Jud Süss: Ascensão e Queda é um filme excepcional. É também apavorante, chocante, horripilante, porque reconstitui uma série de episódios reais que mostram como funcionava, por dentro, a máquina de propaganda montada por Joseph Goebbels no regime nazista, e como ela conseguia incutir em boa parte do povo alemão o ódio visceral pelos judeus.
A narrativa se centra em Ferdinand Marian (interpretado por Tobias Moretti, na foto abaixo), um ator de cinema e teatro que foi escolhido pessoalmente por Goebbels para fazer o papel do judeu sujo, traiçoeiro, manipulador, desumano, no filme Jud Süß.
Esse Jud Süß é um filme tristemente famoso por sua importância histórica. É uma nojenta, abjeta, asquerosa peça de propaganda anti-semita. Toda sua produção, em 1940 – no segundo ano da Guerra, portanto – foi supervisionada pessoalmente por Goebbels. Passado no século XVIII, com milhares de figurantes, foi uma produção cara, de 2 milhões de marcos, e tornou-se um espetacular sucesso de público na Alemanha durante a Guerra, tendo rendido 6,5 milhões de marcos e atingido 20 milhões de espectadores.
Vinte milhões de espectadores! Num país em guerra. Como números soltos não querem dizer muita coisa, é bom lembrar que o filme brasileiro campeão de bilheteria por 34 anos, Dona Flor e Seus Dois Maridos, de Bruno Barreto, levou 10,7 milhões de espectadores às salas. Esse recorde só foi batido por Tropa de Elite 2, que teve 11 milhões. A Alemanha tem cerca de metade da população brasileira; na época da guerra, a população alemã era de cerca de 70 milhões.
É verdade que Heinrich Himmler ordenava aos membros da SS e da polícia que vissem o filme. Havia exibições para os soldados no front.
Mas, para chegar a 20 milhões de espectadores, não bastava dar ordem para que soldados e policiais vissem o filme. O povo enchia as salas em que o filme era exibido – Jud Süss: Ascensão e Queda mostra isso muito bem.
Após o final da Segunda Guerra Mundial, em 1945, centenas de cópias do filme foram queimadas, por ordem da Justiça, e sua exibição foi proibida na Alemanha. Ainda é, até hoje, conforme nos informam os letreiros ao final deste filme impressionante.
Segundo a Wikipedia, que tem um verbete longo, extensivo, sobre o filme, os direitos autorais de Jud Süß pertencem hoje à Fundação F.W. Murnau, um órgão oficial do governo alemão. A Fundação só permite que o filme seja exibido se houver uma introdução explicando o contexto histórico em que ele foi feito. A distribuição, venda e projeção do filme continuam proibidas na Alemanha e na Áustria. A venda do filme em DVD permanece proibida na França e na Itália.
Um ator alto, grande, um tanto canastrão, terrível galinha – mas que não era nazista
A narrativa de Jud Süss: Ascensão e Queda começa em 1939, o primeiro ano da Guerra. Dois atores estão ensaiando Othelo, de Shakespeare, em um teatro de Berlim. Um ator chamado Deutscher (interpretado por Heribert Sasse) faz Othelo; o ator que faz Iago é Ferdinand Marian, um sujeito alto, grande, um jeito de canastrão, uma espécie assim de Victor Mature.
Joseph Goebbels (interpretado por Moritz Bleibtreu, na foto acima, de, entre muitos outros, Corra, Lola, Corra, Soul Kitchen e O Grupo Baader-Meinhoff) e um pequeno séquito vão ao teatro, e observam durante um tempo o ensaio dos dois atores. Goebbels está convicto de que aquele ator que está ali ensaiando o papel de Iago é o homem certo para interpretar o judeu em Jud Süß, seu grande projeto.
Conheceremos então esse ator Ferdinand Marian. Ele é casado com uma bela mulher, Anna, uma austríaca, que tinha tido carreira como atriz em seu país Natal. (Anna é interpretada por Martina Gedeck, grande atriz, mais de cem filmes e/ou séries no currículo, inclusive Simplesmente Martha, em que interpreta a Martha do título, O Grupo Baader-Meinhoff, em que faz Ulrick Meinhoff, e A Vida dos Outros.) Os dois têm uma filhinha, Maria (Fanny Altenburger), aí de uns 10, 12 anos.
Moram numa casa bela, confortável. O casamento de Marian e Anna, no entanto, não parece feliz, tranquilo. Há uma eterna tensão entre os dois. Fica implícito que Anna gostaria de manter sua carreira, interrompida para que ela cuidasse da filha. Além disso, Anna suspeita que Marian a traia – e o Marian que o filme nos mostra é de fato um galinha, um comedor. Dá em cima até da empregada da casa, uma loura belíssima, Britta (Anna Unterberger).
Marian – pelo retrato que o filme do diretor Oskar Roehler compõe – não era um nazista, ou simpatizante do nazismo. Já Anna era antinazista – e veremos depois que sua avó materna era judia. Anna tinha, como Goebbels dirá, um quarto de sangue judeu.
Anna lê o roteiro do filme para o qual o marido foi convidado antes mesmo dele. Marian pergunta se é ruim, e ela responde que é péssimo, horroroso.
Marian tenta de fato recusar o papel do judeu sujo – mas acaba aceitando. Em parte, porque Goebbels força bastante a barra, entre lisonjas, chantagens e ameaças abertas. Mas em parte – é o que o diretor Roehler nos mostra – também porque é um homem fraco, vaidoso, ambicioso. Acha que pode ter uma boa atuação, e é uma oportunidade para brilhar em um filme que o ministro de Propaganda de Hitler está empenhado em produzir, e portanto está fadado a ser um grande sucesso.
Ferdinand Marian – às vezes o filme indica isso – sonha com Hollywood.
O filme mostra bem o asfixiante clima de opressão dos regimes totalitários
A atmosfera asfixiante do regime totalitário paira ao longo de toda a narrativa. E o diretor e os roteiristas conseguiram, com imenso talento, passar aquele clima de opressão, de claustrofobia que há nos regimes totalitários. Mesmo quando se está ao ar livre, fica a sensação de que as paredes, os postes têm ouvidos, de que pode haver algum agente do governo, um informante, um alcaguete, escutando o que você fala, imaginando o que você pensa – e o que você fala e pensa pode levar você para a prisão, o campo de concentração, o gulag.
Nesse ponto, o filme tem grande semelhança com outra obra alemã recente, A Vida dos Outros, por coincidência estrelado pela mesma bela, ótima Martina Gedeck. A Vida dos Outros mostra a atmosfera asfixiante da Alemanha Oriental nos anos da ditadura comunista – e a atmosfera é a mesma que se mostra aqui.
Maria, a filhinha de Marian e Anna, chega em casa feliz porque tirou nota alta na escola com um texto que escreveu. Ela lê o texto para os atônitos pais: é um punhado de frases racistas contra os judeus.
No dia seguinte à visita inicial de Goebbels ao teatro em que Marian e Deutscher ensaiavam Othelo, decreta-se que nenhum judeu poderá voltar a atuar em um teatro alemão, e Deutscher, judeu, vira um pária. Anna irá acolhê-lo na edícula atrás de sua casa, como jardinheiro, mas os passos do ator serão vigiados pela bela empregada Britta, que namora um oficial nazista.
O casal Marian e Anna é convidado para uma festa na casa de Goebbels (à direita, na foto), e Anna vai como quem dá-se ao carrasco, para usar a imagem inigualável criada por Chico Buarque; vai para satisfazer o marido, porque sua ausência marcaria pontos contra o marido. Mas o clima é tão absolutamente opressivo, pesado, nauseante, que Anna não aguenta ficar por mais que uns breves – intermináveis – instantes.
Quem é Shakespeare comparado a Joseph Goebbles?, esbraveja Goebbels
Todos os atores têm atuações irrepreensíveis. Os dois protagonistas, Tobias Moretti como Ferdinand Marian e Martina Gedeck como sua mulher Anna, estão fantásticos. Mas quem acaba aparecendo mais é Moritz Bleibtreu, esse ator que parece tão presente nos filmes alemães das últimas décadas quanto Ricardo Darín nos argentinos, ou Selton Mello e Wagner Moura nos brasileiros.
Moritz Bleibtreu é o único ator do elenco que exagera, overact – porque seu papel permite. O Joseph Goebbles que ele faz é quase uma caricatura – gestos largos, voz quase sempre em tom muito alto, a expressão entre o demoníaco e o sádico, uma empáfia a toda prova, uma imensa alegria de ouvir o som de sua própria voz.
Num momento em que Marian ainda tenta recusar o papel do judeu sujo que Goebbels lhe impõe, o ator tenta argumentar que não ficaria bem naquele personagem, que ele em geral interpreta personagens um tanto galantes, bon-vivants, em filmes alegres. Goebbels contra-argumenta: – “Mas você estava ensaiando para fazer Iago; Iago era um bon-vivant?”. E Marian retruca: “Mas aquilo é Shakespeare, senhor ministro!”
E então Goebbels vocifera: – “E eu sou Joseph Goebbels!”
O diretor do nojento filme anti-semita prosseguiu carreira após a guerra
Jud Süß, o nojento filme propaganda em que Marian acabaria atuando, foi dirigido por um dos maiores nomes do cinema alemão da época, Veit Harlan (interpretado por Justus von Dohnányi). Depois do fim da Guerra, com a derrota do nazismo, Harlan foi levado à Justiça, e argumentou que não era nazista, que fez o filme por imposição de Goebbels. Acabou tendo uma condenação leve, e pôde continuar fazendo filmes na Alemanha pós-nazismo. Fez filmes até morrer, em 1964.
Harlan era casado com uma atriz, Kristina Söderbaum (interpretada por Paula Kalenberg), que também trabalhou em Jud Süß, no principal papel feminino. Depois do fim do nazismo, Kristina Söderbaum testemunhou que Marian havia contado para ela aquele diálogo entre o ator e Goebbels (na foto abaixo).
Uma seqüência terrível, apavorante, que mostra como se instilava o ódio aos judeus
Bem mais para o fim da narrativa deste filme de 2010, o diretor Oskar Roehler sobe uma oitava na sua repulsa a tudo aquilo que mostra, assim como o Goebbels do ator Moritz Bleibtreu fazia com sua voz de dono da verdade. É uma seqüência impressionante, apavorante, antológica.
Jud Süß está sendo exibido para jovens soldados nazistas em uma grande tenda montada num campo na Polônia, num lugar em que está se construindo o que viria a ser o campo de concentração de Auschwitz. Marian está no meio da audiência, aquela soldadesca de garotos mal saídos da adolescência. Goebbels exigia que Marian, assim como outros atores do filme, participassem das exibições do filme.
É uma das muitas sequências em que o filme de 2010 mostra trechos do filme de 1940 para o espectador. Não o verdadeiro filme de 1940, mas uma refilmagem do filme original com os atores do filme de 2010. No filme propaganda anti-semita, a multidão pede a morte do judeu. Os jovens soldados – garotos pouco mais velhos que Maria, a filha de Marian e Anna –, que cresceram bombardeados pela máquina de propaganda nazista, passam a pedir, em coro, a morte do judeu.
É chocante, brutal – bem feitíssimo, inesquecível.
Tudo, em Jud Süss: Ascensão e Queda, é bem feitíssimo.
Uma característica especialmente forte, fascinante, é a cor. O diretor de fotografia Carl-Friedrich Koschn fez um uso de lentes e efeitos que tornam quase todo o filme numa tonalidade que se aproxima do cinza, do preto-e-branco. As cores ficam opacas, pastéis. Às vezes o vermelho da bandeira nazista é a única cor forte – como se ele extinguisse todas as demais cores.
Como se aquela realidade que o filme retrata não conseguisse ter cor, a não ser o vermelho das bandeiras, das braçadeiras nazistas.
Outros filmes mais ou menos recentes trataram também da obra de propaganda nazista
O filme estreou no Festival de Berlim de 2010. Seu título original é Jud Süss: Film ohne Gewissen, o que, segundo informa a Wikipedia, significa Jud Süss: Filme Sem Consciência. Em língua inglesa, ganhou o título de Jud Süss: Rise and Fall, e é com esse título em inglês que entrou na programação do Max, o canal da Net que em São Paulo é o 79, e tem se especializado – maravilha! – em exibir filmes europeus e asiáticos recentes. Aparentemente, o filme não foi lançado no circuito comercial brasileiro, nem em DVD – o que é uma lástima absoluta. Tomei a liberdade de usar aqui a idéia do título em inglês, Rise and Fall, Ascensão e Queda.
Não é o único filme mais ou menos recente a respeito do filme feito por encomenda de Goebbels em 1940. Em 2001, Horst Konigstein fez um documentário intitulado Jud Süss—Ein Film als Verbrechen? (Jud Süss – Um Filme como um Crime?) Outro documentário, feito em 2008 por Felix Moeller, Harlan: In the Shadow of Jew Süss (Harlan: À Sombra de Judeu Süss), trata das motivações do diretor do filme nazista e do que aconteceu com ele depois da guerra.
Jud Süss: Ascensão e Queda se baseia, em parte, na biografia do ator Ferdinand Marian escrita por Friedrich Knilli. Mas, a se considerarem corretas as informações do longo verbete da Wikipedia sobre o filme nazista, os roteiristas deste filme aqui tomaram algumas liberdades, especialmente relacionadas ao personagem Anna Marian, a mulher do ator. Ela seria um tanto fictícia, uma personagem que reúne e resume características das pessoas da vida real. Eu, particularmente, acho isso válido – se o personagem expressa o sentido correto das pessoas históricas, tudo bem. Se a realidade factual é mais complexa, difícil de se exprimir dramaticamente, tudo bem criar o que em inglês se chama de composite – um personagem composto de características de mais de uma pessoa real.
Segundo a Wikipedia (e não há por que duvidar desse verbete, que se apóia em vasta bibliografia), na vida real Ferdinand Marian teve um primeiro casamento com uma judia, e desse casamento teve uma filha. Depois casou-se novamente com uma mulher que havia sido casada com um judeu, e tinha tido um filho com ele. Assim, Marian teve uma filha e um afilhado que eram meio judeus.
A simplificação dessa realidade no casamento de Marian com Ann, com uma filha que era neta de uma judia, me parece válida, para que funcione melhor na narrativa de uma história por si só extremamente complexa. (Na foto, o Ferdinand Marian do filme de agora, caracterizado como o judeu do filme nazista.)
Ainda bem que realizadores alemães estão revolvendo essas duras feridas do passado
A anotação já está imensa, e ninguém lê na internet mais de 140 toques, mas ainda gostaria de registrar que este Jud Süss – Film ohne Gewissen é mais um a confirmar que o cinema alemão tem, nos últimos anos, se debruçado sobre o passado do país, sobre as duas grandes chagas que se abateram sobre a Alemanha ao longo do século XX, primeiro o nazismo e depois o comunismo, que subjugou metade do país. É mais um filme de grande qualidade que revolve as duras feridas desse passado trágico. E esse movimento é extremamente bem-vindo. Ainda bem que os realizadores alemães não permitem que o país e o mundo se esqueçam daquelas tragédias.
É preciso lembrar delas sempre – para tentar evitar que se repitam.
Anotação em fevereiro de 2012
Jud Süss: Ascensão e Queda/Jud Süss – Film ohne Gewissen
De Oskar Roehler, Alemanha-Áustria, 2010
Com Tobias Moretti (Ferdinand Marian), Martina Gedeck (Anna Marian), Moritz Bleibtreu (Joseph Goebbels), Justus von Dohnányi (Veit Harlan), Armin Rohde (Heinrich George), Anna Unterberger (Britta), Heribert Sasse (Deutscher), Fanny Altenburger (Maria Marian), Ralf Bauer (Fritz Hippler), Martin Feifel (Knauf), Erika Marozsán (Vlasta), Paula Kalenberg (Kristina Söderbaum), Milan Peschel (Werner Krauss), Lena Reichmuth (Magda Goebbels), Gudrun Landgrebe (senhora Frowein)
Roteiro Klaus Richter e Michael Esser
Baseado no livro de Friedrich Knilli
Fotografia Carl-Friedrich Koschn
Música Martin Todsharow
Produção Novotny & Novotny Filmproduktion, Clasart Film, Tele München Fernseh Produktionsgesellschaft (TMG), Tara Film.
Cor, 114 min
***1/2
Me interessei muito pelo filme, ótima resenha.
Vou procurá-lo para ver.
Olá, gostaria muito de saber como você teve acesso a esse filme, sou historiador e me interessei muito, mas estou tendo dificuldades para encontrar o filme.
Agradeço.
Caro Daniel,
Vi o filme “Jud Süss: Ascensão e Queda” no Max, o canal que na Net em São Paulo é o número 79. Foi em fevereiro do ano passado. Infelizmente não sei dizer se ele chegou a ser lançado em DVD. Talvez você possa encontrá-lo na internet, mas eu não costumo baixar filmes no computador – prefiro ver no DVD ou na TV a cabo.
Sinto muito não poder ajudar você.
Um abraço, e obrigado por enviar o comentário.
Sérgio
Procurei este filme em DVD ou Blu-Ray, mas não foi lançado no Brasil e sabe-se lá se vai ser.
O filme é interessante, em primeiro lugar, como uma interpretação artística de eventos reais que aconteceram com o ator Ferdinand Marian. É um bom filme. E bons atores, especialmente Moritz Bleibtreu(eu amo ele no filme “Stereo” http://assistirfilmes.co/1265-stereo-2014.html )