(Disponível no Cine Antiqua do YouTube em 11/2022.)
As indicações são de que o ricaço Archer Coe (Robert Barrat, à direita na foto abaixo) se matou. Quando o mordomo Gamble (Arthur Hohl) bateu na porta de seu quarto para entregar a bandeja com o café da manhã, não houve resposta. A porta estava trancada por dentro. O mordomo olhou pelo buraco da fechadura – e Archer Coe estava sentado em sua poltrona, imóvel, um revólver na mão direita.
O sargento da Polícia Heath (Eugene Pallette) e o próprio promotor público John F.X. Markham (Robert McWade), que vão imediatamente à casa de Coe, não têm dúvidas de que foi suicídio. Até mesmo o dr. Doremus (Etienne Girardot), o médico legista que chega reclamando por ter tido seu café da manhã interrompido, vai logo declarando que foi suicídio.
Mas junto com o sargento e o promotor havia chegado ao local Philo Vance (o papel do astro William Powell), um arguto, sagaz detetive por diletantismo, muito conhecido do sargento e do promotor, respeitado por eles por sua fama de resolver os casos mais intricados.
Philo Vance não crê na hipótese de suicídio, e por um motivo simples: ainda na véspera, ele havia se encontrado com Archer Coe no Kennel Club de Long Island, e o ricaço estava interessadíssimo na competição em que um de seus cachorros concorreria com o de seu antigo rival, Sir Thomas MacDonald (Paul Cavanagh). Um sujeito tão interessado num concurso de cães não se mataria na noite do dia anterior ao da disputa.
Além do mais – ele repara no detalhe que havia passado despercebido pelo sargento e pelo promotor –, um homem que se prepara para dar um tiro na têmpora não faz isso no momento exato em que está retirando um dos sapatos, tendo já colocado o chinelo no outro pé.
E logo vão surgindo mais indícios de que houve mesmo um crime, e o assassino tentou forjar, até com admirável habilidade, um suicídio.
Um detetive amador famosérrimo nos anos 20 e 30
Este The Kennel Murder Case, caso de assassinato do canil, que ganhou no Brasil o título sem qualquer sentido de O Caso de Hilda Lake, é uma produção da Warner Bros. de 1933 – apenas seis anos depois que o cinema apreendeu a falar –, com direção de Michael Curtiz. Foi o quarto filme com o detetive nas horas vagas Philo Vance, e o último com o grande astro da época William Powell (1892-1984) no papel.
Depois dele, seriam feitos mais de dez outros filmes com Philo Vance, ao longo dos anos 30. Nos filmes imediatamente seguintes, William Powell foi substituído por Warren William, outro galã de Hollywood nos anos 30, que tinha um tipo físico até um tanto semelhante ao de Powell: os dois eram altos, magros, usavam um bigodinho muito na moda à época, e eram elegantes, ficavam perfeitamente à vontade em ternos de belo corte, com coletes caros, sapatos finos.
Bon-vivant, rico, elegante, estiloso – o que poderíamos chamar de dândi, almofadinha –, dono de uma inteligência viva, rápida, Philo Vance foi imensamente popular nos anos 1920 e 1930. Resolveu casos de crimes em 12 romances, mais de 15 filmes e dezenas de programas de rádio.
Creio que dá para dizer que Philo Vance foi uma espécie assim de versão nova-iorquina dos anos 1920 do inglês Sherlock Holmes. Como Holmes, é cerebral, lógico, parte de evidências, detalhes que enxerga mais que todos a seu redor para deduzir o que pode ter acontecido. Nesse sentido, também se assemelha ao belga Hercule Poirot – e, com a inglesa Miss Marple, divide essa característica de ser um detetive amador, por puro diletantismo, e não profissional.
E, em todos os sentidos, absolutamente todos os sentidos, o dândi nova-iorquino Philo Vance não tem nada a ver com os que vieram logo depois dele, e são do outro lado dos Estados Unidos, da Costa Oeste, Philip Marlowe, Sam Spade, os detetives hard-boiled, durões, que brigam demais, apanham demais, bebem demais.
É bom registrar os anos em que cada surgiu. Sherlock Holmes veio ao mundo em 1891. Hercule Poirot, em 1921. Philo Vance, em 1926. Miss Jane Marple e Sam Spade, em 1930. Philip Marlowe, 1939.
Philo Vance é uma criação de S.S. Van Dine – e S.S. Van Dine, por sua vez, é o pseudônimo que o então famoso crítico de arte Willard Huntington Wright (1888–1939) usou para esconder sua verdadeira identidade ao se dedicar a essa coisa considerada “menor” que é a literatura policial.
Nos livros, Van Dine era também um amigo de Vance, que acompanhava suas investigações e as relatava – da mesma maneira com que, segundo os sherlockólogos, o dr. John Watson fazia. (Reza a sherlockogia que Holmes e o dr. Watson de fato existiram. Os 56 contos e quatro romances que compõem o Cânone foram escritos pelo médico e entregues a seu amigo Arthur Conan Doyle, que os publicou como se tivesse sido ele o autor.)
Um detetive de quem eu jamais ouvira falar
Eu jamais havia ouvido falar em Philo Vance, S.S. Van Dine ou Willard Huntington Wright até ontem, quando, remexendo no Cine Antiqua do YouTube, dei com este O Caso de Hilda Lake/The Kennel Murder Case. Vi logo que era de 1933, com William Powell e Mary Astor, dirigido pelo húngaro Michael Curtiz (1886-1962), o grande realizador de Casablanca (1942), As Aventuras de Robin Hood (1938), Êxito Fugaz/Young Man With a Horn (1950) – e pronto, botei de imediato para vermos.
Sou apaixonado pelos filmes dos anos dourados de Hollywood, as décadas de 30 a 50, e também por romances policiais. Nunca ter ouvido falar em Philo Vance dá uma certa vergonha, é claro. Mas, como Mary sempre diz e repete, socraticamente, a gente não sabe nada, não conhece nada.
Verdade: a gente não sabe nada. Mas tem a oportunidade de ficar sabendo, de aprender. (Depois esquece tudo, mas isso é outra história.)
Vou falar aqui mais um pouquinho especificamente deste O Caso de Hilda Lake, e depois voltar ao tema Philo Vance. Vi que tem até um texto especial de Leonard Maltin, um artigo com o título de “Philo Vance Series”!
O que não faltava era gente que odiava a vítima
The Kennel Murder Case, quarto filme com o detetive amador Philo Vance, é baseado no livro homônimo que, por sua vez, foi o sexto dos 12 livros assinados por S.S. Van Dine com o personagem, lançado em 1933, exatamente o mesmo ano em que o filme ficou pronto e foi exibido nos Estados Unidos.
Os créditos iniciais especificam que o filme se baseia em obra de S.S. Van Dine, com roteiro de Robert N. Lee & Peter Milne, adaptação de Robert Presnell, ele também o produtor, e – em um caso bem raro no cinema de Hollywood – direção de diálogos Arthur G. Collins. (De fato, esse crédito de “dialogue director” é uma raridade nos filmes americanos – embora seja até padrão no cinema francês a referência específica ao autor dos diálogos.)
Nos créditos iniciais de The Kennel Murder Case, há outra raridade, algo bem pouco usual até hoje, e em especial naqueles anos 30: vemos os rostos dos atores principais, não em fotos, mas em tomadas, em close-up ou planos americanos. Achei muito interessante esse detalhe.
O filme abre no tal Canil de Long Island, onde está havendo uma série de competições de cães, de acordo com seu tipo ou raça. E estão ali no canil diversos dos personagens da história que virá a seguir. Philo Vance está lá com seu Capitão McTavish, um terrier escocês. Os ricaços Archer Coe e Sir Thomas MacDonald estão lá – assim como Hilda Lake, a bela sobrinha de Coe, interpretada por Mary Astor.
No dia seguinte ao das competições de cães, Hilda Lake vai visitar o tio – e chega à casa dele quando há um enxame de repórteres na porta e lá dentro estão o sargento Heath, o promotor Markham, Philo Vance, além de vários outros policiais e dos empregados – o mordomo Gamble, o secretário particular Raymond Wrede (Ralph Morgan), e Liang (James Lee), dublê de cozinheiro e consultor sobre arte chinesa antiga.
Hilda, evidentemente, fica chocada com a informação de que o tio está morto. Mas o espectador já a havia ouvido dizer para Sir Thomas, na véspera, no Canil, que ela odiava Archer Coe, que o desprezava. E, no quarto do tio morto, diante dos policiais, ela não tem receio de dizer que duvida que tenha sido suicídio. E, à pergunta feita com toda educação por seu velho conhecido Philo Vance – “A senhorita conhece alguém que teria motivo para matar seu tio? –, ela tem a coragem, a ousadia de responder: – “Sim. Eu, por exemplo.”
O promotor se assusta: – “Por que, senhorita Lake?” E ela: = “Porque ele não me deixava fazer nada que eu quisesse. Ele tornou minha vida um inferno, porque tinha a chave do cofre. E porque… porque ele tinha ciúme de qualquer homem que se aproximasse de mim. Eu tinha medo dele.”
O sargento Heath – uma figuraça, uma deliciosa interpretação do gordo Eugene Pallette – tira as algemas do bolso, pronto para prender a moça. O promotor faz um gesto para que ele retorne com as algemas para o bolso, enquanto a bela sobrinha ainda diz: – “Oh, as noites horríveis que passei aqui…“
Haveria outras pessoas que gostariam de ver Archer Coe morto?, pergunta o sempre educado Philo Vance. Hilda não tem dúvida: – “Quase todo mundo que chegava perto dele. Ele era um homem cruel.”
Uma maravilha de trama – e um monte de concidências
Uau!
Um assassinato disfarçado para parecer suicídio! E até que bem disfarçado: a porta do quarto do Coe estava trancada por dentro!
E um monte de suspeitos!
Sim, um monte de suspeitos. Poderia ser a própria sobrinha, a bela Hilda Lake. Poderia ser o irmão dele, Brisbane Coe. Poderia ser Sir Thomas MacDonald ou o secretário Raymond Wrede, os dois apaixonados por Hilda. Poderia ser o cozinheiro Liang, um apaixonado pela preciosa coleção de antiguidades chinesas compradas por Coe e que ele se mostrava disposto a vender para um museu italiano. Poderia ser o italiano Eduardo Grassi (o papel de Jack LaRue), que havia sido o intermediário na venda da coleção – que, na última hora, Coe havia decidido cancelar. Poderia ser Doris Delafield (Helen Vinson), a vistosa loura que havia sido amante de Coe, e agora havia se engraçado com o italiano Grassi.
Um morto, um bando de suspeitos. E depois surge mais um morto.
Sem dúvida, sem dúvida, uma ótima trama.
Há um belo momento de cinema, algo bem à frente do que era usual naquela primeira metade dos anos 30: lá pela metade da narrativa (são apenas 73 minutos de filme), Michael Curtiz nos apresenta assim uma galeria de suspeitos: close-up de cada um dos atores que fazem esses personagens citados logo aí acima.
O nome de Mary Astor, que faz Hilda Lake, a sobrinha do morto, aparece em segundo lugar nos créditos iniciais e nos cartazes do filme. A ordem em que aparecem os nomes dos atores nos filmes de Hollywood – gosto de realçar isso – sempre seguiu mais as razões mercadológicas do que as lógicas, se é que eu posso fazer esse quase trocadalho do carilho. Aparece primeiro o nome do ator mais conhecido, não o do que fica mais tempo na tela, que tem mais importância no filme, na trama. Por isso é que Mary Astor (1906-1987) aparece logo depois do de William Powell: aos 27 anos, já com 12 de carreira, iniciada ainda na época do cinema mudo, a moça era uma das grandes apostas da Warner Bros.
Um de seus grandes momentos seria em Fogo de Outono/Dodsworth (1936), ao lado do grande Walter Huston. E outro seria em Relíquia Macabra/The Maltese Falcon (1941), a estréia na direção do filho de Walter Huston, John – por coincidência, ou não, o filme em que o personagem central é um detetive em tudo o oposto deste Philo Vance aqui, o Sam Spade de Dashiell Hammett.
Como coincidência pouca é bobagem, William Powell, apenas um ano depois de interpretar Philo Vance em quatro filmes, iria personificar, em uma série de seis filmes, outro detetive, Nick Charles, criado por Dashiell Hammett!
Dois pontos que desafiam o código de censura
Há dois elementos no filme que chamam a atenção por, aparentemente, desafiar os rígidos mandamentos do Código Hays, o código de autocensura imposto aos estúdios de Hollywood exatamente naquela primeira metade dos anos 30. Foi a partir de 1934 que se exigiu com maior rigor o respeito ao código. Mas desde 1932 ele já estava em vigor, para que os filmes não ofendessem a pudicícia e o pundonor da tradicional família americana
Os dois elementos têm a ver não com a Hilda Lake de Mary Astor, que acabou dando seu nome ao filme no Brasil, sei lá por que raios de motivo dos distribuidores. Estão relacionados com Doris Delafield, o papel da loura texana Helen Vinson (1907-1999, à direita na foto abaixo), que esteve em 40 filmes entre 1932 e 1944.
O filme mostra – sem qualquer ênfase, é verdade – que Doris Delafield era amante de Archer Cole, teúda e manteúda por ele. Não há no Código Hays, que eu saiba, proibição expressa de mostrar uma amante teúda e manteúda por um homem – mas é tão grande a preocupação dos caras que escreveram as regras com a santidade do casamento que dá para imaginar perfeitamente que esse não era um tema a ser abordado.
E há um momento, bem no início do filme, ainda no canil que dá o nome original do filme, em que um fotógrafo se prepara para clicar a bela loura com o cão de sua propriedade que iria participar de um dos concursos ali. O fotógrafo se aproxima de Doris Delafield-Helen Vinson e levanta um pouquinho a saia dela, para mostrar – não a coxa, não sequer o joelho, mas um pedacinho a mais da perna, e diz: – “Aí! Está ótimo!” A loura pega a barra da própria saia e a recoloca na posição original, enquanto diz, com grande espirituosidade: – “Perdão, rapazes, mas essas aí não são troféus.”
Uau! Como foi possível que o escritório de censura tenha deixado passar essa blasfêmia, essa imensa sacanagem, esse incentivo ao sexo?
Agora, o rápido registro de três itens da página de Trivia do IMDb sobre The Kennel Murder Mystery:
* O ator Etienne Girardot apareceu como o médico legista Doremus em três filmes de histórias do detetive amador Philo Vance. Este aqui, o último dos quatro com William Powell no papel central, foi o primeiro dos três. Roberto McWade apareceu em dois filmes como o promotor Markham – este aqui foi o primeiro. E foi o quarto e último do ótimo Eugene Pallette como o sargento Heath.
* Este foi um dos muitos filmes dos grandes estúdios que, por falha do departamento legal ou alguma outra razão, deixou de ter renovados os seus direitos autorais, caindo em domínio público e, assim, sendo reproduzido em VHS e depois em DVD por empresas pequenas, sem qualquer compromisso com a qualidade da imagem e do som. Acrescento que a cópia que está agora disponível gratuitamente no Cine Antiqua do YouTube não tem lá uma ótima qualidade – mas dá perfeitamente para ser vista.
* The Kennel Murder Case é um dos mais de 700 filmes antigos da Warner Bros. que tiveram os direitos de exibição vendidos para cadeias e emissoras de TV nos Estados Unidos. Acabaria vindo a ser um dos filmes mais reprisados da TV americana, seis décadas depois de seu lançamento nos cinemas.
“Um filme topo da linha por qualquer padrão”
Eis o verbete do livro The Warner Bros. Story sobre o filme:
“Uma das séries de thrillers de maior sucesso do estúdio foi a de Philo Vance, e em The Kennel Murder Case o estúdio teve um vencedor. Menos notável pela trama mundana (um colecionador de chinoiserie é executado e Vance, com a ajuda entusiástica de um doberman, descobre quem foi) do que pelas habilidades do diretor Michael Curtiz em desfraldar a ação, era, estilisticamente, uma pequena pedra preciosa. William Powell retornou ao papel de Vance (ele havia atuado em três filmes para a Paramount em 1929 e 1930) com sua característica insouciance, e havia agradáveis atuações de Eugene Pallette como um sargento de polícia de raciocínio um tanto lento, e Mary Astor como a sobrinha do assassinado. (…) Baseado em The Return of Philo Vance, de S.S. Van Dine, foi adaptado por Robert Presnell e escrito para a tela por Robert N. Lee e Peter Milne. Presnell também supervisionou.”
Hum… “Baseado em The Return of Philo Vance”… Perdão, mas há aí um erro do livrão The Warner Bros. Story. Até porque não existe um livro de S.S. Van Dine com o título de The Return of Philo Vance – e existe o livro The Kennel Murder Case. Também gostaria de comentar que o verbete comete duas francesarias – as palavras chinoiserie e insouciance. Insouciance existe em inglês, é bem verdade – e o dicionário da Longman explica que significa “a cheerfull lack of care or worry”, uma alegre falta de cuidado ou preocupação. Mas é tão absolutamente francês quanto carregar a baguette junto do sovaco ou torcer o narizinho para cima quando um estrangeiro faz alguma pergunta na rua. Très chic!
Leonard Maltin deu 3.5 estrelas em 4 para The Kennel Murder Mystery: “O mistério definitivo de Philo Vance, sobre um aparente suicídio que Vance acredita ter sido na realidade assassinato, ligado à intriga entre rivais que competem num show de cachorros em Long Island. Direção e fotografia cheias de estilo e um ótimo elenco fazem deste filme um topo da linha por qualquer padrão.”
Pauline Kael escreveu o seguinte: “Um dos filmes agradáveis da série com o suave ator William Powell como o detetive Philo Vance criado por S.S. Van Dine. A trama inclui alguns alegres Scotties e um belo Doberman, assim como aquela figura sinistra, o connoisseur de objetos de arte do Oriente. (Nos anos 30, Ming e assassinato pareciam sempre andar juntos.) Mary Astor, em um estágio intermediário de sua carreira, tem um papel convencional que não combina muito com ela; no entanto, a maior parte dos outros atores está tão bem escolhida para seus papéis que o filme é uma espécie de demonstração de princípios de como se dirige uma companhia de repertório. O grupo inclui a quadril de cobra Helen Vinson, o malvado Jack La Rue, o tedioso Ralph Morgan e ainda Paul Cavanagh, Etienne Girardot, Robert Barrat, Eugene Pallette, Frank Conroy, Arthur Hohl, Henry O’Neill e Robert McWade. Dirigido por Michael Curtiz. Warners.”
Os filmes da série Philo Vance, por Leonard Maltin
Philo Vance parece levar os americanos à língua francesa. O artigo que Leonard Maltin, o autor dos guias de filmes mais vendidos do mundo naquele tempo em que se vendiam guias de filme, começa seu texto sobre os filmes com o Philo Vance chamando o detetive de “debonair”.
Debonair, diz o dicionário da Longman, em geral é usado para homens: cheerful, charmning and fashionably dressed. Alegre, charmoso, elegantemente vestido. Pode-se perfeitamente usar o adjetivo para Philo Vance, para o ator que o representou nos quatro primeiros filmes da série, William Powell. Para Cary Grant, para Hugh Grant. Jamais, por exemplo, para Mickey Rourke – uma vez Mickey Rourke disse que se ele se vestisse com os ternos mais elegantes de uma maïson tipo Cslvin Klein, Hermès ou Ralph Lauren, no momento seguinte os ternos estariam insoluvelmente amarfanhados, horríveis, tronchos. (Nunca me identifiquei tanto com um astro de cinema quanto com Mickey Rourke quando li essa declaração dele.)
A Wikipedia tem um longo, denso, excelente verbete sobre Philo Vance. https://en.wikipedia.org/wiki/Philo_Vance#Criticisms_of_Vance_and_the_novels Mas vou me concentrar no artigo de Leonard Maltin, já que ele é especificamente voltado para os filmes com o personagem.
Lá vai. Sem aspas, que é para me desobrigar de ser absolutamente literal. Mas o que está aí abaixo é de autoria de Leonard Maltin, em seu artigo Philo Vance Series – Article from Maltin’s Movie and Video Guide:
O detetive debonair Philo Vance, criada pelo grande romancista S.S. Van Dine (nome real Willard Wright) desfrutou de uma longa e variada carreira nas telas, na pele de vários diferentes atores, em filmes produzidos ao longo de cerca de 20 anos por vários estúdios.
A pessoa mais identificada com o papel foi William Powell, que estrelou os três primeiros mistérios para a Paramount, The Canary Murder Case, The Greene Murder Case e The Benson Murder Case (no Brasil, O Drama de uma Noite, A Casa do Crime e Corpo de Delito). Enquanto esses filmes bem do início da era do cinema falado são um tanto empolados (em especial Canary, que foi completado como filme mudo, depois rapidamente adaptado para o som), os ângulos do quem-matou são de primeira, com o educado Powell resolvendo os assassinatos cometidos em Nova York. Eugene Pallette foi ótimo como o cético sargento Heath do departamento de homicídios, com E.H. Calvert como o promotor público. A MGM interrompeu essa série com The Bishop Murder Case (O Bispo Misterioso), com Basil Rathbone como Vance. Embora seja um inteligente quem-matou, com o vilão cometendo seus crimes com referências a canções infantis, o filme foi prejudicado por um ritmo de caracol. A última atuação de Powell como Vance foi em The Kennel Murder Case, produzido pela Warner Bros., provavelmente o melhor filme da série, brilhantemente dirigido por Michael Curtiz, e um dos casos mais complexos de todos.
Nenhum dos outros lançamentos posteriores com Vance chegaram a esse nível de cinema criativo e sofisticado, embora Warren William tenha se dado bem em The Dragon Murder Case (no Brasil, O Crime do Dragão), da Warner. A MGM escalou Paul Lukas em The Casino Murder Case (O Mistério do Casino) e Edmund Lowe em The Garden Murder Case (Astúcia de Criminoso). Wilfrid Hyde-White estrelou The Scarab Murder Case, uma produção britânica que não foi exibida nos Estados Unidos. (Nem no Brasil.)
A Paramount refez The Green Murder como Night of Mystery (sem título no Brasil), uma produção B rotineira com Grant Richards, e Warren William retornou em The Gracie Allen Murder Case (A Comédia de um Crime), com Vance cedendo o protagonismo para a comedienne (Gracie Allen interpretava a si mesma no filme), cuja estupidez ficou um tanto avassaladora nesta história escrita para ela por Van Dine. A Warner então refez The Kennel Murder Case com o título de Calling Philo Vance (Três Horas Trágicas), outra produção B nada memorável, com James Stephenson no papel.
Philo Vance então se retirou até 1947, quando a pequena empresa PRC o trouxe de volta para três lançamentos finais, todos eles, surpreendentemente, bons quem-matou. William Wright estrelou Philo Vance Returns, e Alan Curtis foi um herói inexpressivo em Philo Vance’s Gamble , e o melhor deles, Philo Vance’s Secret Mission (todos os três sem título no Brasil), com a alegre Sheila Ryan como sua namorada detetive. A personalidade de Philo Vance, sofisticada e reservada, não cabia mais na imagem dos detetives hard-boiled dos anos 1940 e 1950, e então o personagem não voltou a aparecer nas telas, mas seus melhores filmes, do início ao fim da carreira no cinema, permanecem até hoje como mistérios de primeira linha.
Anotação em novembro de 2022
O Caso de Hilda Lake/The Kennel Murder Case
De Michael Curtiz, EUA, 1933
Com William Powell (Philo Vance)
e Mary Astor (Hilda Lake),
Eugene Pallette (sargento Heath), Ralph Morgan (Raymond Wrede, o secretário de Archer Coe), Jack LaRue (Eduardo Grassi, o italiano, o novo amante de Doris Delafield), Helen Vinson (Doris Delafield, a amante de Archer Coe), Paul Cavanagh (Sir Thomas MacDonald), Robert Barrat (Archer Coe), Arthur Hohl (Gamble, o mordomo de Archer Coe), Robert McWade (o promotor John F.X. Markham), Henry O’Neill (Dubois), Frank Conroy (Brisbane Coe, o irmão de Archer), Etienne Girardot (dr. Doremus, o legista), Spencer Charters (Snitkin), Charles Wilson (Hennessey), James Lee (Liang, o cozinheiro de Archer Coe), Harry Allen (Sandy, o treinador de cachorros), George Chandler (repórter), Milton Kibbee (Charlie Adler, repórter), Wade Boteler (sargento), Leo White (funcionário), Don Brodie (fotógrafo), James Burke (policial), Monte Vandergrift (detetive)
Roteiro Robert N. Lee & Peter Milne
Adaptação Robert Presnell
Baseado no livro homônimo de S.S. Van Dine
Direção de diálogos Arthur G. Collins
Fotografia William Rees
Montagem Ed N. McLarnin
Direção de arte Jack Okey
Figurinos Orry-Kelly
Produção Robert Presnell, Warner Bros.
P&B, 73 min (1h13)
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Um comentário para “O Caso de Hilda Lake / The Kennel Murder Case”