Roman J. Israel / Roman J. Israel, Esq.

Nota: ★★☆☆

O grande Denzel Washington recebeu a sua oitava indicação ao Oscar por seu desempenho como o personagem título deste filme de 2017, escrito e dirigido por Dan Gilroy. Não levou o que seria seu terceiro Oscar, mas isso não importa. É de fato uma atuação excepcional desse ator igualmente excepcional.

E a verdade é que Roman J. Israel é um personagem que permite mesmo uma grande interpretação. É um desafio – mas um daqueles desafios que todo bom ator daria tudo para aceitar. O típico papel para o ator brilhar, para concorrer ao Oscar, como por exemplo o autista feito por Dustin Hoffman em Rain Man (1998) ou o oficial cego de Al Pacino na refilmagem americana de Perfume de Mulher (1992). O papel que exige do ator um tour de force, uma energia gigantesca.

Roman J. Israel é descrito na sinopse distribuída pela Sony Pictures como “um advogado de defesa determinado, idealista”. Essa descrição é tão tímida quanto definir um elefante furioso dentro de um loja de louças finas como sendo “um animal pouco manso de proporções um tanto avantajadas em um espaço contendo objetos levemente frágeis”

Roman J. Israel é maior que um elefante – é um dinossauro, um furioso tiranossauro rex, atacando tudo e todos na área jurídica da gigantesca e conturbada Los Angeles dos dias atuais. É um sujeito tão absolutamente revolucionário, tão anti-sistema, anti-establishment, anti-tudo, que provavelmente Malcolm X, o líder da Organização para a Unidade Afro-Americana dos turbulentíssimos anos 60, se topasse com ele hoje, o aconselharia a moderar-se um pouquinho.

A menção aos turbulentíssimos anos 60 e a Malcolm X (que aliás Denzel Washington interpretou no filme de 1992 dirigido por Spike Só o Negro é Belo Lee) não é nada gratuita. Roman J. Israel é apresentado aos espectadores como um remanescente daquela década que começou com as lutas pelos direitos civis, pela igualdade entre brancos e negros, conduzidas com a serenidade e o apelo à não-violência do reverendo Martin Luther King e terminou com a radicalização crescente de Malcom X, dos Panteras Negras e de grupos radicais armados contra o establishment.

No seu apartamento amplo mas em prédio decadente, em área conturbada, mal iluminado, em que ouve música em antigo toca-discos, Roman tem uma série de quadros lembrando as lutas dos anos 60 – entre eles um grande retrato da ativista Angela Davis.

Roman num tribunal é o dinossauro entre cristais

Durante 26 anos, Roman conduziu sua imensa energia na redação de textos legais – súmulas, moções, petições –, dentro das paredes do escritório de William Henry Jackson. Dotado de memória prodigiosa, sabia recitar de cor os principais códigos legais da Califórnia, assim como as fichas das dezenas e dezenas de clientes do escritório em que trabalhavam apenas dois advogados, Jackson e ele mesmo. Os clientes eram em geral negros pobres, que mal podiam pagar os honorários advocatícios. Roman ficava ali na sombra, enquanto William Henry Jackson brilhava nos tribunais.

A ação do filme começa depois que essa rotina de 26 anos – Roman no escritório redigindo, Jackson nos tribunais atuando – foi rompida repentinamente, quando o lendário, respeitado advogado e professor universitário, um remanescente da luta pelos direitos civis nos anos 60, sofre um enfarte e é internado inconsciente.

Roman J. Israel sai do casulo e vai ao tribunal cuidar dos casos que Jackson teria que tratar.

É o tiranossauro rex entrando na loja de cristais.

Ao guarda (branco) que obriga que todos deixem seus pertences – inclusive o cinto – na máquina de scanner, tenta argumentar que não pode permitir que seu iPod com 8 mil músicas seja colocado ali. À guarda (negra) que, no corredor, repete o mantra “Celulares desligados”, pergunta: – “Irmã, onde é o tribunal dos brancos?” A “irmã” murmura, quando ele se afasta: – “Idiota!”

Mas isso não é nada.

À promotora pública (branca) do caso do rapaz negro, Langston Bailey (Niles Fitch), que estranha a ausência de William Jackson, ele diz: – “O senhor Jackson sofreu um enfarte hoje cedo. Sou Roman J. Israel, sócio dele.” E, quando a promotora diz que não sabia que o advogado tinha um sócio, ele solta: – “Eu não tenho a paciência do senhor Jackson para o massacre que acontece aqui.”

A promotora diz que está oferecendo um acordo – uma sentença de prisão de no mínimo 5 anos. Se o caso fosse a julgamento, o rapaz poderia pegar até 15 anos. Roman: – “Para um rapaz de 17 anos que roubou? Por que não acabamos com isso e damos um tiro nele?

A promotora lembra que Bailey foi pego usando a camiseta de uma conhecida gangue. Roman, apontando para a bandeira dos United States of America num pequenino broche da promotora: – “Como esse seu broche?”

A promotora consegue resistir a essa agressão, e diz: – “Cinco anos. O Povo não aceita menos que isso.”

Os promotores, no sistema jurídico dos Estados Unidos, dizem representar o povo. Aquele processo é o Povo versus Langston Bailey.

Roman, o tiranossauro rex: – “O Povo? Que Povo? Não existe o Povo. Só você e essa oferta ridícula para subir na carreira. Admita.”

A promotora, demonstrando uma paciência de que nem Jó seria capaz: – “Faça a oferta a seu cliente”.

Daí a pouco, em outra sala do tribunal, defendendo um outro acusado, William Carlos Ramirez (um latino, chicano), Roman insiste em que seu cliente estava já detido, proibido de ir ao banheiro, e sem ter sido informado de seus direitos – ao contrário manda a lei –, quando admitiu ser traficante de drogas, e portanto seu testemunho não tinha valor legal.

A objeção não é aceita pelo juiz (branco), mas Roman prossegue: – “Quando um policial retém uma pessoa, ela está sendo detida. O que ele faria? Xixi nas calças?”

O juiz: – “Discuta isso no julgamento.” (Aquela era uma audiência preliminar, antes de se decidir se o caso iria para julgamento com tribunal de júri.)

Roman: – “Gostaria de discutir agora. Se guardas armados, neste tribunal, detivessem o senhor, e não o deixassem usar o banheiro, o senhor estaria detido. E isso deveria valer para os dois.”

O juiz o adverte: se continuar argumentando, o advogado será preso por desacato.

Roman prossegue argumentando. – “Com todo respeito, o senhor está me pedindo para acatar uma sentença errada.”

O juiz o autua por desacato.

Uma petição para excluir Roman da raça humana

Essas sequências com o tiranossauro rex na loja de louças, perdão, de Roman J. Israel no tribunal, acontecem bem no início do filme – mas a ação começa três semanas depois desse dia em que William Jackson sofre o enfarte e Roman vai substituí-lo nas audiências já marcadas.

É o que chamo de narrativa-laço: começa como se fosse num lance importantíssimo de uma partida de futebol aos 43 minutos do segundo tempo, mostra aquele lance, e em seguida volta para o começo do jogo e vem vindo.

O lance importantíssimo, o que abre o filme, enlaçando o espectador, prendendo sua atenção, é bem rápido. A câmara focaliza a tela do computador em que uma petição está começando a ser escrita, enquanto ouvimos a voz de Denzel Washington-Roman J. Israel dizendo o que os caracteres vão rapidamente formando:

“À Suprema Corte da Lei Absoluta Universal, Divisão Los Angeles. Querelante: Roman J. Israel versus Réu: Roman J. Israel. Pedido: Excluir permanentemente Roman J. Israel da Ordem dos Advogados da Califórnia e da raça humana por ter sido um hipócrita e por ter se virado contra tudo o que defendia anteriormente.”

E prossegue: – “O caso: por 26 anos, o réu/querelante foi empregado na firma de William Henry Jackson…”

Então surge o letreiro: “3 semanas atrás” – e estamos no escritório de Jackson, a secretária recebendo a informação de que ele teve um ataque cardíaco e foi levado para o hospital. Roman terá que ir para as audiências marcadas para aquele dia.

Um filme bem intencionado – mas cheio de exageros

São sempre bem-vindos os filmes que tratam do sistema jurídico dos países, de seus problemas, suas mazelas. São sempre absolutamente bem-vindos os filmes que falam das mazelas de qualquer dos sistemas em que vivemos.

Embora seja uma arte jovem, em termos de História, o cinema tem já sólida tradição de falar das mazelas dos sistemas todos. Grandes filmes já foram feitos, por exemplo, para mostrar que os Estados que autorizam e permitem a pena de morte são tão assassinos quanto os criminosos à morte. A Sangue Frio (1967), que Richard Brooks realizou com base no livro impressionante de Truman Capote que reproduzia fielmente um bárbaro crime ocorrido numa fazenda no Kansas, é um maravilhoso exemplo disso. Claude Lelouch fez um impactante filme sobre o tema quando a pena de morte ainda não havia sido banida na França, A Vida, O Amor, A Morte (1969). O inglês Alan Parker fez um panfleto que é um filme extraordinário (ou um filme que é um panfleto extraordinário), A Vida de David Gale (2003). Os exemplos são muitos.

Há os bons filmes que falam da Justiça, do sistema judiciário como um todo. O cinema francês teve um diretor competente, talentoso – menos reconhecido do que deveria – que se dedicou inteiramente a filmar questões relativas ao sistema judiciário, André Cayatte, um ex-advogado. Sidney Lumet fez uma maravilha de filme discutindo (como Bob Dylan faria em algumas de suas canções) a própria existência do júri popular, em 12 Homens e Uma Sentença/12 Angry Men (1957). O canadense Norman Jewison foi fundo em Justiça para Todos/And Justice for All (1979). Luiz Sérgio Person teve a coragem de falar sobre um absurdo erro judiciário em plena ditadura militar, em O Caso dos Irmãos Naves (1967).

Roman J. Israel vem se juntar a esse gênero de obras – mas, infelizmente, não dá para dizer que se soma aos grandes filmes sobre o tema.

É, evidentemente, um filme bem intencionado. Dan Gilroy, o diretor e autor da história e do roteiro, nascido em 1959 ali mesmo no lugar em que se passa o filme, Los Angeles, a segunda maior metrópole do país mais rico do mundo, mais experiente como roteirista (12 títulos, inclusive o bom Tudo por Dinheiro, de 2005) que como diretor (3, por enquanto), quis obviamente fazer a defesa de uma Justiça mais justa, de um sistema judiciário que trate de forma igual criminosos de colarinho branco que roubam milhões (brancos, na maioria) e jovens  levados aos pequenos crimes por falta das condições básicas de vida (negros, principalmente).

É, obviamente, um filme que só tem boas intenções – as melhores possíveis. Uma Justiça mais justa.

Cheio de boas intenções, tão cheio de boas intenções quanto o cemitério, Dan Gilroy fez um roteiro que comete os mais diversos pecados. Que atenta contra as leis do bom cinema. É, para começo de conversa, uma história cheia de furos. Mas cheia, cheia de furos, de inverossimilhanças. Exemplo simples, óbvio, de furo: fala-se mais de uma vez que tudo o que acontece se dá em três semanas. É impossível – é coisa demais para acontecer em três semanas. O próprio Roman uma hora diz que Jackson está inconsciente faz “várias semanas”. Several weeks. Várias não podem ser apenas três.

Outro exemplo: todo o personagem interpretado por Colin Farrell, o super hiper big bem sucedidíssimo advogado George Pierce, dono de um escritório super hiper big com 60 advogados, é mais falso que uma moeda de 3 guaranis paraguaios furada duas vezes, do que um discurso de Lula ou Bolsonaro. Aquilo simplesmente não existe, não fica de pé – um jovem de nem 50 anos que construiu um império na advocacia patronal, corporativa, e ao mesmo tempo tem um lado humanista fantástico, fabuloso, sensacional.

E é tudo exagerado demais da conta. O lado jurássico do jeito de viver e de encarar a vida de Roman – um sujeito que não tem carro em Los Angeles, que veste sempre um mesmo terno, que cultiva os mesmos ideais dos anos 60 como se não tivesse havido meio século depois – é absolutamente exagerado. Da mesma forma com que fica tudo absolutamente exagerado quando, depois de levar uma surra de um assaltante drogado, ele pira, fica louco, passa para o outro lado, entrega-se entusiasticamente aos prazeres mundanos, à doce maravilha de ser um sujeito com muita grana demais da conta na mão.

A transformação de Roman do revolucionário absoluto para o hedonista absoluto é uma bobagem grande demais da conta – um exagero fora de propósito que derruba desgraçadamente as boas intenções do filme. A sequência em que ele leva justamente para o restaurante mais caro do planeta a moça séria, batalhadora, pé no chão, que trabalha como voluntária na defesa dos sem-coisa-alguma, resulta num ridículo vergonhoso.

Na verdade, todo o relacionamento entre Roman e essa moça, Maya (o papel da inglesa Carmen Ejogo, na foto acima), que seguramente o diretor e autor Dan Gilroy pretendia que fosse um dos pontos importantes, marcantes, do filme, acaba virando uma coisa esquisita, mal explicada – ou então apenas e tão somente a necessidade de se atender ao mandamento hollywoodiano de que todo filme deve ter um female interest, um personagem feminino que abra a possibilidade de um romance.

Hollywoodiano. Sim, é um filme hollywoodiano – um dos produtores é a Columbia Pictures, um dos grandes estúdios. Mas é interessante: o filme é uma co-produção Canadá-Emirados Árabes Unidos-EUA. Canadenses e árabes, além de americanos, meteram dinheiro neste libelo por uma Justiça melhor, mais justa.

A Justiça com toda certeza precisa mudar, melhorar, ser mais justa – nos Estados Unidos, no mundo inteiro. Mas o cinema seguramente não precisa de filmes tão bem intencionados mas tão mal construídos como este Roman J. Israel.

Anotação em novembro de 2019

Roman J. Israel/Roman J. Israel, Esq.

De Dan Gilroy, Canadá-Emirados Árabes Unidos-EUA, 2017

Com Denzel Washington (Roman J. Israel)

e Colin Farrell (George Pierce), Carmen Ejogo (Maya Alston), Lynda Gravatt (Vernita Wells), Amanda Warren (Lynn Jackson), Hugo Armstrong (Fritz Molinar), Sam Gilroy (Connor Novick), Tony Plana (Jessie Salinas), DeRon Horton (Derrell Ellerbee), Amari Cheatom (Carter Johnson), Niles Fitch (Langston Bailey), Vince Cefalu (segurança do Fórum), Tarina Pouncy (segurança do Fórum), Nazneen Contractor (Melina Nassour, assistente da promotoria), Jocelyn Ayanna (funionária do tribunal)

Argumento e roteiro Dan Gilroy

Fotografia Robert Elswit

Música James Newton Howard

Montagem John Gilroy

Casting Victoria Thomas

Produção BRON Studios, Columbia Pictures, Cross Creek Pictures, Culture China – Image Nation Abu Dhabi Fund.

Cor, 122 min (2h02)

**

4 Comentários para “Roman J. Israel / Roman J. Israel, Esq.”

  1. Eu não vi o filme, parece que se perdeu a meio do Atlântico.
    Só quero dizer que há um nome para aquilo a que o Sérgio chama narrativa-laço: In medias res.
    Creio que já o informei disso mas o Sérgio esqueceu-se por certo.
    Pode verificar aqui: https://pt.wikipedia.org/wiki/In_medias_res
    Tenho pena que o filme se tenha afogado na viagem.

  2. Comparar Bolsonaro ao melhor presidente que o Brasil já teve é vergonhoso tão quanto sua crítica.

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