Lore

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2.0 out of 5.0 stars

Não são nada comuns filmes sobre o tema que Lore aborda: o dia a dia de famílias de alemães logo após o final da Segunda Guerra Mundial na Europa, em maio de 1945, mostrado do ponto de vista alemão.

Há muitos filmes produzidos pelos vitoriosos, pelos países cujos exércitos avançaram sobre a Alemanha derrotada e a retalharam inicialmente em quatro setores, o americano, o britânico, o francês e o soviético. Billy Wilder mostrou imagens impressionantes da Berlim praticamente transformada em cidade fantasma pelos bombardeios aliados, em A Mundana/A Foreign Affair (1948). Carl Foreman fez um belo filme, hoje pouco conhecido e revisto, intitulado exatamente Os Vitoriosos/The Victors (1963), mostrando que, no instante mesmo em que os exércitos dos três países capitalistas dominaram a Alemanha vindos do Ocidente e o Exército do Vermelho dominou os territórios do Oriente, em maio de 1945, começava uma nova guerra, a fria, que duraria até o finalzinho dos anos 80.

O grande Robert Aldrich lançou em 1959 A Dez Segundos do Inferno, um filme sombrio, duro, desesperançado sobre a Alemanha logo após o fim da guerra. Dois anos depois, em 1961, uma surpreendente co-produção EUA-Suíça-República Federal Alemã dirigida pelo austríaco radicado nos Estados Unidos Gottfried Reinhardt, Cidade Sem Compaixão, mostrava um caso policial em que soldados americanos eram acusados de estuprar uma moça alemã nos anos imediatamente posteriores a 1945.

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Do mesmo ano de 1961 é Julgamento em Nuremberg, de Stanley Kramer, um filmaço sob todos os aspectos, uma história fictícia porém em cima dos fatos reais dos julgamentos de líderes nazistas acusados por crimes de guerra no tribunal internacional.

Em 1962, Vittorio De Sica, em O Condenado de Altona, uma co-produção Itália-França baseada em uma peça de Jean-Paul Sartre, colocou na boca da personagem interpretada por uma Sophia Loren tão bela que faz doer os olhos a afirmação de que a Alemanha comete o erro imperdoável de esquecer o que aconteceu ali entre 1933 e 1945. “Lembre-se das palavras de Goethe”, diz a personagem de Sophia, corajosamente, para o sogro, diante do marido e da cunhada silenciosos. “Aqueles que não se lembram de seu passado estão condenados a repeti-lo.”

Isso para citar apenas alguns dos muitos filmes sobre a Alemanha logo após o final da guerra – mas a imensa maior parte deles feitos por estrangeiros, produzidos pelos países vitoriosos. Faltavam obras alemãs.

O que chegou da Alemanha dividida em duas com imenso sucesso aos cinemas ocidentais dos, digamos, 15 anos imediatamente seguintes ao aniquilamento do Terceiro Reich foram as viagens ao passado glorioso do Império Áustro-Húngaro na trilogia Sissi, em que despontou para o mundo a beleza soberba, acachapante, da garotinha Romy Schneider.

Claro, não conheço muito, não conheço coisa alguma do cinema alemão feito logo após 1945, mas creio não estar muito longe da verdade se afirmar que os realizadores alemães só passaram a ter a coragem de enfrentar esses temas duríssimos algumas décadas após o final da Segunda Guerra. Foi só com a geração de Rainer Werner Fassbinder e Wim Wenders – eles próprios nascidos exatamente em 1945 – que o cinema alemão começou a encarar essa dureza toda: o surgimento e crescimento do nazismo, o período nazista, o imediato pós-guerra, em grandes filmes lançados a partir do final dos anos 60 e ao longo dos 70 e 80.

Bem mais recentemente, já nos anos 2000, houve – que maravilha – uma explosão de lançamentos de filmes alemães debruçados sobre essa herança maldita. Ao comentar sobre O Condenado de Altona, escrevi, ouso dizer que com alguma propriedade:

“Há o costume na Alemanha de esquecer o que aconteceu entre 1933 e 1945”, diz Johanna, a personagem de Sophia Loren. Creio que a frase era bem verdadeira na época em que a peça foi escrita, 1959, e o filme foi produzido, 1962. Felizmente, as coisas mudaram muito de lá para cá. O cinema alemão tem feito belas obras para que não nos esqueçamos nunca da barbárie nazista: A Queda! As Últimas Horas de Hitler (2004), Uma Mulher Contra Hitler (2005), Minha Quase Verdadeira História (2007), Os Falsários (2007), Jud Süss: Ascensão e Queda (2010), para mencionar apenas alguns.

E felizmente, também, têm sido feitos filmes sobre a outra ditadura que se abateu sobre metade da Alemanha, depois da derrota dos nazistas – a ditadura comunista que dominou a parte oriental do país desde o final dos anos 1940 até o final dos anos 1980. Belos filmes, como A Vida dos Outros, de Florian Henckel von Donnersmarck (2006), Barbara, de Christian Petzold (2012).

A diretora é australiana, o filme é uma co-produção Alemanha-Austrália

Lore é o primeiro filme alemão que vejo e de que ouço falar que se passa nos dias imediatamente seguintes à rendição da Alemanha em maio de 1945, e que retrata a vida de alemães comuns no país quase totalmente destruído pelos bombardeios aliados, e em seguida invadido e esquartejado.

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Ao saber da existência dele, e do tema que ele aborda, tive o maior interesse em vê-lo.

Eis a sinopse do filme apresentada nos canais Max: “Após a morte de Hitler, a vida da família de Lore desmorona. Seus pais saem e ela deve levar seus irmãos menores até a casa de sua avó em Hamburgo. O caminho é longo e perigoso… E um judeu quer se juntar a eles.”

No IMDb, há uma boa sinopse: “Enquanto os aliados fazem uma varredura na Alemanha, Lore lidera seus irmãos em uma jornada que expõe a eles a verdade sobre as crenças de seus pais. Um encontro com um misterioso refugiado força Lore a confiar em uma pessoa que ela foi ensinada a vida inteira a odiar”.

Após ver o filme e escrever os parágrafos acima, ao dar uma pesquisada rápida sobre ele, vi que a diretora, Cate Shortland, é australiana – o que explica o fato, indicado nos créditos finais, de se tratar de uma co-produção Alemanha-Austrália. Vi também que a autora do livro em que se baseia o filme, Rachel Seiffert, nasceu em Oxford, na Inglaterra, filha de pai alemão e mãe australiana, e foi criada para falar de maneira igual as duas línguas, o alemão e o inglês.

O livro se chama The Dark Room, e é composto de três noveletas, todas passadas na Alemanha: a primeira, Helmut, se passa no período entre-guerras, nos anos 1920; a segunda é Lore, e a ação da terceira se dá na Alemanha pouco antes da queda do Muro de Berlim, em 1997.

Assim, apesar de a diretora ser australiana, dá, sim, para considerar que é um filme alemão – até porque todos os atores são alemães e as filmagens foram na Alemanha.

O roteiro é do tipo que faz a opção preferencial pela narrativa difícil

Lore – o apelido, o encurtamento do prenome de Hannelore Dressler, interpretada por Saskia Rosendahl – é a filha mais velha de uma família numerosa. Tem aí uns 16, 17 anos (a garota Saskia Rosendahl, que estreou no cinema neste filme, estava com 19 anos quando o filme foi lançado, em 2012). Depois dela vêm Liesel (Nele Trebs), uma jovem bonita, inteligente, alegre, aí de uns 12 anos. Em seguida, dois gêmeos, Gunter (André Frid) e Jürgen (Mika Seidel), de uns 8 anos. E ainda tem um bebê de uns oito meses, Peter.

Em geral – não sei se o eventual leitor já reparou isso – os bebês nos filmes são interpretados por mais de um bebê, basicamente por gêmeos, para não cansar demais o pequetito, mas, segundo o IMDb, Peter aparece na pele de uma única criaturinha, Nick Holaschke. Cacete: como fizeram esse garotinho chorar! O bebê Peter chora copiosa, barulhentamente, em quase todas as tomadas em que aparece – e ele aparece em boa parte das tomadas do filme.

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A narrativa começa com o pai de Lore (interpretado por Hans-Jochen Wagner) chegando em casa. Usa uniforme de oficial nazista. A primeira frase que se diz no filme é dele, para a mulher (interpretada por Ursina Lardi): – “Só podemos levar o que couber no caminhão”. A mãe responde: – “Eu não estou falando da merda do caminhão”.

Então Lore entra no aposento em que pai e mãe estão tendo esse diálogo áspero. O pai olha para ela e se derrete: por sua reação, fazia tempo que ele não via a filha mais velha. Ele diz que ela está crescida, mudada. Ela demonstra que tem admiração e profundo amor pelo pai.

À noite, o pai queima uma grande quantidade de papéis que mantinha em sua casa.

Não fica claro para o espectador o que são aqueles papéis.

Muita coisa não fica clara para o espectador. Em Lore, há mais coisas que não ficam claras do que coisas que ficam claras. A diretora Cate Shortland, ela também co-autora do roteiro, ao lado de Robin Mukherjee, é do tipo que faz a opção preferencial pela narrativa difícil, em que quase tudo nada é dito às claras, em que tudo o que pode confundir o espectador é usado e abusado.

A diretora faz tudo para dificultar a compreensão da história

Na verdade, na verdade, neste filme aqui, pelo menos (não sei os outros filmes dela, que não vi e agora não tenho nenhuma vontade de ver), Cate Shortland faz um esforço sobre-humano para tornar o ato de tentar acompanhar a história de Lore e seus irmãos um suplício, uma tortura.

Não apenas ela tenta de todas as formas não ser clara, não explicitar por que os personagens se comportam da maneira com que se comportam, não passar perto de qualquer tipo de auxílio ao pobre coitado do espectador. Não se diz, por exemplo, em momento algum do filme, que estamos em maio de 1945, o mês em que Hitler se matou e a Alemanha finalmente se rendeu – o leitor que saiba um pouquinho de História, ou então boiará solenemente.

Mas não é só. Ah, não é só isso, não. Há mais.

A câmara de Cate Shortland é daquelas câmaras de mão à beira de um ataque de nervos. São 109 minutos em que vemos atores filmados com uma câmara de mão à beira de um ataque de nervos. A câmara treme durante 109 minutos. Não acredito que Cate Shorland tenha com isso querido aumentar o lucro dos oftalmologistas e donos de óticas e laboratórios que criam remédios para dor de cabeça – acho que ela simplesmente crê que, filmando desse jeito, conseguirá muitos prêmios nos festivais de cinema mundo afora.

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E não é apenas que seja uma câmara de mão em mãos de pessoa à beira de um ataque de nervos se não for premiada na Mostra de Cinema de São Paulo: ela entorta a câmara, e exagera nos close-ups, nos big close-ups, nos ultra giga big mega close-ups.

Por que raios entortar a câmara? Meu Deus do céu e também da terra: por que raios diretores que querem parecer diferentes, sensacionais, geniais, entortam a câmara a torto e a direito?

A câmara de Cate Shorland é uma aborrescente chata de 14 anos de idade. Estranho, porque ela mesma, a diretora, não é tão jovenzinha assim. Nascida em 1968, tinha 44 anos quando o filme foi lançado. Já deveria ter aprendido alguma coisa na vida, talvez lido um pouquinho dos teóricos, como Ivor Montagu, um inglês que trabalhou tanto com Hitchcock quanto com Eisenstein, e tem claras lições sobre posição de câmara.

Mary é uma pessoa muito mais paciente, calma, doce que eu. Mas, diante da câmara aborrescente de Cate Shortland, exclamou para mim, quando o filme estava ali com uns 5 minutos: “Mas não dá para fazer um filme normal?”

Uma adolescente anda muitos dias num país devastado

Se não fosse pelo nosso interesse em ver um filme alemão sobre esse tema tão pouco usual, teríamos desistido de ver ali pelos 10 minutos.

Só foi possível ir em frente porque o tema de fato é fascinante.

A jornada de Lore cuidando de seus irmãos menores através da Alemanha derrotada, exangue, dividida em quatro setores, com fronteiras rígidas entre eles, é apavorante. Sofri feito um condenado ao ver tanta dor, tanta dificuldade, tanta miséria, tanta tragédia.

E aqui faço uma ligação com um outro filme que vi recentemente, e que também mostra crianças, adolescentes, percorrendo a pé distâncias descomunais em um país abalado por uma guerra. Este Lore descreve uma jornada duríssima de um grupo de jovens através de uma Alemanha em escombros e retalhada em quatro diferentes territórios. Uma conjuntura real, absolutamente real. É bem diferente, portanto, de Minha Nova Vida/How I Live Now, de Kevin Mcdonald, lançado um ano depois, em 2013: nesse filme, a ação se passa numa Grâ-Bretanha do futuro próximo, quando o terrorismo está levando à eclosão da Terceira Guerra Mundial, aquela sobre a qual não estaremos aqui para contar como foi. A semelhança é que uma adolescente, como a Lore do filme alemão, será obrigada a andar a pé centenas de quilômetros através de um país em ruínas, e ainda por cima cuidando de uma criança.

É uma interessante coincidência que os dois filmes tenham sido realizados tão perto um do outro.

A garota Lore foi criada aprendendo a ter ódio dos judeus

A questão mais importante, mais básica, sobre o nazismo, me parece, sempre foi esta: como é que a maior parte dos alemães – esse povo culto, inteligente, organizado, trabalhador, empreendedor, forte, tão admirável que chega até a ser chato – pôde se render àquela ideologia parva, idiota, ilógica, insana, irracional, supremacista, sangrenta?

O que Lore mostra é bastante óbvio, e obviamente verdadeiro, me parece. É que, na Alemanha dominada pelo nazismo, havia uma divisão clara, nítida. Havia os que apoiavam de peito aberto o regime, e havia os que se opunham a ele, mas ficaram quietos enquanto ele durou, para se protegerem, para poderem sobreviver.

O pai de Lore era um oficial graduado; trabalhou nos campos de concentração. Sabia perfeitamente de todas as absurdas crueldades do regime que a máquina de propaganda de Goebbels escondia dos alemães medianos.

Lore foi criada por um pai e uma mãe nazistas. Adorava Hitler como uma filha de gente da nomenclatura de Stálin deve ter adorado o ditador assassino de milhões de pessoas.

Lore tem ódio de judeus porque desde sempre foi bombardeada na veia por ódio aos judeus. (Nisso, ao demonstrar isso, o filme tem seu melhor momento.)

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É interessante: Lore não é uma personagem que fascine o espectador. É uma filha de nazistas que aprendeu com os pais a admirar os ideais nazistas.

No entanto, ela se vê numa situação terrível – a de chefiar a jornada de sua família rumo à muitíssimo distante casa da avó em Hamburgo. E então o espectador torce por ela, simpatiza com ela, tem dó dela, quer que ela consiga se dar bem.

Talvez esse filme feito de um jeito tão agressivamente idiota queira, afinal de contas, nos dar uma boa lição. A de que devemos nos esforçar muito mais do que achamos que nos esforçamos para admitir que haja pessoas com opiniões diferentes das nossas.

Sei lá.

Não é, de forma alguma, um grande filme. Mas merece ser visto por causa de seu tema.

Anotação em outubro de 2014

Lore

De Cate Shortland, Alemanha-Austrália, 2012

Com Saskia Rosendahl (Hannelore Dressler), Hans-Jochen Wagner (o pai), Nick Holaschke (o bebê Peter), André Frid (Gunter), Mika Seidel (Jürgen Dressler), Kai Malina         (Thomas), Nele Trebs (Liesel), Ursina Lardi (a mãe), Eva Maria Hagen (a avó)

Roteiro Cate Shortland & Robin Mukherjee

Baseado na novela The Dark Room, de Rachel Seiffert

Fotografia Adam Arkapaw

Música Max Richter

Montagem Veronika Jenet

Produção Rohfilm, Porchlight Films, Edge City Films.

Cor, 109 min

**

2 Comentários para “Lore”

  1. Acabei de ver o filme Lore e acho este comentário muito bem feito, totalmente pertinente: excelente temática; ponto de vista alemão que raramente se encontra, a tomada de consciência das crianças para as atrocidades em que os pais se envolveram, o rapaz judeu está muito bem introduzido na trama da fuga e leva Gore a perceber a calamidade e o horror dos ideais dos seus progenitores… Eu escreveria o mesmo!

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