy), Miou-Miou (Madeleine Échard, a mãe de Louis), Eddy Mitchell (Georges Échard, o pai de Louis), Frédéric Pierrot (Jean Pamphyle, o pai de Rose), Marius Colucci (Lucien Échard), Emeline Bayart (Jacqueline Échard), Dominique Reymond (Madame Shorofsky), Yannik Landrein (Léonard Echard), Nastassia Girard (Evelyne Échard)

Argumento e roteiro Régis Roinsard e Daniel Presley & Romain Compingt

Fotografia Guillaume Schiffman

Música Robin Coudert e Emmanuel D’Orlando

Montagem Laure Gardette e Sophie Reine

Produção Les Productions du Trésor, La Compagnie Cinématographique Européenne, France 3 Cinéma, France 2 Cinéma, Mars Distribution, Wild Bunch. DVD Paris Filmes.

Cor, 111 min

***

12 Comentários para “A Datilógrafa / Populaire”

  1. Gostei tanto de “A Datilógrafa”! Me lembrou das “Sessões da Tarde” da minha infância, quando assistia às peripécias das mocinhas românticas e pudicas vividas por Sandra Dee e Doris Day.

  2. Bom dia !!

    Veja só como são as coisas. Semana passada eu estava na locadora alugando uns DVDs e peguei neste “A Datilógrafa”. Li a sinopse e gostei. Lembro que dizia que ela era uma secretária muito fraca mas que tinha uma habilidade enorme para datilografar, era rapidíssima.
    Mas acabei não trazendo este filme, decidi que queria mesmo, naquele dia, ver só dramas.
    Não li ainda teu texto. Passei a fazer isto há algum tempo, só depois de ver o filme.
    Mesmo tendo lido a sinopse,como voce costuma dizer, quero ser surpreendido.
    Ainda não li o texto mas vi que deste 3 estrelas, sinal de que o filme é bom.
    Vou assisti-lo e depois volto aqui.
    Um abraço !!

  3. Stella, é bem verdade: “A Datilógrafa” faz lembrar os filmes do final dos anos 50, iniciozinho dos 60. Outro dia revi “Confidências à meia-noite”. Que delícia!
    E, Ivan, veja sim este filme. Quero ver sua opinião.
    Um abraço.

  4. Apesar de, em geral, já sabermos como esse tipo de filme termina, o importante é como a história é contada e tudo que acontece até chegar ao final feliz. Uma boa comédia romântica, é saborosa, criativa, tem boas interpretações, tem humor inteligente, diálogos inspirados e uma boa química entre o casal de protagonistas.
    Este filme é um prato cheio para os amantes do cinema ao fazer uma bela homenagem às comédias americanas dos anos 50 com cenário e figurino impecáveis.
    Abç,
    Miranda

  5. O filme é delicioso, arranca bons risos e é super sensual, o tempo todo. Como todo filme francês, tem que ter aquela cena de nudez, tem que haver aquele momento em que a atmosfera do filme deixa de ser só aura de sensualidade e culmina no sexo, propriamente dito. Mesmo assim, até isso é feito com sutileza. Linda fotografia e roteiro. Recomendadíssimo!

  6. Em qual locadora vocês encontraram esse filme? Preciso do DVD para assistir e não o encontro em lugar nenhum. Estou em SP/SP. Grata

  7. Cara Márcia,
    O filme foi lançado em DVD pela Paris Filmes.
    Com o fim das locadoras, não será fácil, de fato, você encontrá-lo para alugar.
    Mas a empresa distribuidora pode ajudar. E você pode conferir nos sites da 2001video.com.br, livrariacultura.com.br…
    Boa sorte!
    Sérgio

  8. Estou assistindo agora na HBO. Muito bom. Mas não sabia da existência desses concursos de datilografia.

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