Woody Allen disse, em entrevista e em alguns de seus belos filmes, que, diferentemente do que ensinam os livros de auto-ajuda, as pessoas precisam, para serem felizes, de uma boa dose de sorte.
Neste Café Society, o Woody Allen safra 2016, seu longa-metragem de número 46, parece que ele quis dizer que algumas pessoas têm grandes doses de sorte para algumas coisas na vida – mas não no amor.
É o que acontece com os dois personagens principais desta história que tem muitos personagens (talvez até demais), Bobby e Vonnie – os papéis dos Jesse Eisenberg e Kristen Stewart. Bobby e Vonnie se dão muito bem na vida, em vários aspectos. São jovens, belos, ficam muito ricos – mas são infelizes no amor.
E saber que “dor de amor quando não passa é porque o amor valeu”
como diz o verso de Nelson Motta, é uma beleza de poesia, mas não resolve nada. Sequer consola.
Pena que o filme não tem, nem de longe, a beleza do verso – nem de tantos e tantos filmes do grande realizador. Café Society serve para provar que ninguém, ninguém, mas ninguém mesmo consegue escrever e dirigir um bom filme por ano, todo santo ano, sem pular nenhum. Nem mesmo Woody Allen, um dos dois cineastas que mais chegaram perto dessa façanha impossível, ao lado de seu mestre Ingmar Bergman.
O filme cita o tempo todo diversos atores de cinema dos anos 30
Assim como Steven Spielberg, Allen tem fascinação pelos anos 30 e 40 do século passado: são ambientados naquela época A Rosa Púrpura do Cairo (1985), A Era do Rádio (1987), Neblina e Sombras (1991), Poucas e Boas (1999), Magia ao Luar (2014) – e agora este Café Society, cuja ação se passa em meados dos anos 30.
Allen estruturou seu filme como uma peça em dois atos: o primeiro acontece em Los Angeles, mais especificamente em Hollywood e cercanias. No segundo ato, a ação se transfere para o outro lado do país, para a Nova York, a terra do cineasta.
O primeiro personagem que conhecemos é Phil Stern (o papel de Steve Carell), um agente de atores e outros profissionais do cinema, extremamente bem sucedido, rico, que conhece todo mundo em Hollywood e tem um escritório gigantesco. E a primeira sequência do filme é uma festa numa mansão hollywoodiana em que estão dezenas de figuras importantes – inclusive Phil, acompanhado de sua elegante mulher Karen (Sheryl Lee).
Já na primeira tomada, ouvimos a voz em off de um narrador – a voz do próprio Woody Allen, tecendo ironias com a Meca do cinema que ele não frequenta e parece odiar, desprezar.
Phil – que Steve Carell interpreta como um sujeito cheio de si, vaidosérrimo, egocêntrico, profundamente antipático – está contando, numa roda de pessoas junto da hollywoodiana piscina, que ele foi o primeiro sujeito ligado ao cinema a ver Paul Muni no teatro, e logo percebeu que ele seria um bom ator de cinema.
Uma serviçal vem dizer que há uma ligação para ele. Antes de atender, Phil informa ao grupo que está mesmo esperando uma ligação de Ginger Rogers – ela não está satisfeita com quem a representa, então quem sabe?…
Paul Muni e Ginger Rogers são os dois primeiros nomes de uma imensa quantidade de famosos atores dos anos 30 que serão citados ao longo do filme: Barbara Stanwyck, Marion Davies, Bette Davis, Greta Garbo, Joan Crawford, Jean Harlow, Joan Blondell, Gloria Swanson, Rudolph Valentino, Fred Astaire, Robert Taylor, Robert Montgomery, James Cagney, William Powell, Clark Gable, Gene Raymond, Hedy Lamarr e Ronald Colman.
O jovem Bobby se apaixona loucamente por Vonnie, empregada do tio
Quem está ao telefone não é Ginger Rogers, é Rose (Jeannie Berlin, ótima), a irmã de Phil. Está ligando de Nova York para dizer que seu caçula, Bobby (o papel de Jesse Eisenberg), deixou a joalheria do pai, Marty (Ken Stott), e está indo para Los Angeles, para tentar a vida em Hollywood.
Phil demonstra profunda insatisfação com a notícia – “Mas o que ele vem fazer aqui, se não conhece ninguém?” –, tão profunda quanto a insatisfação de ter sido procurado pela irmã distante e pobre.
O jovem Bobby chega a Los Angeles e, conforme especifica a voz em off do narrador, se hospeda do Ali Baba Hotel. Vemos a chegada dele, enquanto o narrador nos apresenta sua família:
* o pai, Marty, como o espectador já acabara de saber, é um joalheiro humilde, classe média média, do Bronx. Ele e Rose, a mulher, discutem sobre tudo – em especial sobre o irmão dela, Phil, que Marty detesta;
* a irmã Evelyn (Sari Lennick) é professora primária, casada com Leonard (Stephen Kunken), “intelectual, professor, comunista” – vemos Leonard dizendo para a mulher que a religião é o ópio do povo;
* o irmão mais velho, Ben (Corey Stoll), é, para dizer claramente, um bandido, um gângster.
Em Los Angeles, Bobby vai visitar o tio em seu grande escritório em prédio chique – toma um imenso chá de cadeira, e não é atendido. A secretária pede que ele volte daí a uma porção de dias.
Enquanto espera uma audiência com o tio importante, rico, o jovem Bobby vai ficando por ali. Por indicação do irmão Ben, entra em contato com um sujeito que manda para o quarto de hotel do rapaz uma jovem que está se iniciando na chamada profissão mais antiga do mundo.
A sequência é bem longa. Bobby diz que nunca pagou por sexo; a moça Candy (Anna Camp), judia como ele, diz que aquela é sua primeira vez. Não se entendem – e Bobby acaba mandando a moça embora.
Quando finalmente consegue um encontro com o tio, Phil se mostra cordato, simpático, gentil. Diz que vai arranjar um emprego para ele ali na sua agência – e pede a uma de suas funcionárias, Vonnie (o papel de Kristen Stewart), que ciceroneie o sobrinho nos horários livres, mostre a ele alguns pontos de Hollywood.
Bobby vai se apaixonar perdidamente por Vonnie – embora ela o tivesse advertido que tem um namorado, um jornalista que está sempre viajando.
E creio que não teria sentido avançar mais no relato da trama além disso aqui. Não é fundamental, e a rigor poderia trazer spoilers.
Há fatos disparatados, completamente sem lógica, no roteiro
O que vou registrar aqui é que, para meu próprio espanto, para surpresa do meu coração de woody-allen-maníaco, me peguei não gostando do que via.
Me pareceu completamente sem lógica, disparatado, insensato um rapaz que está começando a vida, que vem de uma família classe média média, chegar do Bronx a Los Angeles e se hospedar num hotel tão bom, num quarto tão gigantesco – e rapidamente passar a morar numa casa boa, ampla demais.
Mais ainda: me pareceu (e à Mary também) absolutamente destrambelhado, sem sentido, sem lógica, a mudança de comportamento do tio Phil em relação ao sobrinho. Nas primeiras sequências, ele não queria saber sequer de falar direito com a irmã ao telefone; dá chá de cadeira no rapaz, passa vários dias sem recebê-lo. Depois, de repente, sem que nem por que, muda 180 graus, passa a tratar o rapaz super bem, leva-o às festas de gente importante, apresenta-o a todos.
Somou-se à minha irritação com essas duas características absurdas do roteiro uma crescente impaciência com o ritmo frenético com que o narrador vai atulhando a cabeça do espectador com fatos novos e falas compridas, e novos personagens e falas compridas.
E a longa, extremamente longa, interminável sequência em que Bobby-Jesse Eisenberg recebe em seu magnífico quarto de hotel (como ele podia pagar por aquilo, meu Deus?) a garota Candy-Anna Camp , e os dois falam sem parar um monte de frases idiotas, enquanto ele anda de um lado para outro, me deixou convencido de que meu ídolo, desta vez, errou a mão.
Acontece, uai. Ninguém escreve e dirige 46 filmes ótimos ao longo de 47 anos.
Claro que o filme tem coisas boas. De vez em quando o gênio de Allen solta faíscas
Claro, tem coisas muito boas. Uma fotografia esplendorosa, uma cor que só gênios conseguiriam – uma coloração amarelada, como se fosse um technicolor em sépia, para realçar que é um filme sobre o passado, os anos 30, a era de ouro de Hollywood. Obra do mestre italiano Vittorio Storaro, bons serviços prestados a Francis Ford Coppola (Apocalypse Now, 1979, O Fundo do Coração, 1981), Carlos Saura (Tango, 1998), Bernardo Bertolucci (O Último Imperador, 1987), Giuliano Montaldo (Giordano Bruno, 1973), Warren Beatty (Reds, 1981, Dick Tracy, 1990).
Woody Allen tem longa tradição de trabalhar com diretores de fotografia europeus, de Sven Nykvist, o fotógrafo de Ingmar Bergman, a Carlo Di Palma, mas esta foi a sua primeira colaboração com Storaro.
O desenho de produção, a cargo do eterno colaborador de Allen Santo Loquasto, é de babar.
A trilha sonora, cheia – como a maioria dos filmes do cineasta – de pérolas da Grande Música Americana, é uma maravilha.
Há ótimas piadas sobre os judeus – Allen gosta de rir de seu povo. A coisa de Ben se decidir a virar cristão porque no judaísmo não há vida eterna é impagável.
Aqui e ali faísca o gênio do criador de frases e diálogos brilhantes, como esta consideração feita por Bobby: – “A vida é uma comédia escrita por um roteirista sádico”.
Ou como neste diálogo numa festa de Hollywood, em que Phil Stern apresenta um sujeito para Bobby:
Phil: – “Vencedor de dois prêmios da Academia.”
Bobby: – “Uau, parabéns!”
O premiado: – “Obrigado. Você nunca ouviu falar de mim. Sou um roteirista.”
Faíscas do gênio de Woody Allen.
Mas a verdade é que, tirando momentos como os desses diálogos e mais alguns dessa qualidade, Café Society não é um filme engraçado.
Não é um drama – e Woody Allen sabe fazer bons dramas. Entre os oito dramas que fez, há grandes filmes: Interiores (1978), Setembro (1987), A Outra (1988), Crimes e Pecados (1989), Match Point (2005).
Não é um drama. È uma comédia dramática, talvez – mas a parte cômica, a rigor, tem pouca graça.
Outras pessoas que gostam de Woody Allen também criticaram o filme
Quando o filme terminou, me senti entre desiludido, chocado e inseguro: mas será que não foi um problema meu? Será que vi o filme num momento em que não estava aberto, atento, bem disposto? Porque isso muitas vezes acontece: a gente não gosta muito de um filme, não entra nele – não por causa do filme, mas de nós mesmos, nosso próprio estado de espírito naquele momento.
E aí dei uma passada pelos comentários de leitores do IMDb. Gosto muito de ver os comentários de leitores depois de ver um filme – a opinião de gente simples, “normal” (se é que isso existe), gente que gosta de ver filmes, gente que não é crítico de cinema. E me deparei com vários comentários de pessoas que gostam de Woody Allen e ficaram decepcionadas com Café Society.
“Um dos projetos mais fracos de Woody Allen”, diz o título do comentário de ybenhayun. “Há muita coisa contra esse filme. O personagem de Jesse Eisenberg se mostra um completo idiota com dez minutos de filme, graças a uma cena realmente terrível entre ele e uma prostituta judia.” E por aí vai.
“Um dos piores de Woody” é o título do comentário de Leafman. “Fiquei confuso sobre a intenção de Woody já que o filme não é muito engraçado, nem é daqueles que fazem a gente pensar, nem sequer verdadeiramente agradável.”
Claro, há também muitos comentários elogiosos. Mas as críticas como essas duas aí me confortaram um pouco: ah, então não fui só eu…
No ótimo AllMovie, Violet LeVoit começa sua crítica com extrema elegância:
“Levou 39 anos, mas talvez Woody Allen tenha finalmente aceitado Los Angeles. A cidade que ele uma vez pintou como um esgoto cultural torrado pelo sol em Annie Hall é mostrada em seu último filme como uma fantasia elegante: é um lugar em que um judeu de Nova York como Phil Stern (Steve Carell) pode deixar para trás o Velho Mundo e se deliciar com um dry martini numa festa em Beverly Hills. (…) Naturalmente, Café Society se passa nos anos 1930, o que pode explicar por que o diretor que fez Radio Days, The Purple Rose of Cairo, Midnight in Paris e Sweet and Lowdown está segurando sua ira. Nada é de fato feio no passado.”
Mais adiante, no entanto, Violet LeVoit traz à tona as acusações – jamais comprovadas – de assédio sexual feitas pela filha adotiva Dylan Farrow, para em seguida dizer que, diante de toda a obra de Allen, não há nada de novo no filme. “Se Café Society fosse o primeiro filme de um jovem diretor em vez do 47º de um realizador, poderia ter sido algo superior. Mas, ao contrário de Vonnie, o filme é muito bonito mas nada especial.”
Prefiro o que diz, de forma direta, clara, o leitor do IMDb: “O filme não é muito engraçado, nem é daqueles que fazem a gente pensar, nem sequer verdadeiramente agradável”.
É o sétimo filme de Allen em que há um homicídio. O quinto sobre cinema
Alguns fatos, curiosidades, números sobre Café Society – a maioria deles tirada da página de Trivia sobre o filme no IMDb:
* Pelas minhas contas, este é o sétimo filme do autor que incluem homicídio, depois de Crimes e Pecados (1989), Neblina e Sombras (1991), Um Misterioso Assassinato em Manhattan (1993), Match Point (2005), O Sonho de Cassandra (2007) e O Homem Irracional (2015). São uns três ou quatro, perpetrados por Ben, o irmão gângster de Bobby, e as vítimas não têm importância na trama.
* Pelas contas do IMDb, este é o quinto filme do autor que de alguma maneira fala da indústria de cinema, depois de Memórias (1980), A Rosa Púrpura do Cairo (1985), Celebridades (1998) e Dirigindo no Escuro (2002).
* Foi o segundo filme do diretor com Jesse Eisenberg, depois de Para Roma Com Amor (2012). Também o segundo com Parker Posey, que havia trabalhado em O Homem Irracional, o filme logo anterior, de 2015.
* As filmagens começaram com Bruce Willis fazendo o papel de Paul Stern, o agente de figurões de Hollywood. Segundo o IMDb, Allen o demitiu e chamou Steve Carell para o papel.
* Foi a primeira vez, desde Crepúsculo (2008), que Kristen Stewart teve que fazer um teste para concorrer a um papel. Ela é hoje uma das atrizes mais famosas e mais procuradas do cinema americano – mas parece que Woody Allen não sabia disso, ou fingiu não saber.
* Foi o primeiro filme de Woody Allen desde A Última Noite de Boris Grushenko/Love and Death (1975) sem o nome de Jack Rollins nos créditos iniciais. No começo da carreira de Allen ainda como humorista em teatros e hotéis, Jack Rollins era seu empresário; a partir de 1975, foi um dos produtores executivos de todos os seus filmes. Morreu em 2015, aos 100 anos de idade.
* Foi o primeiro filme do cineasta feito com câmara digital – uma Sony Cinealta F65.
* Foi o primeiro filme de Allen desde A Era do Rádio (1987) em que ele é o narrador mas não trabalha como ator.
* O filme foi escolhido para abrir o Festival de Cannes de 2016. Foi a terceira vez que um filme de Allen abriu o festival, depois de Dirigindo no Escuro (2002) e Meia-Noite em Paris (2011).
* Foi o filme mais caro da carreira do diretor, com um custo estimado em US$ 30 milhões.
* Cenas de dois filmes dos anos 30 são mostradas rapidamente ao longo de Café Society. O primeiro é A Mulher de Vermelho/The Woman in Red, de 1935, de Robert Florey, com Barbara Stanwyck. O outro é Casado com Minha Noiva/Libeled Lady, de 1936, de Jack Conway, com Jean Harlow, William Powell e Mirna Loy.
Anotação em janeiro de 2018
Café Society
De Woody Allen, EUA, 2016
Com Jesse Eisenberg (Bobby Dorfman), Kristen Stewart (Vonnie), Steve Carell (Phil Stern, o tio de Bobby), Blake Lively (Veronica), Jeannie Berlin (Rose Dorfman, a mãe de Bobby), Corey Stoll (Ben, o irmão mais velho de Bobby), Stephen Kunken (Leonard, o marido de Evelyn), Sari Lennick (Evelyn, a irmã de Bobby), Ken Stott (Marty, o pai de Bobby), Parker Posey (Rad), Anna Camp (Candy, a prostituta iniciante), Paul Schneider (Steve), Sheryl Lee (Karen Stern, a mulher de Phil), Lev Gorn (Eddie), Steve Rosen (Louis), Douglas McGrath (Norman)
Argumento e roteiro Woody Allen
Fotografia Vittorio Storaro
Montagem Alisa Lepselter
Casting Patricia DiCerto e Juliet Taylor
Desenho de produção Santo Loquasto
Produção FilmNation Entertainment, Gravier Productions, Perdido Productions,
Cor, 96 min (1h36)
**1/2
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