A abertura de Domicílio Conjugal, o quarto dos cinco filmes de François Truffaut sobre a vida de seu alter-ego, o jovem Antoine Doinel, é uma absoluta delícia. Bem, todo o filme é uma absoluta delícia, um encanto. Mas começo falando da abertura.
A câmara, colocada num carrinho a uns 25, 30 centímetros do chão, segue as pernas de Claude Jade enquanto ela caminha pelas ruas de seu bairro parisiense fazendo compras.
Claude Jade interpreta Christine, que o espectador havia conhecido no filme anterior da série, Baisers Volés, beijos roubados no mundo inteiro, no Brasil Beijos Proibidos, de 1968. Domicílio Conjugal é de 1970, apenas dois anos depois do anterior.
Christine está usando um vestido que termina apenas um dedinho acima de seus joelhos. Não é nada míni, mal aparece o inicioizinho das coxas. Os sapatos são de salto alto, mas nada de agulha, de exagerado – são saltos não muito altos. Ela carrega um violino dentro de um estojo apropriado – veremos que ela dá aulas particulares de violino em sua própria casa.
Ela caminha com graça e rapidez, e a câmara vai andando paralela às pernas dela. Pára diante de uma banca de frutas, pede tangerinas. A vendedora se dirige a ela como mademoiselle, e ela diz, firme: – “Non, pas mademoiselle! Madame!” E seguem em frente, ela e a câmara, que não desgruda de suas pernas.
Christine-Claude Jade vai se aproximar de uma banca de jornais, e então a câmara pára de andar ao lado dela – e pela primeira vez vemos Christine de corpo inteiro. Corta, e vemos seu rosto de garotinha muito jovem, muito bela, uma absoluta gracinha. Ela pede uma determinada revista; depois vê um pôster de Rudolf Nureyev, o grande bailarino soviético, e pergunta ao jornaleiro se pode ficar com ele. Paga, o jornaleiro agradece e fala mademoiselle, ao que ela responde, sorridente mas firme: – “Non, pas mademoiselle! Madame!”
Em uma rápida, deliciosa sequência de uns 3, 4 minutinhos, François Truffaut traça um belo retrato da heroína da história, essa jovem Christine, tão absolutamente jovem que todos a chamam de senhorita – e ela tem todo o orgulho do mundo em corrigir e dizer que é senhora.
Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud), que aos 14 anos, em Os Incompreendidos/Les Quatre-Cents Coups (1959), beirava a marginalidade, e chegava a ser levado para um reformatório, que aos 18, em Antoine et Colette (1962), já trabalhava e se sustentava, que aos 24, em Baisers Volés, saía do exército e passava por vários empregos e várias mulheres, apaixonado ao mesmo tempo pela mulher do patrão, Fabienne Tabard, e pela jovem Christine, agora, aos 26 anos, está casado!
Uma das maravilhas do filme são os personagens secundários, belas figuras
Após o passeio para as compras, Christine chega ao prédio em que mora, no último andar, um daqueles típicos prédios parisienses de uns cinco ou seis andares, sem elevador. Sobe as escadas com a rapidez dos jovens, deixando para trás um velho senhor uniformizado, talvez o carteiro, que se deleita em olhar, ao mesmo tempo em que os espectadores, para as pernas de Christine-Claude Jade subindo os escadas – as pernas que a câmara em contreplongée filma encantada.
Ouve-se uma voz de tenor. Veremos depois que o vizinho de andar do jovem casal Doinel é um tenor, casado com uma italiana volumosa e alegre (Daniel Boulanger e Silvana Blasi). São figuras fascinantes, assim como todos os demais vizinhos – uma das graças, das delícias de Domicílio Conjugal é a fauna que Truffaut e seus amigos co-roteiristas Claude de Givray e Bernard Revon criaram: o dono do café que funciona no térreo, alguns de seus clientes, a empregada lasciva, que vive cantando o atordoado Antoine, o homem que se recusa a sair de seu apartamento e passa a vida entre a janela e o sofá diante da televisão, o rapaz que mora sozinho e não fala com os vizinhos…
Quando Christine chega em casa, seu marido está saindo, apressado; cumprimentam-se carinhosa e rapidamente, e então a câmara desce as escadas seguindo Antoine Doinel. Depois de ter trabalhado sucessivamente como operário na fábrica de discos da Philips, se alistado no exército, tido uma experiência como porteiro noturno de hotel, depois de aprendiz de detetive particular, vendedor de uma sapataria para senhoras, técnico de oficina de conserto de televisores, Antoine agora mexe com flores. Trabalha na área interna de seu prédio, por onde passam os vizinhos, os conhecidos. Está se especializando em dar novas cores a flores brancas. Está em busca do que chama de Vermelho Absoluto.
Mais adiante, no filme, acabará, por um golpe de absoluta sorte, conseguindo um bom emprego numa empresa de engenharia hidráulica chefiada por um americano. Sua função será cuidar dos barquinhos que se movem por controle remoto numa gigantesca maquete de porto construída dentro da área da empresa. Dirigindo barquinhos por controle remoto – quase um brinquedo – Antoine se dá bem. Melhor que em todos os empregos anteriores…
Um cineasta que amava amar, amava as mulheres e amava as pernas das mulheres
A câmara que segue as pernas de Christine-Claude Jade é uma marca registrada de Truffaut, o homem que amava amar, amava as mulheres e amava de maneira especial as pernas das mulheres.
O Homem Que Amava as Mulheres (1977) é, muito provavelmente, o filme que mais focaliza pernas de mulheres de toda a História. Truffaut e seu diretor de fotografia, o grande Néstor Almendros, abusam das cenas em que a câmara, colocada bem perto do chão, acompanha o andar de mulheres, mostrando desde o início das saias e/ou vestidos até os sapatos. A principal estrela do filme são as pernas das mulheres.
Bertrand Morane, o protagonista, o homem do título, interpretado por Charles Denner, filosofa, volta e meia: “As pernas das mulheres são compassos que circulam pelo globo terrestre em todos os sentidos, dando a ele seu equilíbrio e sua harmonia.”
Sua última obra (morreu muito jovem, aos 52 anos, fez muito menos filmes do que devia, do que nós mereceríamos), De Repente, num Domingo/Vivement Dimanche!, de 1983, tem diversas passagens em que são a principal atração as pernas compridas, intermináveis, lindérrimas de Fanny Ardant, a protagonista da história e sua mulher na vida real.
No penúltimo filme, A Mulher do Lado, de 1981, as pernas compridas, intermináveis de Fanny Ardant estão sempre presentes. Ela usa um comportado calção para jogar tênis; o calção é comportado, e a câmara até que não se fixa muito nas pernas compridas, intermináveis, mas passeia por elas. E, no meio de uma festa diurna – onde acontecerá em seguida uma tragédia -, o vestido leve usado por Fanny Ardant se enroscará na cadeira no momento em que ela se levanta, de tal forma que, ali, no jardim, em plena luz do dia, diante de todos os amigos, diante do marido e do amante cego de paixão, ela ficará apenas com a roupa de baixo – uma elegantíssima roupa de baixo, que permitirá a visão daqueles quilômetros de pernas.
A paixão pelas pernas femininas já estava presente em Les Mistons, curta-metragem que Truffaut lançou em 1957, quando estava com apenas 25 anos de idade. O filme abre com uma moça, Bernadette Jouve (interpretada por Bernadette Lafont) andando de bicicleta por uma cidade do interior; a câmara em travelling vai acompanhando Bernadette em sua bicicleta pelas ruas. E a voz em off do narrador diz um belíssimo texto sobre a paixão de todos os garotos pela beleza de Bernadette, suas pernas que se mostravam quando sua saia esvoaçava ao vento na bicicleta.
Em Um Só Pecado/La Peau Douce, há uma seqüência de imensa beleza; há uma evidente carga erótica, mas é tudo absolutamente terno (a ternura é a principal característica de toda a obra do cineasta genial). O casal central, Pierre (Jean Desailly) e Nicole (Françoise Dorléac, descomunalmente bela aos 22 anos de idade), chega a um hotelzinho no interior, pela manhã, depois de uma experiência angustiante à noite e uma madrugada no carro, na estrada. Nicole está exausta; deita-se na cama e adormece instantaneamente, enquanto Pierre fecha as cortinas das janelas. Está toda vestida, não teve forças para tirar sequer o sapato. Pierre a contempla na penumbra. Tira seus sapatos, um a um, devagarinho – close-up dos pés. Depois ergue o vestido, e a câmara mostra em close-up a liga que prende a meia de nylon, no alto da coxa. Pierre acaricia a coxa enquanto tira a meia. A câmara de Truffaut acaricia a pele doce.
E, logo na abertura de O Homem que Amava as Mulheres, Truffaut faria o que para mim é uma das mais absolutamente lindas seqüências do cinema: o caixão do nosso herói está sendo baixado à sepultura, e uma das muitas mulheres que assistem ao enterro nota que, dali do caixão, Bertrand Morene teria a visão perfeita da coisa que ele mais amava na vida: as pernas das mulheres em volta do túmulo.
Me alonguei um tanto, e até me apropriei de trechos das minhas anotações sobre outros filmes do realizador, mas acho que vale a pena. A paixão pelas pernas das mulheres é uma das características marcantes da obra de Truffaut.
Domicílio Conjugal é do jeito que Truffaut queria: triste e alegre ao mesmo tempo
O diretor de fotografia de Domicílio Conjugal, o legendário cubano Néstor Almendros (1930-1992), trabalhou com diversos realizadores importantes (Alan J. Pakula, Terrence Malik, Robert Benton, Eric Rohmer). Foi um dos parceiros mais fiéis de Truffaut: dirigiu a fotografia deste filme aqui, do já citado O Homem Que Amava as Mulheres e também de O Garoto Selvagem (1970), As Duas Inglesas e o Amor (1971), A História de Adèle H. (1975) e O Quarto Verde (1978).
A câmara de Néstor Almendros, sob a inspiração de François Truffaut, acaricia o rosto de Claude Jade, ilumina seus olhos de um azul faiscante.
Como é jovem, essa Christine-Claude Jade, em Domicílio Conjugal! Tinha, exatamente como Françoise Dorléac em La Peau Douce, 22 aninhos. Os comerciantes de seu bairro estavam certíssimos em chamá-la de mademoiselle.
Truffaut estava apaixonado por ela. Chegou a pedi-la em casamento. Era useiro e vezeiro nisso, apaixonar-se por suas atrizes. Teve um caso com Jeanne Moreau na época de Jules et Jim (1962). E depois com Catherine Deneuve, que dirigiu duas vezes, em A Sereia do Mississipi (1969) e O Último Metrô (1980). Com Fanny Ardant, casou-se. Deixou-a viúva, ao morrer jovem demais, em 1984, aos 52 anos.
Apaixonado por todas as mulheres do mundo, como o personagem do filme de Domingos Oliveira que leva esse nome, Truffaut fez Antoine Doinel trair essa gracinha dessa Christine. O rapaz perde a cabeça quando fica conhecendo uma japonesa com jeito de gueixa, Kyoko (Hiroko Berghauer).
O personagem de Kyoko é deliciosamente desenhado, e o caso do rapaz mulherengo com ela, que provoca uma briga séria entre Antoine e Christine e até mesmo uma primeira separação, é muito, mas muito divertido – embora seja ao mesmo tempo triste, porque traição, briga, separação são das coisas mais tristes que há.
Em um texto a ser distribuído à imprensa sobre o filme anterior da saga, Baisers Volés, o cineasta havia dito: “Quando eles ficam prontos, me apercebo que meus filmes são sempre mais tristes do que eu gostaria. Faço a cada vez a mesma constatação. Este aqui, Baisers Volés, eu quis que fosse engraçado. Não sei se ele é, mas, em todo caso, nós nos divertimos muito. Quando eu comecei a fazer cinema, já lá se vão dez anos, acreditava que havia coisas engraçadas e coisas tristes, então pus em meus filmes coisas engraçadas e coisas tristes. Depois tentei passar bruscamente de uma coisa triste para uma coisa alegre. Me parece hoje que o mais interessante é de fazer de tal forma que a mesma coisa seja engraçada e triste ao mesmo tempo.”
Ele conseguiu plenamente seu objetivo: Domicílio Conjugal é, todo ele, do jeito que Truffaut queria, triste e alegre ao mesmo tempo. Triste, alegre – e esbanjando ternura do criador por essas suas pobres, lindas criaturas.
É especialmente delicioso o caso de Antoine com a japa que parecia à primeira vista fascinantemente misteriosa, mas acabará se revelando uma chata. Que engenho tiveram os três roteiristas para bolar a forma com que Christine fica sabendo da traição do marido! E que tragédia – ao mesmo tempo risível, triste mas patética – a primeira reação de Christine!
Antoine Doinel e eu tivemos filhos com mulheres lindas, doces, de coração gigantesco
Quando a japa aparece na história, Christine já tinha dado a si mesma e a Antoine seu primeiro (e único) filho.
Christine queria que o garoto se chamasse Ghislain. Antoine prefere Alphonse. Essa deve ter sido a única vez em que os dois discordaram e quem tinha razão era Antoine: Ghislain é um horror, não? Pois bem: fica combinado que seria Ghislain. Mas quem vai fazer o registro é o pai, e então o garoto ganha o nome de Alphonse.
Muito jovens, jovens demais, Antoine e Christine mostram-se, no entanto, bons pais. Não estavam preparados – quem está? –, não tinham manual de instrução, mas tinham o principal: o amor pelo bebê.
(Segundo minhas anotações, eu tinha visto Domicílio Conjugal, antes desta vez agora, em 1971, época do lançamento do filme aqui, em 1998 e em 2008. Nessas três últimas vezes, não consegui deixar de pensar – ao ver aquele casal tão absolutamente jovem nos primeiros tempos do casamento, com a chegada do bebê – em Suely e em mim, e na chegada de Fernanda. Antoine Doinel foi pai aos 26 – eu fui aos 25. Christine-Claude Jade tinha 22, exatamente a mesma idade de Suely quando Fernanda nasceu. Antoine Doinel e eu tivemos filhos com mulheres lindas, doces, de coração gigantesco.)
Alphonse vai reaparecer no último tomo da saga, L’Amour en Fuite, de 1979, como um garotão bonito de 9 anos de idade, cabelão grande como se usava na época. Pelo que o último filme mostra, Antoine e Christine souberam criá-lo com amor, carinho, dedicação.
O contrário, o oposto do que Antoine Doinel havia tido na vida, segundo mostra o primeiro filme da série, Les Quatre-Cents Coups. Nele, a mãe de Antoine não dá muita bola para o filho – e trai constantemente o padrasto do garoto, que nunca conheceu seu pai biológico.
Muito da vida de Antoine Doinel veio diretamente da vida de seu criador. Truffaut jamais conheceu o pai biológico; a mãe era solteira, e aparentemente não quis revelar para a família – de classe média, e seguramente careta, conservadora, para quem um filho de mãe solteira em 1932 deveria ser uma imensa vergonha – a identidade do rapaz que, como se dizia na linguagem estúpida da época, lhe fizera mal. Quando o garotinho François tinha um ano e meio, a mãe dele, Janine de Monferrand, casou-se com Roland Truffaut, que deu ao garoto o seu sobrenome.
As relações entre o jovem François e a mãe nunca foram muito boas – exatamente como se mostra em Les Quatre-Cents Coups. O padrasto acabaria o denunciando por um pequeno delito, e François, exatamente como Antoine Doinel, foi levado para um reformatório. Depois disso, jamais perdoou a mãe e o padrasto.
“Uma obra de arte não pode ser um acerto de contas, senão não é arte”
Mas, em 1970, aos 38 anos de idade, François Truffaut colocou seu alter-ego como um bom pai do filhinho único.
Antoine Doinel, então com 26 anos, andava escrevendo o que ele dizia ser um romance – mas não passava de uma autobiografia escarrada, apenas com uma ou outra mudança para tornar o personagem mais inteligente, simpático e resolvido do que o autor.
Mais tarde, depois da época retratada aqui neste Domicílio Conjugal, ele conseguirá publicar o livro. Nove anos depois, em 1979, conforme veremos em O Amor em Fuga, Colette (Marie France Pisier), por quem Antoine havia sido apaixonado aos 18 anos, encontrará um exemplar do livro; vai devorá-lo, rindo-se muito ao ver os trechos em que Antoine edulcorou a realidade para se mostrar melhor do que de fato era.
Detalhinho: o romance autobiográfico de Antoine Doinel se chama “Les Salades de l’Amour”. A legenda do DVD traduziu por “As Confusões do Amor”. Pode ser, mas Le Robert de Poche que herdei do meu irmão Floriano diz que salades significa histoires, mensonges. Portanto, “As Histórias do Amor” ou “As Mentiras do Amor” seriam mais exatos.
Aos 38 anos, Truffaut parecia questionar o que ele próprio havia feito quando tinha apenas 27 e lançou Os Incompreendidos/Les Quatre-Cents Coups. Christine contesta Antoine de frente, com uma frase forte: – “Não gosto muito dessa idéia de contar sua adolescência, criticando seus pais, sujando a imagem deles. (…) Uma obra de arte não pode ser um acerto de contas, senão não é arte.”
Seu primeiro longa-metragem foi um claríssimo acerto de contas com o passado triste, a adolescência problemática, a relação péssima com a mãe, o desconhecimento de quem era o pai. Aos 38 anos, ele coloca na boca de Christine – que, apesar de mais jovem, é muito mais adulta, mais madura do que o eterno crianção Antoine – essas palavras fenomenais. Uma obra de arte não pode ser um acerto de contas, senão não é arte.”
François Truffaut é demais.
Truffaut faz homenagens a John Ford, Alain Resnais e Jacques Tati
Um pequeno registro. Profundamente apaixonado pelo cinema, Truffaut não consegue deixar de falar de filmes em seus filmes. Antoine passa em frente a um grande cinema parisiense em que um cartaz descomunal anuncia o filme Cheyenne, de John Ford – um dos grandes ídolos do realizador. Num texto de 1974, Truffaut diria: “John Ford era um desses artistas que jamais pronunciam a palavra arte e um desses poetas que jamais mencionam a palavra poesia”. E finalizaria assim: “E como John Ford acreditava em Deus, Deus abençoe John Ford”.
Cheyenne no original é Cheyenne Autumn, no Brasil Crepúsculo de uma Raça (1964).
Há ainda em Domicílio Conjugal uma homenagem aos seus conterrâneos Alain Resnais e Jacques Tati.
Muda-se para o prédio de Antoine e Christine um rapaz que ninguém conhecia, sujeito sério, expressão fechada o tempo todo, pouco sociável, pouco comunicativo. Os vizinhos todos, o casal Doinel inclusive, é claro, começam a fofocar que o sujeito tem um jeito esquisito demais, talvez seja um bandido. Logo todos passam a se referir ao tipo como o estrangulador – e a cada vez que ele aparece em cena, todos os vizinhos ficam em silêncio, e entra uma melodia grave, dessas assim de filme de terror, criada pelo compositor Antoine Duhamel especialmente para o personagem interpretado por Claude Véga.
Pois bem: como bem sabemos, as aparências enganam, e fofocas são uma das piores invenções da humanidade.
Lá pelas tantas, “o estrangulador” aparece num programa de televisão, um quadro com imitações – e ele imita um personagem de O Ano Passado em Marienbad, o filme experimentalíssimo de Alain Resnais de 1961 estrelado por Delphine Seyrig, que em Beijos Roubados interpereta a mulher casada que fascina e seduz Antoine Doinel
No dia seguinte, quando ela passa pelo pátio interno do prédio, todos os vizinhos o cercam, o saúdam, o cumprimentam, dizem que o viram na TV, que ele é excelente – e então, pela primeira vez, “o estrangulador” sorri e passa a brincar amigavelmente com os vizinhos.
Já a homenagem a Jacques Tati não tem uma ligação maior com a história. Aparece assim do nada: numa estação de trem, vemos uma figura altíssima, de calças pega-frango, grande sobretudo, guarda-chuva, cachimbo na boca, chapeuzinho – uma imitação perfeita de Monsieur Hulot, o personagem criado por Tati em Meu Tio (1958) e vários outros filmes.
O filme foi um grande sucesso – e ele imediatamente partiu para outro
É preciso alguma hora terminar este texto, e então termino com um trecho do ótimo livro François Truffaut, de Robert Ingram e Paul Duncan. Vai aí, em português de Portugal, pois é de lá a edição que tenho, presente de aniversário de minha filha em 2006:
Na sua concentração em múltiplas relações, no repetido uso da profundidade de campo e no cenário, Domicílio Conjugal representa a mais aberta homenagem de Truffaut a (Jean) Renoir. O pátio é sem dúvida uma referência a Le Crime de Monsieur Lange (1936) de Renoir e leva-nos para um complexo semelhante de vidas e relações entrelaçadas. Os aspectos positivos da vida em comunidade num bloco de apartamentos parisiense com as suas portas abertas, janelas abertas, vidas partilhadas e uma rica linguagem coloquial, são a base de ambos os filmes.
“O filme estreou-se a 9 de Setembro de 1970 e foi um sucesso instantâneo, como tinha sido O Menino Selvagem (no Brasil, O Garoto Selvagem) antes dele. A Films du Carrosse (a produtora do realizador) estava de novo em boa forma e Truffaut começaria, como era habitual, o seu próximo projecto com entusiasmo e confiança renovados. Infelizmenrte, as circunstâncias não eram normais. Realizar quatro filmes em pouco mais de dois deixaram-no física e psicologicamente exausto. Isso, combinado com o fim da relação com Catherine Deneuve, conduziram a uma grave depressão.
“Um dos estímulos para a recuperação foi o segundo romance de Henri-Pierre Roché As Duas Inglesas e o Continente. (No Brasil, As Duas Inglesas e o Amor.) A resposta de Truffaut para a desilusão amorosa era o trabalho.”
Truffaut de fato era assim: mal terminava um filme, começava outro. Não importa se o filme recém-concluído era um sucesso ou um fracasso de público – exatamente como Claude Lelouch, e como a criatura deste, Anne Gauthier, em Um Homem, Uma Mulher 20 Anos Depois, Truffaut reagia às críticas e aos números da bilheteria fazendo um novo filme. E sempre um grande filme.
Anotação em abril de 2015
Domicílio Conjugal/Domicile Conjugal
De François Truffaut, França-Itália, 1970.
Com Jean-Pierre Léaud (Antoine Doinel), Claude Jade (Christine Darbon Doinel),
e Hiroko Berghauer (Kyoko), Barbara Laage (Monique, a secretaria do americano), Danièle Girard (Ginette, a empregada do prédio), Daniel Ceccaldi (Lucien Darbon, o pai de Christine), Claire Duhamel (Madame Darbon, a mãe de Christine), Daniel Boulanger (o vizinho tenor), Silvana Blasi (Silvana, a mulher do tenor), Pierre Maguelon (o amigo de Césarin), Jacques Jouanneau (Césarin), Claude Véga (“o estrangulador”), Jacques Rispal (Monsieur Desbois), Jacques Robiolles (Jacques)
Argumento, roteiro e diálogos François Truffaut, Claude de Givray e Bernard Revon
Fotografia Néstor Almendros
Música Antoine Duhamel
Montagem Agnes Guillemot
Produção Les Films du Carrosse, Valoria Films, Fida Cinematográfica. DVD original MK2, no Brasil Versátil e MK2.
Cor, 100 min
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Texto nível Truffaut =)
Ah, Senhorita…
Olhe, hoje, ao reler o texto para botar no ar, de fato gostei dele. Tem paixão – e tem informação, o que é um bom coquetel.
Sua mensagem me deixa com o ego que não cabe neste meu apartamento… Tenho que abrir todas as janelas…
Agradeço imensamente por sua mensagem, mas, claro, é preciso dizer: você exagerou demais da conta.
Um abraço.
Sérgio
Gente, primeiro gif animado do 50ADF!
Se é assim, quero um gif das coxas do Gene Kelly também, de preferência em ‘The Pirate Ballet’, do filme “The Pirate”. hehehe
[Li o texto, mas não sei se vou ver o filme. Confesso que tenho um pouco de preguiça de Truffaut — me julguem].
Hêhê… Na verdade, foi sem querer o gif animado. Eu estava procurando foto daquele início de filme, para publicar ali onde descrevo a seqüência. Não achei foto alguma – só o tal gif animado!
Mas prometo ir atrás de gif animado no próximo filme do Gene Kelly que eu vir!
Agora, Jussara, você é inteligente demais pra continuar tendo um pouco de preguiça de Truffaut. Isso é um absurdo.
Veja As Aventuras de Antoine Doinel. Sério. Não tem como não gostar. É do melhor que o cinema já fez, em toda sua História.
Abração.
Sérgio
Eu bem achei que o gif animado tivesse sido “sem querer querendo” mesmo. hehe Mas ficou bom.
Rá, vou esperar então um gif no próximo filme do Gene (dependendo do filme, posso te mandar umas fotos mais exclusivas que tenho, que não são encontradas no Google, principalmente de bastidores. De algumas eu até tenho ciúme. hahaha).
Super obrigada pelo elogio, Sérgio, depois disso me sinto no dever de ver esse filme. Vou procurá-lo!
Abraços.