Nota:
Enquanto via O Enigma Chinês/Casse-Tête Chinois, e já começava a me sentir um tanto melancólico porque ele se encaminhava para o final – quando o filme é bom, a gente não quer que ele acabe –, me lembrei de uma frase pândega que um amigo gostava de repetir: “A vida é bela, nóis é que estraguêla.”
Quando vi Albergue Espanhol, em 2006, quatro anos depois de o filme ter sido lançado, me maravilhei: “Uma delícia de filme. Desses de bem com a vida, alegres, bem humorados, gostosos, que dão prazer, que deixam a gente mais leve, melhor, acreditando um pouco mais na humanidade. É inteligente, esperto, cheio de boas sacadas. É o tal negócio: é criativo, rápido, ágil, moderno, jovem – mas tudo na medida certa, sem exageros, sem criativol babaca para agradar críticos, sem cansar o espectador com demonstrações metidas, presunçosas, tipo, olha aí como eu sou genial, meu. Nisso, ele segue a estirpe de Amélie Poulain – uma nobre estirpe.”
As mesmas afirmações valem para O Enigma Chinês.
E ele segue outra nobre estirpe, esta também bem rara: a da série de filmes que acompanham personagens ao longo de vários anos.
Há realizadores que gostam tanto de uma história que a contam mais de uma vez. O extraordinário Frank Capra, por exemplo, fez duas versões de uma mesma história: Lady for a Day, de 1933, e Pocketful of Miracles, de 1961, ambos lançados no Brasil como o mesmo título, Dama por um Dia.
Alfred Hitchcock fez um O Homem que Sabia Demais em seu país, a Inglaterra, em 1934, e outro no país que adotou durante boa parte de sua vida, os Estados Unidos, em 1956.
O grande Howard Hawks gostou tanto da história que filmou em 1959, em Onde Começa o Inferno/Rio Bravo, que a recontou depois em El Dorado, de 1966.
Personagens que vão amadurecendo ao longo de vários filmes
E há os realizadores que gostam de acompanhar os mesmos personagens ao longo da passagem dos anos.
O americano – do Texas – Richard Linklater tem se especializado nisso. Criou os personagens Jesse e Celine, e fez três filmes em que eles aparecem, sempre interpretados, é claro, pelos mesmos atores, Ethan Hawke e Julie Delpy. Antes do Amanhecer é de 1995, Antes do Pôr-do-Sol, de 2004, e Antes da Meia-Noite, de 2013.
Em 2014, Richard Linklater lançou Boyhood: da Infância à Juventude, que levou 12 anos para ser feito – ele acompanha o mesmo jovem, Ellar Coltrane, dos 6 aos 18 anos. Radicalizou: fez, num filme só, o que havia feito com seus Jesse e Celine ao longo de 18 anos.
François Truffaut contou a vida de Antoine Doinel, uma pessoa muito, mas muito parecida com ele mesmo, ao longo de 20 anos. Mostrou Antoine Doinel adolescente, perigosamente beirando a marginalidade, em seu primeiro longa-metragem, Os Incompreendidos/Les Quatre-Cents Coups, de 1959, o filme que por si só já o estabeleceu como um grande realizador. O personagem voltou em Antoine et Colette, um episódio do filme multinacional O Amor aos 20 Anos, de 1962. E depois, para nosso absoluto deslumbramento, voltou também em Beijos Proibidos (1968), Domicílio Conjugal (1970) e O Amor em Fuga (1979).
Quando o então extremamente jovem Claude Lelouch, aos 29 anos de idade, subiu ao palco para receber a Palma de Ouro do Festival de Cannes por Um Homem, Uma Mulher, saiu-se com uma frase de efeito, uma boutade: disse que, dali a 20 anos, iria voltar a Cannes para apresentar um filme sobre o que aconteceu na vida daqueles dois personagens. Cumpriu a promessa: Um Homem, Uma Mulher 20 Anos Depois passou hors-concours em Cannes em 1986. Quando Lelouch veio ao Brasil divulgar o filme, tive uma das grandes felicidades da vida de repórter, com uma entrevista praticamente exclusiva com ele – éramos apenas eu e um dos 253 críticos de cinema da Folha de S. Paulo. O crítico da Folha estava lá para ouvir uma ou duas frases de Lelouch e meter o pau no filme: um dos passatempos prediletos dos críticos de cinema é meter o pau nos filmes de Lelouch. Para os críticos de cinema, é assim: Truffaut é chique, Lelouch é brega.
Como não sou crítico de cinema, tenho imensa admiração por Truffaut e por Lelouch.
Truffaut acompanhou Antoine Doinel por 20 anos em cinco filmes. Lelouch contou a história de Anne Gauthier e Jean-Louis Duroc ao longo de 20 anos em dois filmes.
Cédric Klapisch acompanha as vidas de suas criaturas desde 2002, o ano de Albergue Espanhol, até 2013. São 11 anos, menos que os casos de Lelouch, Truffaut e Linklater.
Mas, quando chegamos ao final deste O Enigma Chinês, dá para imaginar que esse diretor ainda voltará a reunir seus personagens em novos filmes.
Tomara que faça isso.
Xavier acha a vida complicada demais. Martine acha que complicação é normal
Imagino que Xavier Rousseau seja tão parecido com Cédric Klapisch quanto Antoine Doinel era com François Truffaut. Seu alter ego.
Há um diálogo absolutamente delicioso entre Xavier Rousseau (interpretado pelo feioso charmoso Romain Duris) e Martine (a personagem de Audrey Tautou, na foto abaixo). Acontece quando o filme já se aproxima do fim.
É bom lembrar que Xavier e Martine tinham sido namorados, amantes, no passado – isso é mostrado em Albergue Espanhol e em Bonecas Russas (2005).
Xavier, Martine, mais a belga Isabelle (Cécile De France), mais a inglesa Wendy (Kelly Reilly), todos tinham – conforme mostra o primeiro filme da série – se conhecido em Barcelona, quando eram bem jovens, ali na faixa dos 20 e poucos anos, e estudavam na grande metrópole catalã.
Quando se dá o diálogo a que me refiro, Martine está em Nova York, hospedada no apartamento que Xavier arrumou para si na Chinatown, em cima de um bar chinês.
Martine acabou de ler o original de um novo livro de Xavier, e elogia o livro. E acrescenta: “É estranho você achar a vida complicada”.
Xavier retruca: “Olhe a sua vida, olhe a minha.”
Martine-Audrey Tautou faz uma cara de que não acha nada complicado: – “É complicado, é normal.”
E aí Xavier despeja: – “Estou em Nova York para ficar perto dos meus filhos, que tive com uma inglesa com quem vivi por 10 anos na Inglaterra e em Paris, e que veio para cá morar com um americano. Tive um filho com duas lésbicas, casei com uma chinesa para virar americano, e a vida não é tão complicada?
A câmara de Cédric Klapisch dá um close-up no rosto de Audrey Tautou, hoje uma das principais atrizes do cinema francês, e ela faz uma carinha deliciosa, maravilhosa, que quer dizer algo do tipo: meu, a vida não é complicada – é normal.
Acho que Cédric Klapisch veio ao cinema para dizer que a vida é bela, nóis é que estraguê-la.
Um noiva sino-americana – e a antiga namorada reaparece
A frase dita por Romain Duris – gostosíssima – é um bom resumo da trama desta terceira parte das aventuras e desventuras de Xavier Rousseau.
Quando a narrativa começa, Xavier está correndo nas ruas com seus filhos – Tom (Pablo Mugnier-Jacob), de uns dez anos, e Mia (Margaux Mansart), aí de uns cinco ou seis. Entra num grande salão, troca de roupa, bota um terno todo branco – e posa para uma série de fotos, com os dois filhos, a noiva chinesa, Nancy (Li Jun Li, na foto acima), e uns 15 chinas parentes dela.
Aí voltamos no tempo.
O casamento de dez anos com a inglesa Wendy já não vinha lá muito bem. (É no final de Bonecas Russas é que Xavier e Wendy ficam juntos.) Numa viagem a Nova York, ela conhece outro homem – e pouco depois anuncia que se mudará para a metrópole americana.
Xavier se desespera – mas o que ele poderia fazer? Não dá para impedir ex-mulher de mudar de cidade, de continente. Para não perder os filhos, ele se muda também para Nova York.
Hospeda-se no belo apartamento da grande amiga Isabelle, no Brooklyn. Isabelle, casada com uma bela sino-americana, Ju (Sandrine Holt), está grávida – e o sêmen usado foi de Xavier. Quando ela pediu para o amigo fornecer o sêmen, insistiu em que ele não precisaria ser o pai no sentido convencional; ele ainda estava casado com Wendy, e esta achou o pedido absurdo.
Isabelle diz que ele pode ficar no apartamento do casal o tempo que quiser, mas Xavier diz que vai procurar um canto para morar – não quer incomodar o casal, sabe que Ju preferiria que ele não ficasse muito tempo.
A busca por um apartamento é uma das sequências mais engraçadas, espirituosas do filme. Tudo que ele vê é caríssimo.
É Ju que resolve o problema: aluga para ele o seu próprio apartamento de solteira, o tal num predinho de Chinatown. É simples, mas é barato, e é um lugar legal para ele ficar com os filhos nos fins de semana.
A convivência com Wendy não é muito fácil, mas ele e as crianças se dão maravilhosamente.
Um advogado o aconselha a casar-se com uma americana, forma fácil de adquirir o visto para viver no país. Depois disso, ele acaba socorrendo um motorista de táxi chinês que tinha sofrido uma violenta agressão. Vai visitar o chinês no hospital, e toda a numerosa família está agradecidíssima a ele. Dizem que ele pode pedir o que ele quiser, que a família o ajudará. “Bem, eu estou precisando me casar”, ele diz. O motorista de táxi olha para Nancy, sobrinha e solteira.
Como se a vida de Xavier já não fosse complicada, Martine viaja a trabalho a Nova York, onde teria um encontro com empresários chineses. E ela o seduz. Ele nem queria, mas…
Klapisch é um grande diretor de atores, e todo o elenco está excelente
Tanto a fotografia (de Natasha Braier) quanto a trilha sonora (de Christophe Minck) são excelentes. É fascinante como o filme mostra uma Nova York que em geral não vemos nos filmes americanos – trechos feios da cidade, lugares cheios de pichações, construções tronchas.
A trilha é moderna, quente: tem rap, tem muita percussão, muita influência de África, coisas que fazem lembrar Gypsy Kings e Mano Chao.
Cédric Klapisch teve muita sorte (além de talento, faro) ao escolher os atores de Albergue Espanhol. Reuniu um monte de gente da melhor qualidade, jovens atores que estavam, em 2002, na faixa dos 25 anos – a geração da minha filha. Romain Duris é de 1974. Cécile de France, de 1975. Audrey Tautou, de 1976 e Kelly Reilly, de 1977. De lá para cá, todos eles passaram a ser do primeiro time.
Estão todos muito bem – os quatro principais e também os demais atores, que fazem papéis menores. Estão ótimos e foram muito bem escolhidas as atrizes Sandrine Holt, que faz a mulher de Isabelle, Li Jun Li, que faz Nancy, a noiva chinesa, um personagem saborosíssimo, e também a garota Flore Bonaventura, que faz Isabelle, a babá da filhinha do casal Isabelle-Ju.
De fato, Klapisch é um grande diretor de atores, e estão todos muito bem. Mas achei que Cécile de France se sobressai. Está absolutamente fantástica como a lésbica taradinha.
Como os filmes anteriores da série, Casse-tête Chinois fez muito sucesso na França, com 1,5 milhão de espectadores.
Outras informações sobre a produção do filme, tiradas do site AlloCiné:
* Além de ter sido o terceiro filme em que Romain Duris interpreta o mesmo personagem, O Enigma Chinês foi nada menos que o sétimo em que Cédric Klapisch dirigiu o ator. Dos 11 longas dirigidos até agora por Klapisch, Duris só não esteve em quatro!
* Foi o quarto filme que reuniu Romain Duris e Audrey Tautou. Além dos três em que interpretam Xavier e Martine, os dois fizeram juntos A Espuma dos Dias/L’Écume des Jours (2013), de Michel Gondry.
* Cédric Klapisch viveu durante uma temporada em Nova York, nos anos 80, estudando na escola de cinema da NY University e depois trabalhando como operador de câmara e em seguida diretor de curta-metragens. Em entrevista, falou da escolha da cidade para sediar a maior parte da terceira aventura de Xavier Rousseau: “É a cidade mais cheia de matizes, mais misturada do mundo. Todos os continentes estão em Nova York, todas as raças, todos os cultos. Mais que Londres, Xangai ou Pequim. Esses três filmes falam sobre a geração de pessoas que cresceram em paralelo à formação da Europa unida e da idéia da globalização. Nova York é a capital mundial dos imigrantes.”
O Enigma Chinês é de fato uma maravilha de filme. É uma ótima diversão – mas é também um belo documento sobre essa geração que está chegando agora aos 40 anos, exatamente a geração da minha filha. Com elegância, inteligência e bom humor, o filme fala de paternidade, vida em família, responsabilidade dos pais, amor gay, globalização, xenofobia.
Que venha a quarta aventura de Xavier e suas mulheres.
Anotação em novembro de 2014
O Enigma Chinês/Casse-Tête Chinois
De Cédric Klapisch, França-EUA-Bélgica, 2013
Com Romain Duris (Xavier Rousseau), Audrey Tautou (Martine), Cécile De France (Isabelle), Kelly Reilly (Wendy), Sandrine Holt (Ju), Flore Bonaventura (Isabelle, a babá), Jochen Hägele (Hegel e Schopenhauer), Benoît Jacquot (Monsieur Rousseau, o pai de Xavier), Pablo Mugnier-Jacob (Tom Rousseau, o filho de Xavier), Margaux Mansart (Mia Rousseau, a filha de Xavier), Amin Djakliou (Lucas, o filho de Martine), Clara Abbasi (Jade, a filha de Martine), Li Jun Li (Nancy, a noiva chinesa)
Argumento e roteiro Cédric Klapisch
Fotografia Natasha Braier
Música Christophe Minck
Montagem Anne-Sophie Bion
Produção Opposite Field Pictures, Belgacom, Ce Qui Me Meut Motion Pictures, La Compagnie Cinématographique, Panache Productions. DVD Paris Filmes.
Cor, 117 min
***
Texto delicioso – fiquei LOUCA para rever os dois primeiros – nem prestei atenção nas bonecas russas quando passou na TV – alguém de vida complicada estava ao telefone comigo, lá do Texas – e eu tentava lhe dizer que é ‘normal’… O que faço para ver os TRÊS?
Já faz um tempo que vi este filme, não lembro de detalhes, nem mesmo da impressão que me deixou, mas acho que gostei mais dele do que de “Bonecas Russas”.
Vi “Bonecas Russas” por indicação de um amigo. Eu estava em outra cidade, na casa de parentes, e não sei se isso influenciou, mas achei o filme meio arrastado. O personagem do Romain Duris era indeciso demais, e me fazia lembrar da indecisão/insegurança/chove não molha de um ex. No final eu acabei até gostando um pouco, e quando comentei com esse amigo sobre a indecisão do personagem, ele disse que os homens são assim. Precisava até ver novamente para ver se mudo de opinião.
Acho que continuo gostando mais de “Albergue Espanhol”. “O Enigma Chinês” é bom, divertido, mas tem coisas que eu acho meio nada a ver.
Minha trilogia preferida de diretores que acompanham os personagem ao longo dos anos continua sendo a do Linklater. “Antes do Amanhecer” é ótimo, e como na época em que o vi pela primeira vez eu tinha praticamente a mesma idade dos personagens, foi um filme que me pegou. Continuo achando-o muito bom, mas o meu preferido hoje é “Antes do Pôr-do-Sol”. O terceiro é um pouco amargo. Gostei muito de Boyhood também, a transformação real dos personagens a cada ano é impressionante.
Só discordo que Romain Duris seja um feioso charmoso, para mim ele é feioso feioso mesmo, desprovido de charme ou sex appeal (e nem é o personagem, pois já vi outros filmes com ele). E tem dentes igualmente feios, que aparentam descuido.
Interessante como hoje acho as atrizes mais bonitas que no primeiro filme, com exceção da Audrey Tautou, que nunca achei bonita, e parece um ETzinho.