3.5 out of 5.0 stars
Anotação em 2009: É de fato um belo filme, este Os Falsários, co-produção da Áustria e da Alemanha que ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro de 2008 (derrotando, entre outros, Katyn, do grande Wajda). Um belo filme – denso, pesado, como necessariamente teria que ser um filme sobre judeus prisioneiros de campo de concentração nazista.
Expõe um complexo, duríssimo dilema moral – e vai fundo, bem fundo nisso.
E é uma daquelas histórias que parecem absolutamente incríveis, inacreditáveis, coisa de roteirista louco, cheio de ácido – e, no entanto, é uma história real.
Está na Wikipedia (tudo bem, não se pode fiar 100% na Wikipedia, mas ela não inventa): “A Operação Bernhard era o codinome de um plano secreto nazista criado durante a Segunda Guerra Mundial pelo Escritório Central de Segurança do Reich e da SS para desestabilizar a economia britânica enchendo o país com notas falsas de 5, 10, 20 e 50 libras. Foi a maior operação de falsificação de dinheiro da História, e foi relatada em livros, na minissérie da BBC Private Schulz e no filme austríaco vencedor do Oscar The Counterfeiters (Die Fälscher).”
Um homem em andrajos com uma mala cheia de dinheiro
O principal personagem da história se chama Salomon Sorowitsch (interpretado, com especial brilho, por Karl Markovics, na foto), tido como um dos maiores falsários do mundo. O filme abre com Salomon sentado numa praia de pedras, diante do mar. A câmara passa por um jornal de alguns dias, ou semanas, abandonado ali, cuja manchete, em letras garrafais, é “La guerre est finie” – e o espectador fica sabendo então que estamos em 1945.
Salomon vai então para um hotel elegantíssimo; está vestindo um paletó surradíssimo, camisa surradíssima, tem a barba por fazer – não tem a aparência de quem pode se hospedar ali, e o recepcionista diz que ele precisa fazer um pagamento adiantado em dinheiro. Salomon abre a pequena pasta preta que carrega, o espectador vê que a mala está cheia de maços de dinheiro; retira um maço, coloca diante do recepcionista, que retira duas notas e devolve o maço, dizendo que US$ 200 são suficientes.
Em seguida, numa seqüência de tomadas curtas montadas de forma muito rápida, ágil, vemos Salomon se transformando: um salão de beleza, um alfaiate caro – e uma figura muito diferente do andrajoso que chegou ao hotel aparece num elegante cassino. O espectador já sabe que estamos em Monte Carlo.
Salomon joga grandes, incalculáveis quantias. Chama a atenção de uma bela mulher. Corte rápido, e vemos Salomon com a mulher no quarto de hotel, ela tirando a roupa; nos preliminares da trepada, ela vê o número marcado no braço, não consegue esconder o espanto e pergunta se ele esteve num campo de concentração. Outro corte rápido – todo filme terá um ritmo muito rápido, tanto nos movimentos de câmara quanto na montagem –, e vemos Salomon no terraço do hotel, durante o dia, tomando champagne. O espectador já sabe que virá o flashback, e ele vem, com uma legenda que informa “Berlim, 1936” – Solomon, o grande falsário, está num cabaré na capital do Reich.
Com uns 15 minutos de filme, Solomon recebe a visita, em sua casa em Berlim, de uma bela mulher (Marie Baumer), que encomenda a ele um passaporte argentino. Solomon diz algo como “ah, a Argentina, o país do tango!”, e dança com ela. Já havíamos ouvido um tango nos créditos iniciais, quando Salomon está sentado na praia de pedra diante do Mediterrâneo, em 1945 – Mano a Mano, o clássico de Carlos Gardel-Esteban Flores-Jose Razzano. Solomon é apaixonado por tango.
Corte, e batem à porta da casa em que Solomon dorme com a mulher que ganhou seu passaporte argentino. Entram os policiais, chefiados pelo inspetor Friedrich Herzog (Devid Striesow). O inspetor é um homem sorridente, que se diz feliz por estar prendendo Salomon Sorowitsch, “um dos maiores falsários do mundo”.
Vem a seguir o horror da Segunda Guerra, o absurdo, a coisa absolutamente desumana dos campos de concentração, e o diretor Stefan Ruzowitzky, um austríaco de Viena, nascido em 1961, 16 anos, portanto, depois do fim da guerra, vai fundo na exposição dos horrores.
Estamos aí com uns 40 minutos, mais ou menos, quando, já em 1944, Salomon reencontra Friedrich Herzog, agora um oficial da SS encarregado de reunir prisioneiros judeus com experiência em tipografia, fotografia, gráfica, desenho, e formar um grupo de falsários para inundar o mundo com libras e dólares falsos. Salomon será o grande cérebro do esquema. O grupo, naturalmente, terá regalias, em comparação com os demais prisioneiros dos campos de concentração: colchões de verdade, lençóis lavados, comida, roupa limpa, cigarros, até mesmo direito a banho.
Um grande dilema moral – mais grave que o de A Ponte do Rio Kwai
E teremos, então, o grande dilema moral, que, me ocorreu agora, algumas horas depois de ver o filme, tem muito a ver com o que o mestre David Lean lida em A Ponte do Rio Kwai: tem sentido os prisioneiros colaborarem com o inimigo, fazerem um trabalho bem feito?
No caso dos prisioneiros daquele campo de concentração, trata-se de um trabalho da maior importância, muitíssimo maior do que construir ou não uma boa ponte perdida no meio da floresta tropical do Sul da Ásia: um trabalho bem feito ali serviria para financiar a máquina de guerra do Reich, num momento em que as forças aliadas conseguem importantes vitórias em diferentes frentes de luta.
Sabotar o plano nazista, no entanto, poderia significar a morte.
O mais firme defensor da tese de sabotagem é um prisioneiro chamado Adolf Burger (August Diehl, outro ator com atuação impecável, à direita na foto). Adolf Burger seria, mais tarde, o autor de um livro em que relata a experiência do grupo reunido pela SS no campo de concentração de Mauthausen para criar libras e dólares falsos.
O diretor Ruzowitzky, ele próprio o autor do roteiro que se baseia no livro de Burger, poderia perfeitamente ter escolhido o caminho fácil do maniqueísmo, o bom contra o mau, o bem contra o mal, Burger versus Salomon. Felizmente, ele optou pelo caminho oposto – ele nos conta a história de uma forma absolutamente cheia de matizes, dos mais diversos tons de cinza que separaram o preto do branco.
Ao fazer essa opção, e ao conseguir mantê-la com firmeza, criou um grande filme.
Um filme em cores que é quase preto-e-branco
Muitos tons de cinza. Uma das características formais mais impressionantes de Os Falsários é a fotografia, dirigida por Benedict Neuenfels; nunca tinha ouvido falar desse sujeito, mas tem uma competência extrema. Quase tudo, nas seqüências dos campos de concentração – que ocupam algo como 80% da duração do filme –, é como se fosse cinza, um conjunto de cinzas; as cores são absolutamente desbotadas, quase inexistentes.
É um brilho.
Assim como é um brilho a forma com que o roteirista e diretor escolheu para fechar sua narrativa. É um final grandioso, impressionante, uma bela junção de forma e conteúdo.
Um pequeno detalhe: a atriz que faz a mulher que vê Sorowitsch jogar no cassino de Monte Carlo, e dá para ele, é Dolores Chaplin, neta de Charlie, sobrinha de Geraldine. O iMDB lista 18 filmes e/ou episódios de TV em que ela trabalhou. Acho que dá para considerar a escolha dela como uma homenagem do diretor Ruzowitzky a Charles Chaplin.
Nos créditos finais, voltamos a ouvir Mano a Mano, um dos tangos mais famosos do mundo – e não consigo deixar de me surpreender, sempre que vejo um filme em que aparece tango, com a absurda força e importância que tem esse estilo musical. São dezenas e dezenas de filmes, dos mais diferentes países do mundo, em que se idolatra o tango – do óbvio O Último Tango em Paris à refilmagem americana de Perfume de Mulher. A seqüência em que Al Pacino dança o tango com a jovem Gabrielle Anwar nesse filme é absolutamente antológica. Em um filme sobre os horrores do nazismo na Polônia, Um Sinal de Esperança/Jakob the Liar, de Peter Kassovitz, com Robin Williams, o compositor Edward Shearmur criou um belo tango. Ouvimos tango em filmes feitos e passados no Extremo Oriente, no Oriente Médio, em discos russos, americanos, franceses, em qualquer lugar do mundo. É impressionante. Esses hermanos do Sul que aprendemos a desprezar, que viraram motivo de mais piada brasileira que nossos primos portugueses, esses hermanos odiados, talvez invejados, conseguiram – além de fazer um cinema da melhor qualidade – criar um fenômeno cultural espetacular. Só eles mesmos é que não dão valor ao tango.
Os Falsários/Die Fälscher
De Stefan Ruzowitzky, Áustria-Alemanha, 2007
Com Karl Markovics (Salomon Sorowitsch), August Diehl (Adolf Burger), Devid Striesow (Friedrich Herzog), Martin Brambach (Holst), Dolores Chaplin (mulher no casino), August Zirner (Dr. Klinger), Veit Stuebner (Atze), Sebastian Urzendowsky (Kolya), Andreas Schmidt (Zilinsky), Marie Baumer (Aglaia)
Roteiro Stefan Ruzowitzky
Baseado no livro de Adolf Burger
Produção Magnolia Filmproduktion
Cor, 98 min
***1/2
Título em Portugal: Os Falsificadores
Um bom filme que já vi e vou rever para a semana.
Assim espero.
Salomon Smolianoff (no filme chamado Salomon Sorowitsch) emigrou para o Uruguai ainda na década de 40. Depois de uns problemas com a polícia de lá, veio para o Brasil nos anos 50. Ele morava em Porto Alegre/RS onde abriu um negócio de brinquedos e morreu em 1976, com quase 80 anos. Já tinha a cidadania brasileira há anos.