Sherlock Holmes / The Adventures of Sherlock Holmes

2.5 out of 5.0 stars

(Disponível na Netfloix em 4/2022.)

Em 1939, a 20th Century Fox lançou dois filmes com Basil Rathbone como Sherlock Holmes e Nigel Bruce como o dr. John Watson. O primeiro foi O Cão de Baskervilles e o segundo, este aqui, The Adventures of Sherlock Holmes, lançado no Brasil originalmente apenas como Sherlock Holmes. Em abril de 2022, ele estava no catálogo da Netflix como As Aventuras de Sherlock Holmes.

Antes de falar especificamente sobre este filme aqui, é necessário registrar que o estúdio planejava fazer várias outras adaptações de histórias do grande detetive – mas acabou abandonando o projeto depois do fracasso comercial deste The Adventures of Sherlock Holmes. A Universal, então, num belo golpe de esperteza, tomou para si a tarefa de continuar produzindo filmes com os dois atores nos papéis centrais. E deu maravilhosamente certo. Vieram, depois desses dois iniciais da Fox, nada menos de 12 outros filmes – o último deles, Melodia Fatal/Dressed to Kill, foi lançado em 1946.

Os dois primeiros em 1939, o último em 1946. Este The Adventures of Sherlock Holmes aqui estreou no dia 1º de setembro de 1939 – exatamente o dia em que o exército nazista invadiu a Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial, que terminaria em agosto de 1945.

Esta série de 14 filmes, portanto, veio ao mundo durante toda a duração da Segunda Guerra, e um pouco após o final. Dá até para compreender por que foram cometidos graves crimes contra a verdade dos fatos: em alguns desses 14, transportaram Sherlock Holmes e o dr. Watson da Era Vitoriana, em que eles de fato viveram, para a época em que os filmes foram feitos, os anos da guerra. Puseram Holmes e Watson para combater os nazistas. Transformaram-nos em instrumentos do esforço de guerra. Uma heresia, a rigor – mas compreensível, afinal. Contra o Mal em Si, todas as armas são válidas – até mesmo transportar Holmes e Watson do final do século XIX para os anos 1940.

Até porque heresias contra Sherlock Holmes é algo tão comum quanto opiniões imbecis nas redes sociais.

O cinema e depois a televisão sempre tomaram muitas liberdades com Holmes. Roteiristas inventaram muitas histórias que não estão no Cânone Sherlockiano, ou seja, as 60 histórias relatadas pelo amigo e colaborador do detetive, o doutor John Watson, e entregues por este a Arthur Conan Doyle, que se encarregou de publicá-las, entre 1887 e 1927.

Essas liberdades com a figura de Sherlock Holmes começaram cedo, quando os envolvidos – o próprio detetive, o doutor Watson, Conan Doyle – ainda estavam vivos, no início do século passado. E virtualmente a cada ano surgem novos exemplos.

Em 2009 e 2011, o diretor Guy ex-Madonna Ritchie criou novas aventuras de Holmes, em filmes de produção suntuosa, mas que deixaram sherlockianos do mundo inteiro indignados com o retrato de um detetive que usava quase tanto a força bruta quanto o intelecto, a capacidade dedutiva. Aqui mesmo neste + de 50 Anos de Filmes publiquei um texto com elogios ao primeiro dos dois filmes e, excepcionalmente, um outro, escrito não por mim, mas por meu amigo Valdir Sanches, metendo o pau no que ele entendeu ser a descaracterização do personagem mostrado nos escritos de John Watson.

Mas as heresias não param jamais. Uma série de TV, Elementary, que estreou na rede americana CBS em 2012, mostra Sherlock Holmes trabalhando em pleno século XXI em Nova York, e ainda comete a desfaçatez de apresentar Watson como uma mulher, interpretada por Lucy Liu!

A história do filme é ficção. Não está no Cânone

O primeiro dos 14 filmes com Basil Rathbone e Nigel Bruce foi – como mostra o próprio título, O Cão dos Baskervilles – a encenação de uma das histórias reais de Sherlock Holmes, um dos quatro romances que, juntamente com os 56 contos escritos pelo dr. John Watson, formam o Cânone.

Já este filme aqui, The Adventures of Sherlock Holmes, é uma absoluta obra de ficção. E o que é pior: chega a zombar do maior detetive que já houve em todos os tempos.

A base da trama é assim: o professor Moriarty, que Holmes sempre considerou seu maior adversário, pretende cometer o que ele mesmo chama de crime do século. Para isso, ele bola um plano para distrair Holmes: usa uma bela e rica jovem, Ann Brandon (sem que ela saiba de nada), que vai pedir o auxílio do detetive, levando a ele um caso instigante, fascinante, para que nosso herói, concentrado naquele caso, não perceba a movimentação do próprio Moriarty.

Como se Sherlock Holmes só conseguisse cuidar de um caso! Como se ele não fosse capaz de, ao mesmo tempo, simultaneamente, investigar a história levada a ele por Ann Brandon e ficar de olho no seu inimigo maior!

Ora, isso é uma grosseira ofensa à memória do grande detetive!

Os autores dessa história fictícia, mentirosa – e ofensiva – se chamam Edwin Blum e William Drake, os autores do roteiro do filme. Nos créditos iniciais está dito que o roteiro se baseia em uma peça de teatro de autoria de William Gillette – mas na verdade há pouco da peça de Gillette no roteiro final, como garante, por exemplo, o IMDb: “Embora o nome de William Gillette apareça nos créditos, o filme tem pouca ou nenhuma semelhança com sua peça de 1899 Sherlock Holmes”.

É preciso registrar que William Hooker Gillette (1853–1937), ator, produtor e dramaturgo americano, teve um papel importante na difusão dos trabalhos de Sherlock Holmes. Um apaixonado pelas histórias do detetive escritas pelo dr. John Watson, ele interpretou Sherlock Holmes nos teatros dos Estados Unidos mais de 1.300 vezes, ao longo de 30 anos. Diz a Wikipedia: “Sua personificação de Holmes ajudou a criar a imagem moderna do detetive. O uso do boné de caçador (que apareceram pela primeira vez em algumas ilustrações de Sidney Paget na revista Strand) e o cachimbo com uma curva se transformaram em símbolos duradouros do personagem.”

Personagem… A Wikipedia, como tantas outras fontes, insistem em tratar Sherlock Holmes como personagem, e não como uma pessoa real.

Aqui, um esclarecimento indispensável

(E aqui é forçoso fazer um grande parêntese com uma nota de esclarecimento…

Para os sherlockianos do mundo inteiro, Sherlock Holmes existiu de fato, John Watson existiu de fato. Watson relatou as 60 histórias do Cânone em 4 romances e 54 contos. Entregou-os a seu amigo Arthur Conan Doyle, que então se encarregou de fazer publicar os relatos, em livros e também em revistas, em especial a Strand da Inglaterra.

Com o tempo – este é o entendimento dos sherlockianos –, Conan Doyle passou a ser considerado, erroneamente, o autor das histórias.

Este texto – como outros aqui deste + de 50 Anos de Filmes sobre o famoso detetive e seu fiel companheiro de aventuras – foi escrito de acordo com as regras dos sherlockianos. Bem, no mínimo, foi como eu tentei fazer…)

Os dois atores estão perfeitos como Holmes e Watson

Apesar de a história ser fictícia, e apesar até desse absurdo de tratar Holmes como incapaz de cuidar de duas coisas ao mesmo tempo, este filme tem lá suas qualidades – e há algumas curiosidades interessantes em torno dele.

A primeira das qualidades, creio, são os dois atores. De tantos e tantos atores que, ao longo de mais de um século, interpretaram Sherlock Holmes e o doutor John Watson no cinema, Basil Rathbone, com aquele seu nariz marcante, sua elegância tanto em robe de chambre impecável na intimidade de seu lar na Baker Street, 221B, quanto em black-tie ou até mesmo fantasiado de cantor-palhaço para entrar incógnito numa festa, é considerado por muitos sherlockianos como a mais perfeita representação do detetive.

Assim como Basil Rathbone, com sua figura rotunda, seu bigodinho, seu eterno ar de gente boa (às vezes equivocamente mostrado como sendo de uma pessoa boba), seu vozeirão inimitável, é o mais perfeito John Watson de todos.

E olha que houve muitos. Desde 1903 houve filmes sobre Sherlock Holmes e John Watson – feitos em diversos países. Uma série de 13 filmes com o detetive foi feita na Dinamarca entre 1908 e 1911, e deve ter sido uma maravilha, já que o cinema feito nos países nórdicos era um dos mais avançados do mundo. Infelizmente, todos eles se perderam, assim como os primeiros filmes americanos. Hoje há apenas registros sobre a existência desses filmes, mas não sobreviveram cópias deles.

A atriz escolhida para fazer a jovem Ann Brandon excede tanto em beleza quanto em talento. Tem um jeito que mistura inocência, medo, desconfiança – e um danado de um charme. Estava, naquele ano de 1939 de lançamento do filme, com 21 aninhos, mas nunca foi uma mulher de muita inocência, medo ou desconfiança: Ida Lupino havia começado a carreira em 1932, na sua Inglaterra natal, e, em 1934, sua mãe a havia levado para Hollywood. Em 1949, dez anos depois deste Sherlock Holmes aqui, cansada dos papéis não muito interessantes que lhe davam, começou uma gloriosa carreira como diretora. Foi uma pioneira na direção em Hollywood, um território que até hoje é dominado pelos homens.

Do diretor Alfred Louis Werker (1896–1975), 50 filmes entre 1928 e 1957, nenhum deles tido como grande, o historiador e crítico Jean Tulard diz que “nem os Rothschild e nem Sherlock Holmes lhe serviram como inspiração para os filmes que se poderia esperar com tais personagens”. Mas a verdade é que, pelo mostrado neste filme, ao menos dominava bem o artesanato. Há uma boa reconstituição da Londres do final do século XIX (a ação se passa exatamente em 1894), as sequências que mostram as ruas enevoadas pelo famoso fog são bem feitas, há bons jogos de luzes e sombras, e algumas surpresas, como a rápida, ágil montagem de diversos rostos espantados no momento em que se ouve um ruído forte – e lá se vai desta para outra melhor o irmão de Ann Brandon, Lloyd (Peter Willes), exatamente como ela temia.

Para ser sincero, não compreendi muito bem aquela história de uma espécie de maldição envolvendo primeiro o pai e depois o irmão de Ann Brandon, que tem algo a ver com a América do Sul, chinchila, Bolívia ou Chile – e como foi que o professor Moriarty (o papel de George Zucco) soube dessa história toda e resolveu jogá-la para Sherlock Holmes – mas tudo bem. Não faz tanta falta assim a lógica nesse detalhe, e pode ser que haja lógica de sobra e eu é que não tenha sido capaz de apreendê-la.

Foi este filme que inventou a frase famosa

Da mesma maneira Ilsa Lund-Ingrid Bergman jamais pronunciou a frase “Play it again, Sam” em Casablanca (1942), não há, em todo o Cânone sherlockiano, em toda a obra do doutor John Watson publicada com o nome de seu amigo Arthur Conan Doyle, a frase “Elementary, my dear Watson”.

A frase foi criada neste filme aqui!

Exatamente como a frase inexistente em Casablanca, que virou até nome de filme – Play it Again, Sam (1972), de Herbert Ross sobre roteiro de Woody Allen, no Brasil Sonhos de um Sedutor -, a frase “Elementar, meu caro Watson” entrou para a História, como bem sabemos.

Foi uma contribuição de The Adventures of Sherlock Holmes de Alfred L. Werker para o universo sherlockiano.

Três outras curiosidades, tiradas da página de Trívia do IMDb sobre o filme:

* A ação de todos os 12 filmes seguintes da série com Basil Rathnone e Nigel Bruce se passa nos anos 1930 e 1940, na época em que foram feitos. Este aqui foi o último em que a ação acontecia de fato na época em que Holmes e Watson viveram.

* O ator Lionel Atwill (1885–1946) foi inicialmente escalado para fazer o papel do professor Moriarty. Pouco antes do início das filmagens, no entanto, foi substituído por George Zucco. Atwill já havia trabalhado em O Cão de Baskervilles, e voltaria a trabalhar em outro filme da série, Sherlock Holmes e a Arma Secreta (1942) – desta vez, sim, no papel do criminoso que Holmes temia, odiava e admirava.

O próximo item é um spoiler. Alô, alô, eventual leitor! O próximo item é spoiler! Pare de ler agora!

* O professor Moriarty aparece três vezes, nessa série de 14 filmes feitos pela Fox e depois pela Universal entre 1939 e 1946. Em cada um dos três filmes – este aqui, depois Sherlock Holmes e a Arma Secreta (1942) e A Mulher de Verde (1945) –, ele é interpretado por um ator diferente. Em todos os três filmes, ele morre em uma grande queda.

Para encerrar, eis aqui a relação completa dos 14 filmes:

1 – O Cão de Baskervilles/The Hound of Baskervilles (1939)

2 – Sherlock Holmes/The Adventures of Sherlock Holmes (1939)

3 – Sherlock Holmes e a Voz do Terror/Sherlock Holmes and the Voice of Terror (1942)

4 – Sherlock Holmes e a Arma Secreta/Sherlock Holmes and the Secret Weapon (1942)

5 – Sherlock Holmes em Washington/Sherlock Holmes in Washington (1943)

6 – Sherlock Holmes Enfrenta a Morte/Sherlock Holmes Faces Death (1943)

7 – A Garra Escarlate/The Scarlett Claw (1943)

8 – Pérola Negra ou Pérola da Morte/The Pearl of Death (1944)

9 – Sherlock Holmes e a Mulher Aranha/Sherlock Holmes and the Spider Woman (1944)

10 – Casa do Medo/The House of Fear (1945)

11 – A Mulher de Verde/The Woman in Green (1945)

12 – Desforra em Argel/Pursuit to Algiers (1945)

13 – Noite Tenebrosa/Terror by Night (1946)

14 – Melodia Fatal/Dressed to Kill (1946).

Anotação em abril de 2022

Sherlock Holmes/The Adventures of Sherlock Holmes

De Alfred L. Werker, EUA, 1939

Com Basil Rathbone (Sherlock Holmes),

Nigel Bruce (Dr. Watson)

e Ida Lupino (Ann Brandon), Alan Marshal (Jerrold Hunter), Terry Kilburn (Billy, o garotinho estafeta), George Zucco (professor Moriarty), Henry Stephenson (Sir Ronald Ramsgate), E.E. Clive (inspetor Bristol), Arthur Hohl (Bassick, empregado de Moriarty), May Beatty (Mrs. Jameson), Peter Willes (Lloyd Brandon, o irmão de Ann), Mary Gordon (Mrs. Hudson), Holmes Herbert (juiz), George Regas (Mateo), Mary Forbes (Lady Conyngham), Frank Dawson (Dawes, o mordomo de Moriarty), William Austin (o pedestre inquisitivo), Anthony Kemble-Cooper (Tony Conyngham)

Roteiro Edwin Blum e William Drake        

Baseado na peça de William Gillette 

Por sua vez baseada nos personagens criados por Arthur Conan Doyle

Fotografia Leon Shamroy

Música Robert Russell Bennett

Montagem Robert Bischoff

Direção de arte Richard Day, Hans Peters

Figurinos Gwen Wakeling

Produção Darryl F. Zanuck, 20th Century Fox.

P&B, 85 min (1h25)

**1/2

 

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