A 100 Passos de um Sonho / The Hundred-Foot Journey

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Nota: ★★½☆

A 100 Passos de um Sonho/The Hundred-Foot Journey se finge de mais um filme sobre as delícias da boa cozinha, tipo Chef, Bon Appétit ou Simplesmente Martha, e é isso, sim. Porém, muito mais que sobre as delícias da boa cozinha ele é um belo, vigoroso, virulento panfleto contra todo tipo de xenofobia, uma elegia ao não racismo, à convivência harmônica de pessoas de diferentes origens, culturas, cores de pele.

É um filme para fazer os nacionalistas radicais, os neo-nazistas, os neo-fascistas, as Marine Le Pen da vida vomitarem de ódio.

E, portanto, é uma maravilha.

As assinaturas já explicam boa parte do que se vai ver. São produtores do filme Steven Spielberg e Oprah Winfrey – e é fascinante lembrar como essa dupla começou. Spielberg dirigiu Oprah como uma atriz coadjuvante – importante, é verdade, mas coadjuvante – em A Cor Púrpura, em 1985, um filme feminista, anti-racista ao extremo. Foi a estréia de Oprah como atriz. Anos mais tarde, ela se transformaria em uma das maiores estrelas da televisão americana, a mulher mais bem paga do show business. Criou sua própria produtora, que se chama Harpo – o nome de outro personagem de A Cor Púrpura.

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A Harpo é uma das produtoras deste filme aqui, juntamente com a Amblin, a velha empresa criada por Spielberg em 1981, junto com a DreamWorks, também de Spíelberg, mais Jeffrey Katzenberg e David Geffen.

Spielberg, Oprah e o diretor Lasse Hallström não se juntariam para fazer um filme que não fosse uma ode ao bem, um elogio à solidariedade, à fraternidade. Não porque um seja judeu, a outra tenha a pele negra, o outro seja um branquelão escandinavo. Etnia, origem religiosa familiar, cor de pele, lugar de nascimento, nada disso tem de fato importância. O que importa é o caráter, ou a falta de. Se a pessoa acredita nos melhores valores, ou não.

E essa trinca é toda do bem.

Não chega a ser um grande filme. Tem coisas que beiram o caricatural

Não que tenham propriamente conseguido fazer um grande filme. Não, isso não. Nem toda boa intenção rende bela arte.

The Hundred-Foot Journey muitas vezes é previsível demais. Há momentos que beiram o caricatural, o simples demais, o óbvio – e isso não chega a ser surpresa para quem conhece um pouco da obra do sueco Lasse Hallström. Autor, em seu país natal, de um filme de imensa sensibilidade e beleza, Minha Vida de Cachorro (1985), Hallström foi para Hollywood – e não há nada de errado nisso, muito ao contrário. Como disse o checo Milos Forman, se ele fosse arquiteto há uns 6 mil anos, gostaria de ir para o Egito, construir pirâmides; como era um diretor de cinema, e não conseguia mais viver em seu país, depois que os tanques soviéticos passaram por cima da primavera de Praga, ele então foi para Hollywood.

Lasse Hallström fez belos filmes, na minha opinião, como, só para dar dois exemplos, Regras da Vida/The Cider House Rules (1999) e Chegadas e Partidas/The Shipping News (2001). Os críticos metiam o pau, diziam que ele estava ficando cada vez mais meloso. Até cheguei a concordar com esse julgamento, ao ver Um Porto Seguro/Safe Haven (2013), baseado em um dos livros açucaradíssimos de Nicholas Sparks.

Sim, ele tem tido, ultimamente, uma tendência ao excesso de sacarina. Neste filme aqui, só para dar um exemplo, quando Hassan e Margueritte (os dois na foto abaixo) conversam sobre comida, tendo descido cada um de sua bicicleta, e estão andando lado a lado, empurrando cada um sua magrela, o céu tem uma tonalidade alaranjada mais violenta do que a que David O. Selznick botou nas tomadas mais impactantes de …E o Vento Levou (1939).

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Ele tem, sim, essa tendência ao excesso de sacarina, e a coisa tem piorado com o passar dos anos. Mas também tem bom gosto, e se cerca de gente que tem bom gosto. Há diversos belos achados ao longo de todo o filme. Por exemplo, na deliciosa sequência, já bem perto do final da narrativa, em que o pai indiano dança com a rígida Madame Mallory, a música que ouvimos é a mais bela de todas as canções compostas por Charles Aznavour, “Hier Encore”, extremamente apropriada para a sequência.

(“Hier Encore” é a canção que o fenômeno inglês Adele  tem sido acusada de plagiar em “Million Years Ago”.)

Nos créditos finais, há a menção à canção “Yesterday When I Was Young”. Povo doido. Esse é o título da versão em inglês da canção francesíssima – que, aliás, o próprio Aznavour gravou em inglês algumas vezes, uma delas, especialíssima, em dueto com a jazzista Diane Reeves.

A questão da língua que se fala me incomodou bastante, enquanto eu via o filme.

Mas acho que está faltando uma sinopse, um resumo da trama, uma explicação sobre de que trata, afinal, o filme.

Uma família de restauranteurs indianos vai parar no interior do França

A família Kadam era dona de um restaurante em Mumbai, a ex-Bombaim, a maior cidade da Índia. Papa (Om Puri) e Mama (Juhi Chawla) eram do ramo – os dois cozinhavam bem, gostavam do ofício. Todos os cinco filhos foram postos desde cedo para trabalhar no restaurante da família. Hassan (Manish Dayal, na foto abaixo), o segundo filho, mostrou desde muito cedo (aos 7 anos, é interpretado por Rohan Chand) ter um dom para a cozinha. Um dom absolutamente especial, um talento incrível.

zzfoot3No meio de uma disputa política na cidade (que não é muito bem explicada no filme), o restaurante da família foi invadido e incendiado. A Mama morreu no incêndio. O pai decidiu, então, levar a família para tentar a vida na Inglaterra; conseguiram ser recebidos como refugiados, e abriram um pequeno restaurante bem perto do Aeroporto de Heathrow.

O Papa não se deu muito bem na Inglaterra, e resolveu ir à procura de um lugar melhor no continente europeu.

A ação começa aí, quando os seis membros da família Kadam estão sendo entrevistados pelos funcionários da alfândega de Roterdã, Holanda, porto em que desembarcam vindos da Inglaterra. Numa bela sacada do roteirista Steven Knight (que transpôs a história do best-seller do escritor americano Richard C. Morais), todas as informações sobre o passado da família, que resumi nos parágrafos acima, vão sendo apresentadas em rápidos flashbacks enquanto Hassan, em especial, vai sendo interrogado na alfândega.

A família vai viajando pelo interior da Holanda, e depois da França, em uma espécie de jipe meio caindo aos pedaços. Em uma estrada vicinal da França, numa descida, os freios quebram, o jipe vai em disparada, do outro lado vem subindo um trator, o Papa joga o jipe para a esquerda, para uma estrada ainda menos importante em aclive, e salvam-se todos – foi só um grande susto e uma sorte danada de haver aquela estradinha em subida justo no momento em que estavam para bater no trator que vinha na direção contrária.

Surge na estrada – a sorte premia a família Kadam duas vezes em um espaço de cinco minutos – uma francesinha linda e de boa alma, que não só ajuda os indianos a levarem seu veículo até a cidadezinha mais próxima como oferece um farto lanche para todos os seis. Papa, Hassan e todos os demais ficam impressionadíssimos com a qualidade de cada ingrediente servido, e a francesinha linda, chamada Margueritte (Charlotte Le Bon, que aliás é canadense de Montréal, agora radicada em Paris) candidamente explica que tudo ali foi colhido por ela e preparado por ela.

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O pai resolve abrir um restaurante bem em frente a um de cozinha francesa

Papa tem o hábito de conversar com a finada Mama. Hassan já havia percebido isso, embora Papa não conversasse sobre isso com ninguém. A finada Mama simpatizou com aquela pequenina cidade francesa. E, na manhã seguinte ao dia da chegada da família, enquanto o veículo estava na oficina, Papa vê que há um grande casarão para alugar.

Os filhos, em especial o mais velho, Mansur (Amit Shah), protestam vivamente contra a idéia, mas Papa está decidido a instalar ali seu restaurante. Tem economias guardadas – e compra o imóvel.

Entre os vários argumentos usados pelos filhos para dissuadir o velho da idéia está o fato de que, bem em frente ao casarão que ele afinal compra, fica um restaurante tradicionalíssimo da região, Le Saule Pleureur, que tem, faz 30 anos já, uma estrela no Guia Michelin.

O fino e estrelado restaurante francês fica a 100 pés do casarão que Papa Kadam vai transformar no seu Maison Mumbai. Daí o título do romance de Richard C. Morais e do filme, The Hundred-Foot Journey, que os exibidores brasileiros adaptaram para A 100 Passos de um Sonho.

Le Saule Pleureur é administrado com mão de ferro pela proprietária, Madame Mallory – o papel de Helen Mirren. E a bela Margueritte é sous-chef do restaurante. O chef, um tal Jean-Pierre (Clément Sibony), sujeito que não tenta esconder o preconceito contra aqueles estrangeiros, terá importância vital na trama, bem mais para diante, porque isso que estou relatando acontece aí nos primeiros 20, no máximo 25 minutos dos 122 de duração do filme.

Madame Mallory lutará com unhas e dentes contra a família indiana e seu restaurante – mas não por preconceito, xenofobia. A luta dela será sempre em defesa de seu restaurante, de seu negócio, contra a concorrência que de repente surge.

Mas não será uma luta limpa. Madame Mallory fará de tudo contra o competidor.

HFJ-0003r ..Academy Award?-winner Helen Mirren stars as Madame Mallory, the chef proprietress of a classical Michelin-starred French restaurant, in DreamWorks Pictures? charming film, ?The Hundred-Foot Journey.? Based on the novel ?The Hundred-Foot Journey? by Richard C. Morais, the film is directed by Lasse Hallstr?m. The producers are Steven Spielberg, Oprah Winfrey and Juliet Blake. Photo: Fran?ois Duhamel ..?2014 DreamWorks II Distribution Co., LLC. All Rights Reserved.

A firmeza do filme contra a xenofobia torna seus defeitos coisinha menor

Já aos 20, 25 minutos de filme, o espectador poderá perfeitamente perceber muito do que virá a seguir. Como em tantos filmes em que um personagem no início é carrancudo, duro, mal-humorado, dá para apostar que aquele coração de pedra de Madame Mallory vai acabar se revelando grande e generoso.

O que de fato é bastante imprevisível é o motivo pelo qual a severíssima Madame Mallory abandonará as armas contra o indiano grosseirão e sua família. Como é de fato muito imprevisível, não é o caso, obviamente, de relatar isso aqui.

Mas o espectador atento poderá também sacar, aí antes que o filme chegue à sua primeira hora, que vai rolar romance – tanto entre os jovens quanto entre os velhos.

Ora, mas é claro que vai rolar romance.

Impliquei um tanto com o fato de todo mundo, naquele pequena cidade francesíssima, falar inglês, para facilitar o entendimento do maior mercado consumidor de filmes do mundo, o americano, em que boa parte das pessoas tem ojeriza por esse negócio de legendas, subtitles. Tudo bem, tem a explicação lógica de que, para falar com indianos, apela-se para o inglês. Mas é algo esquisito, chato.

Então, este The Hundred-Foot Journey tem lá seus defeitos – muita coisa previsível, momentos que beiram o ridículo, momentos de grande exagero, alguma melosidade excessiva.

Mas também tem muita coisa boa. As cenas de preparo de comida são, como naqueles filmes que citei no começo deste texto, uma maravilha. Há um plano-sequência, quando a família e operários estão reformando o velho casarão para transformá-lo em restaurante, que é um brilho de fazer a alegria dos cinéfilos.

A trilha sonora foi composta pelo indiano A.R. Rahman, que ganhou os Oscars de trilha e de canção pelo filme Quem Quer Ser um Milionário/Slumdog Millionaire (2008). É uma bela trilha, que mistura melodias indianas e ocidentais numa fascinante combinação.

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O personagem do prefeito da cidadezinha, interpretado por Michel Blanc, é uma absoluta delícia. É um glutão, adora comida, em grandes quantidades, para o pavor de sua mulher (Shuna Lemoine). O pobre prefeito fica bem no meio do fogo cerrado de Papa Kadam e Madame Mallory – e não quer tomar partido de nenhum lado, quer é comer bem nos dois restaurantes, e pronto.

De Helen Mirren seria mesmo de se esperar uma grande atuação – e ela entrega para o espectador o que se espera dela, uma interpretação magnífica. Mas todo o elenco está muito bem. O veterano Om Puri está ótimo como o patriarca indiano, e esse garoto Manish Dayal parece ter um bom futuro, porque tem fina estampa e sabe atuar.

Mas, sobretudo, o filme vale porque é um virulento panfleto contra a xenofobia – e o mundo, a Europa muito em especial, está precisando demais ouvir discursos, panfletos, vozes ponderadas, todas os tipos possíveis de vozes contra a xenofobia.

Houve momentos em que essa coisa da ode à convivência harmônica entre gente de lugares e crenças e hábitos diferentes me deixou bastante emocionado.

A grandeza da postura anti-xenofobia do filme torna seus defeitos coisa menor.

Anotação em agosto de 2015

A 100 Passos de um Sonho/The Hundred-Foot Journey

De Lasse Hallström, Índia-Emirados Árabes Unidos-EUA, 2014.

Com Manish Dayal (Hassan), Helen Mirren (Madame Mallory), Om Puri (Papa Kadam), Charlotte Le Bon (Marguerite), Amit Shah (Mansur), Farzana Dua Elahe (Mahira), Dillon Mitra (Mukthar), Aria Pandya (Aisha), Michel Blanc (o prefeito), Shuna Lemoine (a mulher do prefeito), Clément Sibony (Jean-Pierre), Vincent Elbaz (Paul), Juhi Chawla (Mama), Alban Aumard (Marcel), Antoine Blanquefort (Thomas), Rohan Chand (Hassan aos 7 anos)

Roteiro Steven Knight

Baseado n o livro de Richard C. Morais

Fotografia Linus Sandgren

Música A.R. Rahman

Montagem Andrew Mondshein

Casting Lucy Bevan

Produção Amblin Entertainment, DreamWorks Studios, Harpo Films, Imagenation Abu Dhabi FZ. DVD

Cor, 122 min.

**1/2

4 Comentários para “A 100 Passos de um Sonho / The Hundred-Foot Journey”

  1. assisti o filme quando era, eu mesma, em certos aspectos, uma estranha no ninho. estava eu, tão cearense, num meio europeu e formal. certamente isso contribuiu pra minha simpatia. aliás, em portugal, o título foi: a viagem de cem passos – que fez bastante sentido pra mim. trata-se de sair do lugar, não é? pra todos eles. também achei um filme tipo montanha-russa, incrível em alguns aspectos, bobinho e óbvio em outros mas, na média, um excelente uso do tempo e dos sentidos.

    e, claro, sua resenha: primorosa.

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