O Estranho Que Nós Amamos / The Beguiled

1.0 out of 5.0 stars

Desde sempre, desde seu primeiro longa como diretora, As Virgens Suicidas (1999), Sofia Coppola caiu nas graças dos críticos e dos jurados dos festivais de cinema mundo afora. Já recebeu 58 prêmios, inclusive um Oscar pelo roteiro original de Encontros e Desencontros (2003), fora outras 79 indicações.

Por este The Beguiled, de 2017, seu sétimo longa-metragem como diretora, ganhou o prêmio de melhor direção no Festival de Cannes.

Além de queridinha da crítica e dos festivais, a moça é corajosa. The Beguiled, o livro de Thomas Cullinan (1919–1995), lançado em 1966, já havia sido filmado em 1971 pelo lendário Don Siegel, com Clint Eastwood no papel principal.

Pois a moça ousou filmar de novo a mesma história. E deu certo, como se vê pelo prêmio em Cannes, um dos quatro que o filme conquistou, fora 29 outras indicações. E também pelo resultado da bilheteria: o filme rendeu US$ 27 milhões. Pouco, em termos de Hollywood, mas bastante para um drama para adultos, sem super-heróis, e quase três vezes o orçamento de cerca de US$ 10 milhões.

Não vi a primeira versão, a de 1971. Nem saberia explicar por que deixei de ver na época um filme de Don Siegel com Clint Eastwood, mas aconteceu. Não saberei, portanto, fazer a inevitável comparação entre as duas versões que seguramente todos os que viram a primeira fizeram. Mas devo dizer que, mesmo sem ter visto o filme original, sabia, desde sempre, do que se tratava: Clint interpretava um soldado da União que, ferido durante a Guerra Civil Americana (1861–1865), vai parar numa escola de moças na zona rural de algum dos Estados sulistas, confederados, escravagistas.

Um ianque no meio de confederadas. Inimigos, portanto. Sim, mas também um homem jovem, belo, no meio de um bando de mulheres.

Uma bela idéia que já rendeu bons filmes

Uma bela idéia, uma bela trama. Uma situação que se abre para o exame de vários aspectos do comportamento humano.

A convivência – de início forçada – entre inimigos, entre grupos que estão em algum tipo de guerra uns contra outros, e, neste caso aqui, guerra mesmo, violenta, feroz, sanguinária, e entre compatriotas, patrícios.

Jean Renoir fez uma obra-prima a partir dessa situação: em A Grande Ilusão, de 1937, apenas dois anos antes do início da Segunda Guerra Mundial, convivem, num campo de prisioneiros alemão durante a Primeira Guerra, franceses e alemães.

Em Feliz Natal (2005), do também francês Christian Carion – baseado num episódio verdadeiro, acontecido na Primeira Guerra –, soldados dos dois lados, alemães de um, ingleses, escoceses e franceses de outro, promovem, por decisão deles próprios, sem autorização alguma de seus comandantes, uma trégua na véspera do Natal, e saem de suas trincheiras para confraternizar.

Em Morango e Chocolate (1994), da dupla cubana Tomaz Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabío, surge uma amizade tão profunda quanto improvável entre dois homens diferentes em tudo: um rapaz universitário, comunista, absolutamente leal ao Partido e ao governo, e um sujeito que é a essência de tudo o que o regime condena: homossexual assumidérrimo, defensor arraigado do direito básico de não seguir a cartilha imposta pelos donos do poder, do partido único, crítico inabalável do governo de Fidel, leitor e admirador de escritores estrangeiros que não seguem o modelo traçado pelo comunismo cubano.

Em Acorrentados/The Defiant Ones (1958), de Stanley Kramer, dois prisioneiros acorrentados um ao outro aproveitam um acidente no ônibus da polícia que os transportava e fogem. Um deles é negro, e o outro é um branco racista. Têm desprezo, ódio um pelo outro, mas dependem da união de esforços para tentar escapar.

Em Inferno no Pacífico (1968), do inglês John Boorman, um piloto americano e um capitão da Marinha japonesa se vêem juntos numa ilha desabitada do Pacífico, e são obrigados a unir esforços para tentar sobreviver. A idéia era tão forte, tão poderosa, que seria utilizada em 1985 em um filme de ficção científica, Inimigo Meu, do alemão Wolfgang Petersen, em que um terráqueo e um alienígena se encontram em um planeta perigoso e precisam juntar forças se quiserem sobreviver.

Esses são apenas alguns poucos exemplos de belos filmes feitos a partir dessa idéia básica de inimigos, ou pessoas em tudo díspares, que se encontram, são forçados a conviver – e têm a oportunidade de, quem sabe pela primeira vez na vida, conviver com os diferentes, aprender com eles, enxergar o mundo de uma outra forma. Tirar fora os antolhos, sair de dentro da caixinha, da prisão em que sua consciência se encontra.

Um título que tem diferentes significados

No The Beguiled de 1971, o cabo do exército do Norte John McBurney interpretado por Clint Eastwood se via entre nove mulheres no estado sulista do Mississipi. A dona da escola, Martha, era interpretada pela grande Geraldine Page; sua assistente, Edwina, por Elizabeth Hartman. Os nomes das demais atrizes, que interpretam as garotas da escola, não me dizem nada.

Na refilmagem de 2017, o cabo John McBurney interpretado por Colin Farrell cai no meio de sete mulheres do estado sulista de Virginia. Martha vem na pele de uma atriz grande como era Geraldine Page, essa maravilhosa Nicole Kidman. O papel de Edwina coube a Kirsten Dunst, essa moça que Sofia Coppola adora dirigir. Entre as atrizes que interpretam as cinco alunas há uma bastante conhecida, de beleza estonteante, Elle Fanning, que faz Alicia, a mais velha delas. As demais eu não conhecia.

Em 1971 a ação se passava no Mississipi, em 2017 se passa na Virginia. Com um detalhe interessante: os dois filmes foram rodados na Louisiana.

Outros detalhes interessantes: tanto Clint Eastwood quanto Colin Farrell nasceram num 31 de maio – só que com 46 anos de diferença. Clint é de 1930, Colin Farrell, de 1976. O primeiro estava com 41 anos quando interpretou o cabo John McBurney; o segundo, com 39.

Duas coisinhas sobre os títulos.

O original, tanto do romance de Thomas Cullinan quanto dos dois filmes, The Beguiled, é o tipo do título que pode ser interpretado de várias maneiras. O tal do aberto a várias leituras. O verbo beguile tanto significa divertir, distrair, quanto enganar e quanto seduzir.

Assim, o adjetivo beguiled pode tanto significar O Enganado quanto O Seduzido. Mais ainda: como os adjetivos em inglês não têm nem gênero nem número, podem também significar As Enganadas – ou As Seduzidas.

Os distribuidores franceses optaram por Les Proies – as presas. Não no sentido de aprisionadas, mas de tomadas, saqueadas, dominadas.

Na Espanha, os filmes se chamaram La Seduction. Em países de língua espanhola na América latina, El Seductor.

Isso é que é obra aberta.

Os distribuidores portugueses e brasileiros, que tantas vezes já fizeram tantas grotescas, absurdas asneiras tipo Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, O Poderoso Chefão, Depois Daquele Beijo, Os Brutos Também Amam… desta vez, na minha opinião, acertaram em cheio, fizeram um golaço. O Estranho Que Nós Amamos é uma beleza de título.

E foi muito inteligente que o filme de 2017 tivesse no Brasil e em Portugal exatamente o mesmo título daquele primeiro de 1971.

Um monte de mulheres excitadíssimas

Há menções, no filme de Sofia Coppola, à questão da convivência entre inimigos, gente que estava em campos opostos. Martha, a dona da escola, fala algumas frases sobre isso. “Parece que o inimigo não é aquilo que achávamos que era”, ela diz, por exemplo, para suas alunas – uma belíssima frase.

Em sentido contrário, ela diz para o cabo do Exército inimigo que, por uma questão humanitária, seu grupo acolhe: – “Você é o visitante menos bem-vindo que poderia haver, e nós não nos propomos a entretê-lo”.

Sim, há menções a algo um pouco diferente do que um monte de mulheres que ficam excitadíssimas com a presença de um homem, no filme de Sofia Coppola. Mas o filme, basicamente, a imensa maior parte do tempo, é sobre um monte de mulheres que ficam excitadíssimas com a presença de um homem – e doidas para chamar a atenção dele, e doidas para dar para ele.

Na minha opinião, Sofia Coppola reduziu a história de The Beguiled a um filme bobo sobre tesão e vaidade femininas.

No finalzinho – é verdade, tenho que admitir – há, sim, uma referência a outros temas que não tesão e vaidade femininas.

Há uma sugestão de coisa dark, gótica, uma maldade atávica, algo que muitos filmes americanos associam ao Sul Profundo – talvez porque associem o Sul Profundo a algo que tem a ver com vudu, coisas africanas, primitivas, horrorosas.

No livro e no filme original parece que há muitas menções à escravidão, aos escravos, aos negros. Nada mais justo, até porque era disso que tratava a Guerra Civil, era por isso que se travava a Guerra Civil – o fim da escravidão, decretado pela União, pelo Norte, contra o qual se rebelaram os estados sulistas cuja economia dependia do escravagismo.

Há uma personagem negra no livro e no filme de 1971, Hallie, uma escrava que permanecia na grande mansão sulista transformada em escola de garotas por Martha. Sofia Coppola, autora do roteiro de seu filme, extirpou essa personagem. Em entrevistas, explicou que a escravidão era um tópico tão importante que ela não gostaria de falar dele de modo suave; preferiria focar naquelas mulheres que estavam tão distanciadas do mundo.

Nada contra o filme preferir passar ao largo do tema escravidão. Minha questão é que o filme passa ao largo de todas as questões – menos o tesão e a vaidade femininas. E quando, no final, trata de outra questão, o faz de tal modo que fica parecendo que está dizendo que as mulheres do Sul sabem ser bruxas que aprenderam maldades com os escravos.

Eu definitivamente não tenho simpatia por Sofia Coppola.

Digo isso para deixar bem claro que o filme que deu a ela o prêmio de melhor direção em Cannes pode ser absolutamente genial – eu não gostei dele é porque, entre outras coisas, definitivamente não tenho simpatia pela moça.

No site que usa o nome do grande crítico Roger Ebert, deram 3.5 estrelas em 4 ao filme. E o texto de Sheila O’Malley termina assim:

“Não se pode escrever uma tese a respeito de que The Beguiled trata. Não é esse tipo de filme. Mas é o tipo de filme que fica na sua cabeça, como os melhores contos de fada.”

Legal. Bonito. Eu, bem diferentemente, gosto de filmes que dizem sobre o que estão falando. E gosto de filmes que falem seriamente sobre coisas sérias.

Anotação em maio de 2020

O Estranho Que Nós Amamos/The Beguiled

De Sofia Coppola, EUA, 2017

Com Colin Farrell (cabo McBurney), Nicole Kidman (Miss Martha), Kirsten Dunst (Edwina), Elle Fanning (Alicia)

e Oona Laurence (Amy), Angourie Rice (Jane), Addison Riecke (Marie), Emma Howard (Emily)

Roteiro Sofia Coppola

Baseado no romance de Thomas Cullinan

Fotografia Phillippe Le Sourd

Música Phoenix, baseado em “Magnificat”, de Monteverdi

Montagem Sarah Flack

Casting Courtney Bright e Nicole Daniels

Desenho de produção Anne Ross

Figurinos Stacey Battat

Produção Universal, Focus Features, American Zoetrope

FR Productions.

Cor, 93 min (1h33)

Disponível na Netflix em maio de 2020.

*

Título na França: Les Proies. Em Portugal: O Estranho Que Nós Amamos. Na Espanha: La Seducción.

 

6 Comentários para “O Estranho Que Nós Amamos / The Beguiled”

  1. Eu por acaso vi o filme de 1971 embora não me lembre onde o vi, talvez na TV.
    Lembro-me pouco do filme embora me recorde da ideia geral – um homem num covil de mulheres.
    Não fiquei com uma boa recordação dele, ao contrário de outros filmes com o Clint Eastwood já antigos como por exemplo The Good, the Bad and the Ugly.
    A versão da senhora Sofia não vou ver porque não suporto o que ela faz.
    Vi The Virgin Suicides e Lost in Translation e parei. Chegou. Ainda tentei ver Marie Antoinette mas não passei dos 4 ou 5 minutos – apanhei um susto com a música!

  2. Vi em DVD, e muitas cenas eram tão escuras que eu não conseguia nem distinguir os rostos dos atores.

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