O Assassinato no Expresso Oriente versão Kenneth Branagh é uma festa para os olhos. É um espocar incessante de imagens belíssimas, feéricas, um delírio, um show de fogos de artifício. E impressiona igualmente pela coragem com que, aqui e ali, volta e meia foge do original escrito por Agatha Christie.
Inventa um começo que não existe no livro. Aso longo da narrativa, cria coisas com que a fabulosa velhinha maluca jamais sonharia. E, no fim, muda completamente todo o tom, o jeito, o clima.
E isso não significa que o filme fuja da trama – inteligente, esperta – criada pela grande dama da novela policial. Não, não, de maneira alguma. A trama original, os personagens, a estrutura – está tudo lá.
Kenneth Branagh, esse talentosíssimo shakespeariano pop, e o roteirista Michael Green, o mesmo de Blade Runner 2049, conseguiram fazer uma nova versão de Murder on the Orient Express que ao mesmo tempo tem a perfeita trama agatha-christiana mas foge da moral aghata-christiana – e ainda traz elementos contemporâneos.
O Expresso do Oriente continua partindo de Istambul nos anos 1930 – mais especificamente, em 1934, o ano exato em que foi lançada em livro a novela que se tornaria uma das mais conhecidas da prolífica escritora. No entanto, no filme há, por exemplo, contundentes condenações do racismo e da xenofobia. Tópicos que nunca foram importantes para Agatha Christie, mas são fundamentais na Europa (e, de resto, em todo o planeta) de hoje em dia.
Assim como a primeira versão feita por Lumet em 1974, tem um monte de astros
Em uma característica específica, este Murder on the Orient Express se parece bastante com a primeira versão para o cinema da novela: assim como o filme dirigido por Sidney Lumet e lançado em 1974, este aqui é coalhado de astros e estrelas. O elenco impressionante tem Michelle Pfeiffer, Penélope Cruz, Judy Dench, Johnny Depp, Willem Dafoe.
O de Lumet não ficava atrás, de jeito nenhum: tinha Lauren Bacall, Vanessa Redgrave, Sean Connery, Ingrid Bergman, Richard Widmark, Anthony Perkins, John Gielgud, Michael York, Jacqueline Bisset.
No filme do americano Lumet, quem interpretava o belga Hercule Poirot, “possivelmente o melhor detetive do mundo”, como ele mesmo diz, era o inglês Albert Finney. Na nova versão, o belga é feito por outro inglês – o próprio diretor Kenneth Branagh, esse sujeito que se divide entre um Shakespeare no teatro e um Shakespeare no cinema, um Shakespeare no teatro e uma boa trama policial no cinema – e até um conto de fadas.
Décimo-quinto ator a interpretar o homem das celulinhas cinzas, Branagh ousou num bigodão que consegue ser possivelmente o mais absurdo que Hercule Poirot já teve no cinema.
A história criada por Agatha Christie na primeira metade dos anos 1930 começava em Alepo, a cidade que apareceu muito no noticiário em 2017 e 2018 por causa da pavorosa guerra civil na Síria. Hercule Poirot havia resolvido um caso de um crime envolvendo oficiais do exército francês, e embarcava em Alepo em direção a Istambul – e depois de volta à Inglaterra. O caso que ele acabava de resolver não é detalhado na narrativa da então jovem Agatha Christie – uma inglesa que escrevia histórias passadas em lugares como Iraque, Síria, Turquia, Egito porque os conhecia de fato, por adorar viagens e por ser casada com um eminente arqueólogo, especializado na História do Oriente Médio, Sir Max Edgar Lucien Mallowan (1904 –1978).
No começo da história adaptada por Michael Green e encenada e interpretada por Kenneth Branagh, Hercule Poirot – em vez de, como no livro, aguardar um trem, na companhia apenas de um tenente francês, em Alepo – estava para anunciar o resultado de suas investigações em um caso rumorosíssimo diante de uma gigantesca multidão, junto do Muro das Lamentações, em Jerusalém.
Na abertura, um Hercule Poirot meio parecido com Indiana Jones
É um Hercule Poirot que parece Indiana Jones, este do começo do Murder on the Orient Express 2017.
Naquela Palestina de 1934, sob mandato britânico, antes, evidentemente, da criação do Estado de Israel em 1946, peças valiosíssimas de um templo haviam desaparecido, e os suspeitos eram (parece piada, e Hercule Poirot-Kenneth Branagh até faz menção a isso) um padre católico, um rabino e um imã muçulmano.
Os três são colocados junto do Muro das Lamentações, diante de uma multidão formada por católicos, judeus e muçulmanos ansiosos pela prisão do culpado.
Hercule Poirot relata – como se estivesse num programa de televisão das tardes de domingo, como um animador de auditório – sua investigação, até chegar à conclusão de quem era o ladrão das peças raras e valiosas.
No meio dessa sequência feérica, o diretor de fotografia Haris Zambarloukos bota a câmara a uns 5 ou 6 metros acima do solo, mostrando em extremo plongée o Muro das Lamentações, os religiosos acusados do roubo, o detetive que apresenta o caso ao populacho e mais ele mesmo, o populacho.
Uma pequena amostra das proezas que a câmara fará no filme que está apenas começando.
A câmara faz as maiores peripécias para nos mostrar o luxo do trem
O intróito em Jerusalém é uma historinha à parte, que não tem nada a ver com a trama que virá em seguida. É apenas um intróito mesmo, uma forma de apresentar o herói, mostrar como é ele um verdadeiro Super-Herói. Exatamente como nos filmes de Indiana Jones.
Em Istambul, que Poirot ainda não conhecia, e onde pretendia passar alguns dias de descanso absoluto, ele é no entanto procurado pelo embaixador britânico: há um caso importantíssimo a ser resolvido em Londres, pelo qual o governo de Sua Majestade tem o maior interesse, e ele deve embarcar imediatamente no Expresso Oriente.
Ah, o Expresso Oriente…
O Expresso Oriente, para gerações e gerações e mais gerações nascidas no século XX, é uma daquelas coisas icônicas, emblemáticas, especiais, únicas. O sinônimo do bom gosto, da elegância, da riqueza, da opulência. Algo como o Ritz de Paris, o Savoy de Londres, a Riviera, a Cortina D’Ampezzo, os apartamentos da Park Avenue.
Para nos apresentar o Expresso Oriente, ali quando o filme está com uns 10 minutos, a câmara de Haris Zambarloukos faz as maiores misérias – no melhor e mais rico sentido da palavra. O que a câmara faz para exibir o luxo do Expresso Oriente, e ao mesmo tempo nos mostrar pela primeira vez os passageiros que estão embarcando nele, causaria profundo mal estar às câmaras austeras, rígidas, franciscanas dos dinamarqueses do Dogma 90.
Entre a fauna que viajará com Poirot, há uma princesa russa, um conde e uma condessa do Leste Europeu, uma governanta inglesa, uma missionária espanhola, uma senhora americana linda que não pára de falar, um business man americano e seu secretário e seu valete. Há de tudo.
Acho que cabe aqui esta tabela que me deu um trabalho insano fazer:
Personagem | A versão de Lumet (1974) | A versão de Brannagh (2017) |
Hercule Poirot | Albert Finney | Kenneth Branagh |
Bianchi / Bouc, o diretor da empresa | Martin Balsam | Tom Bateman |
Mrs. Hubbard, a americana falante | Lauren Bacall | Michelle Pfeiffer |
Mary Debenham, a governanta inglesa | Vanessa Redgrave | Daisy Ridley |
Coronel Arbuthnot / Dr. Arbuthnot | Sean Connery | Leslie Odon Jr. |
Dr. Constantine | George Coulouris | (o médico virou Arbuthnot) |
Greta Olsson, a missionária / Pilar Estravades, a missionária | Ingrid Bergman | Penélope Cruz |
Princesa Dragomiroff | Wemdy Hiller | Judy Dench |
Samuel Ratchett / Edward Ratchett, a vítima | Richard Widmark | Johnny Depp |
McQeen, o secretário de Ratchett | Anthony Perkins | Josh Gad |
Beddoes / Masterman, o criado de Ratchett | John Gielgud | Derek Jacobi |
Conde Andrenyi | Michael York | Sergei Polunin |
Condessa Elena Andrenyi | Jacqueline Bisset | Lucy Boynton |
Cyrus Hardman / Gerhard Hardman | Colin Blakeley | Willem Dafoe |
Hildegarde Schmidt, a criada da princesa | Rachel Roberts | Olivia Colman |
Pierre Michel, o condutor | Jean-Pierre Cassel | Marwan Kenzari |
Antonio Foscarelli / Biniaamino Marquez | Denis Quilley | Manuel Garcia-Rulfo |
Personagens foram alterados. A missionária nórdica agora é espanhola
Branagh e o roteirista Michael Green de fato se permitiram diversas, diversas licenças poéticas na adaptação do texto de Dame Agatha Christie.
No livro, participa daquela viagem um dos diretores da empresa proprietária do Expresso Oriente, que é um velho conhecido de Poirot, Monsieur Bouc. Na adaptação de Sidney Lumet, ele virou o Signore Bianchi, e foi interpretado por Maltin Balsam. Aqui, Bouc é um jovem; é da diretoria da empresa, mas é filho do diretor importante, e é interpretado por Tom Bateman.
Essa foi uma mudancinha quase imperceptível. Há muitas outras.
No livro há uma bela missionária do Norte da Europa, chamada Greta Olsson – o papel de Ingrid Bergman em 1974. Aqui, a missionária virou espanhola, chama-se Pilar Estravades, já que o papel é de Penélope Cruz,.
No livro e no filme há um tal Cyrus Hardman, um americano que se diz caixeiro-viajante, mas não é – lá pelo meio da narrativa vai se revelar que ele é um detetive de uma grande agência. No filme novo, há um Gerhard Hardman, interpretado por Willem Dafoe, que se apresenta como um cientista e professor austríaco. Ele se diz isso, mas não é – é um detetive de uma grande agência americana.
Não houve grande adaptação, mudança, quanto a duas personagens femininas, a sra. Hubbard e Mary Debenham. As duas mantiveram as mesmas características básicas tanto no livro quanto nas duas adaptações.
Mrs. Hubbard é uma senhora americana já de meia idade, atraente, bonita, que fala demais, aproxima-se de cada um dos demais passageiros e dana a conversar – um tipo um tanto chato, inoportuno, levemente vulgar. Ela tem papel especialmente importante na trama; na versão de 1974, foi interpretada por Lauren Bacall; aqui, por Michelle Pfeiffer – e, às vésperas de completar 60 anos, essa atriz de beleza luminosa, acachapante, teve com Mrs. Hubbard um dos melhores papéis da carreira, e soube aproveitar a oportunidade. É seguramente uma de suas mais sensacionais interpretações.
(Não contente por brilhar como atriz no meio desse elenco estelar, Michelle Pfeiffer brilha, nos créditos finais, como cantora. Canta, com uma voz pequena mas envolvente, quente, calorosa, uma canção composta por Patrick Doyle, autor das trilhas de todos os filmes de Kenneth Branagh, e letra do próprio realizador, “Never Forget”.)
Mary Debenham é uma governanta inglesa que estivera trabalhando durante anos no Oriente Médio, e estava indo passar um tempo em sua terra natal. Jovem, bela, é algo impetuosa, de caráter forte. O papel coube a Vanessa Redgrave nos anos 70, e agora a Daisy Ridley (na foto abaixo), a Rey de Star Wars: O Despertar da Força (2015) e Star Wars: Os Últimos Jedi (2017).
No livro e nos filmes, Mary Debenham fala uma frase cheia de significado para um homem que ela obviamente já conhece bem, chamado Arbuthnot. Ela não havia percebido que Poirot estava ali perto e podia ouvir. A frase é algo como – “Quando tudo isso acabar”.
No livro, na nova edição da L&PM, já com uma imagem do filme de 2017 na capa, a frase, dita na página 18, é exatamente esta, na tradução de Petrucia Finkler:
– “Não agora; Não agora. Quando tudo estiver terminado. Quando tiver ficado para trás… aí então…”
Para um detetive, é uma sorte danada estar por perto de uma mulher e um homem quando ela está dizendo uma frase assim. Ainda mais se o detetive for viajar no Expresso Oriente com aquele homem e aquela mulher, e acontecer um homicídio a bordo.
Para uma escritora de novelas policiais, é um belo achado colocar essa situação no iniciozinho do livro.
Arbuthnot agora não é coronel da Índia, e sim o médico, e negro
Se tanto Mrs. Hubbard quanto Mary Debenham são basicamente as mesmas no livro e nos dois filmes, não é nada assim com Arbuthnot, o homem com quem a jovem governanta inglesa conversa antes de embarcarem no Expresso do Oriente.
No livro e no filme de Lumet, Arbuthnot é um coronel inglês, que passou muitos anos na Índia, e está voltando para a terra natal. Lumet colocou para interpretá-lo o escocês Sean Connery, àquela altura já cansado de dizer “My name is Bond, James Bond”.
Pois no Assassinato versão 2017, Arbuthnot é médico. Em vez de coronel Arbuthnot, é o doutor Arbuthnot, o que examinará o corpo da vítima. E tem a pele negra – o papel de Leslie Odom Jr., nova-iorquino criado na Pensilvânia, mais de 30 títulos em uma carreira iniciada em 2004, exatos 70 anos depois do lançamento do livro de Agatha Christie.
Na história original, não há personagem importante algum com a pele negra.
Mas um conjunto de mais de uma dezena de pessoas em um filme sem um único negro seria inadmissível, de acordo com os costumes desta segunda década do terceiro milênio – e então o grego dr. Constantine do livro e do filme de Lumet sumiu, e foi substituído por Arbuthnot, que deixou de ser coronel que vinha da Índia. Para que um filme de 2017 precisaria de um coronel vindo da Índia?
Essa mudança, e mais a adaptação do falso caixeiro-viajante americano Hardman para o falso professor de ciências austríaco Hardman, permitem que este Assassinato versão 2017 dê belas, maravilhosas porradas no racismo, no supremacismo, no xenofobismo.
O austríaco Hardman fala frases racistas estúpidas, idiotas – era 1934, e um tipo especialmente danoso de racismo estava tomando conta da Alemanha e da Áustria. – “Italianos são vacas. Os espanhóis são ovelhas. Os belgas…”, diz Hardman-Willem Dafoe – e um olhar do belga Hercule Poirot-Kenneth Branagh, basta para expor o absoluto ridículo, a falta de senso, o crime abominável que é o racismo, o supremacismo.
Há uma sequência sensacional quando o filme está chegando aos 30 minutos de projeção. Estão todos no elegante vagão-restaurante do trem. O falso austríaco Hardman se irrita com a proximidade do negro Arbuthnot, e diz ao condutor que gostaria de não voltar a se sentar na mesma mesa daquele homem.
– “Cada um deve se sentar com os seus. Nós não somos iguais.”
No momento em que ele diz isso, está passando perto da mesa da governanta Mary Debenham. Ela não perdoa:
– “Nem todos estão preocupados com a separação de raças, professor.”
E ele: – “É por respeito a todas as raças que eu preferiria mantê-las separadas. (Vê que Mary está tomando um vinho tinto, e acrescesta: ) Misturar seu vinho tinto com o branco estragaria ambos”.
Mary Debenham, maravilhosa, perfeita, joga um pouco do seu vinho tinto num copo de água: – “Eu adoro um rosé”.
O filme realça a diferença entre a Lei do Talião e a civilização
Essa postura anti-racismo, anti-supremacismo, anti-xenofobia, tão necessária, tão bem-vinda, é Kenneth Branagh puro – não havia nada disso no livro de Agatha Christie.
Mas a grande diferença, o gigantesco Grand Canyon que separa o livro desta adaptação é a questão de fundo, a questão maior: a forma de encarar a Justiça, a justiça feita com as próprias mãos e a Justiça feita entre seres civilizados. A diferença entre a Lei do Talião e a civilização.
Já bem no início da narrativa, o Hercule Poirot de Branagh, muito distante daquele da sua criadora, faz esta profissão de fé:
– “Não aprovo assassinatos. Sempre há pessoas que não fariam falta ao mundo, mas não podemos sair por aí matando. Nós temos que ser melhores que as feras.”.
Uau! Que frase!
Não me ocorreu quando via o filme, mas me ocorre agora, na hora de anotar sobre ele: que frase, que colocação importante neste momento, neste país, em que cerca de 20% dos eleitores se encanta um candidato à Presidência da República que representa a exaltação das feras, da barbárie, da falta de civilização.
(Em inglês é sempre melhor, mais forte: A frase de Poirot termina com “better than the beasts”.)
Dame Agatha Christie tinha simpatia pela pena de morte. Pior ainda: pelo olho por olho dente por dente – como está expresso na cena final de Testemunha de Acusação, uma trama genial, maravilhosa, sensacional – mas que termina com uma elegia ao olho por olho dente por dente.
Assassinato no Expresso Oriente é uma obra em defesa do olho por olho dente por dente – e volto a isso logo adiante.
Agatha Christie usou o seqüestro do bebê Lindbergh na sua trama
Agatha Christie inspirou-se em dois fatos reais para escrever Assassinato no Expresso Oriente.
Um é que houve um caso em que o Expresso Oriente teve que interromper viagem por causa de um desastre natural. Aconteceu em 1929, na Turquia: uma nevasca especialmente forte soterrou os trilhos e o Expresso Oriente ficou seis dias parado. Dois anos depois, a própria Agatha Christie viajava no Expresso Oriente e o trem foi obrigado a parar por causa de uma inundação.
No livro, e, claro, nos filmes, uma tempestade de neve impede que o trem prossiga viagem, quando passava pela Croácia.
O outro fato real que a escritora usou na história foi o seqüestro do bebê Lindbergh, ocorrido em 1932. Foi um dos casos policiais de maior repercussão na imprensa mundial entre todos os acontecidos nos últimos 120 anos. Seguramente foi o caso policial que mais chocou a humanidade até então, especialmente por causa da extrema popularidade de Charles Lindbergh.
Charles Augustus Lindbergh (1902-1974) era assim uma espécie de mistura de Pelé com Joe Di Maggio com Frank Sinatra com Lennon & McCartney com John F. Kennedy, embora não fosse nem desportista nem músico nem político. Aviador, oficial das forças armadas, escritor, inventor, explorador, ativista ambiental muito antes que o mundo soubesse o que é um ativista ambiental, Lindbergh era também rico fino chique e bonito. Aos 35 anos de idade, em 1927, tornou-se o maior herói dos Estados Unidos por ter sido o primeiro piloto a fazer sozinho a travessia do Atlântico, num vôo de 33 horas e meia e 5.800 km entre Long Island, em Nova York, até Paris.
E então, na noite de 1ª de março de 1932, Charles Augustus Lindberght Jr,, o bebê Lindbergh, de 1 ano e oito meses, foi raptado da mansão da família, numa região rural de Nova Jersey.
O resgate foi pago – mas o bebê foi encontrado morto.
O caso chocou bem mais que meio mundo – e tornou-se uma dessas histórias que a memória coletiva se recusa a esquecer.
Quando vimos agora o filme de Kenneth Branagh, Mary fez uma comparação impressionante: o seqüestro do bebê Lindbergh é assim como o Titanic – o mundo não esquece jamais.
(É um paralelo em tudo por tudo impressionante – e que tem reflexos até mesmo na minha vida. Regina Lemos, minha segunda mulher, sempre foi fascinada pela história do seqüestro do bebê Lindbergh – e pelos livros de Agatha Christie. Escreveu uma bela reconstituição de todo o caso do seqüestro, em uma página inteira da edição de sábado do Jornal da Tarde, na época em que estávamos começando a nos conhecer. Um tempo depois, também para a edição de sábado do Jornal da Tarde, que publicava textos amplos, grandes reportagens, escrevi duas páginas recontando a tragédia do Titanic, aproveitando o pretexto de uma efeméride qualquer.
Xi, tergiversei feio. Ou, como diz meu amigo Luiz Carlos Toledo, sergiversei. Perdão.)
O caso do seqüestro do bebê Lindbergh é a base de toda a trama do Assassinato no Expresso Oriente. O nome Lindbergh não aparece – fala-se no seqüestro da filhinha do coronel Armstrong –, mas Agatha Christie não tenta esconder as semelhanças entre os fatos reais e os fatos que levaram aquelas pessoas tão díspares entre si, de tantas nacionalidades, a se reunirem naquela viagem Istambul-Calais do famoso expresso.
E aqui vem a questão do spoiler.
Atenção: a partir daqui, spoiler. Comenta-se sobre o desfecho da trama
Sim, a questão do spoiler.
Parece bastante improvável que algum eventual leitor tenha chegado até aqui e não saiba ainda o final da trama de Assassinato no Expresso Oriente. De qualquer forma, melhor pecar por excesso de zelo: se por absoluto acaso alguém que não conhece o final da história chegou até aqui, deve parar de ler este texto, porque vai se falar do desfecho da trama.
É para parar de ler já.
Lembrando:
O homem que é morto no Expresso Oriente, na noite em que a nevasca cobre os trilhos e o trem é obrigado a parar, o americano Ratchett (o papel do camaleão Johnny Depp), é na realidade Cassetti, o homem que havia sequestrado o bebê Armstrong, e conseguira escapar da Justiça.
E então a sra. Hubbard, ou melhor, Linda Arlen, que usava o nome falso de Hubbard, e era a avó materna da garotinha Daisy Armstrong, seqüestrada e assassinada, planejou a vingança. Reuniu 11 pessoas de alguma forma ligadas à família Armstrong, que sofreram tremendamente com o seqüestro e assassinato da garotinha, para matar o assassino.
Já que a Justiça não conseguiu condenar o assassino, eles mesmos fariam justiça.
A barbárie. A justiça pelas próprias mãos. A vingança, o olho por olho dente por dente, a Lei do Talião.
Para dar uma aparência de coisa certa, justa, são 12 pessoas – o mesmo número de pessoas de um tribunal do júri.
No filme, Kenneth Branagh vai além e coloca as 12 pessoas sentadas como se fossem os apóstolos em torno de Cristo na Santa Ceia (na foto abaixo).
A imagem é forte, violenta, chocante mesmo.
Mas aí é que está. O filme de Kenneth Branagh não faz a defesa da da Lei do Talião.
O livro de Agatha Christie, a rigor, a rigor, defende a justiça pelas próprias mãos. No livro, o detetive Hercule Poirot não tem drama de consciência algum em decidir esconder a verdade das autoridades policiais do lugar em que o trem pára. Inventa uma história de um assassino que entrou no trem de noite, depois da nevasca – e fica por isso mesmo.
Nenhum drama de consciência.
Já o Poirot de Kenneth Branagh sofre demais.
Vai contra todas as crenças dele defender um assassinato.
E então o Poirot que vem na pele de Kenneth Branagh exprime sua angústia, ao final da trama, assim:
– “Pela morte de um inocente, uma vida por uma vida. Havia o certo e havia o errado. E havia a senhora (ele está se dirigindo a Mrs. Hubbard, que havia assumido a responsabilidade por tudo). Não posso julgar isso. Vocês devem decidir. Desejam ficar livres, sem punição pelo seu crime. Então vocês terão que cometer mais um. Não vou impedir vocês.”
E, neste momento, põe à disposição das 12 pessoas dispostas à frente dele como se fossem os apóstolos na última ceia de Cristo o revólver que estivera carregando.
– “Vocês jogam meu corpo no lago e saem livres na estação. Vocês têm que me silenciar. Eu não posso mentir.”
É um desafio dificílimo, é uma corda bamba danada
Não há nada disso no livro, nem no filme de Sidney Lumet. Isso é coisa de Kenneth Branagh. Ele resolveu botar na história um questionamento firme dessa coisa que para Agatha Christie parecia tranquila, sem problemas.
Alterar completamente os fatos, isso ele não poderia fazer. Não poderia botar Hercule Poirot dizendo à polícia da Croácia que aquelas 12 pessoas haviam cometido um assassinato. Seria violento demais.
Mas ele mudou o clima. Mudou totalmente o tom.
O que no livro é um final feliz – Oba, oba, matamos o assassino! E o Poarou não vai nos dedar! Oba, oba! –, no filme vira uma coisa dura, pesada, torturante, angustiada.
– “Tenho visto as fraturas da alma humana. Tantas vidas partidas, tanta dor e raiva, abrindo caminho para o veneno do sofrimento profundo, até que um crime se transforma em vários. Sempre procurei acreditar que o homem é racional e civilizado. Minha própria vida depende dessa esperança, da ordem e do método e das pequenas células cinzentas, mas agora talvez eu esteja sendo levado a ouvir, em vez disso, o meu coração. Compreendi, neste caso, que as escalas da justiça podem não ser perfeitamente equilibradas, e que eu talvez tenha que pela primeira vez na vida aprender com o desequilíbrio.”
É uma corda bamba danada para alguém tentar se equilibrar nela – essa de ao mesmo tempo reconstituir na tela a trama de Agatha Christie e ir contra o tom em que a trama termina. Mostrar um caso de vingança, de justiça feita com as próprias mãos, método que a autora claramente defende, e, ao mesmo tempo, condenar o método.
Refilmar Assassinato no Expresso Oriente contestando a premissa básica da história é algo mais delicado, mais difícil do que ter à sua frente dois ovos que meçam exatamente a mesma coisa – que é como Kenneth Branagh abre seu filme.
Mas parece que o cara gosta de desafios difíceis.
Na última sequência de Assassinato no Expresso Oriente, alguém diz a Hercule Poirot que estão exigindo sua presença no Egito: houve um assassinato no Rio Nilo.
Kenneth Brannagh e sua trupe já estão (escrevo em agosto de 2018) refilmando Morte Sobre o Nilo, para lançamento em 2019.
Já escrevi cem vezes que não consigo entender por que as pessoas gostam de refilmar histórias que já foram contadas em bons filmes. Que não gosto de ver refilmagens.
A novela de Agatha Christie Morte Sobre o Nilo teve uma belíssima versão cinematográfica em 1978 – quatro anos depois do Assassinato no Expresso Oriente de Sidney Lumet. Dirigido com competência por John Guillermin, com roteiro do excelente Anthony Shaffer, o filme excedia no quesito elenco, com o grande Peter Ustinov como Poirot e, entre os demais passageiros do navio que viajava pelo Nilo, Bette Davis, Mia Farrow, Jane Birkin, Angela Lansbury, David Niven, Maggie Smith, Jack Warden.
O normal seria eu jurar que não vou refilmagem de uma obra tão boa.
Como é Kenneth Branagh, confesso que espero ansioso a chegada de Morte Sobre o Nilo 2019.
Anotação em agosto de 2018
Assassinato no Expresso Oriente/Murder in the Orient Express
De Kenneth Branagh, EUA-Malta, 2017
Com Kenneth Branagh (Hercule Poirot), Tom Bateman (Monsieur Bouc, o diretor da empresa), Michelle Pfeiffer (Mrs. Hubbard, a americana falante), Daisy Ridley (Mary Debenham, a governanta inglesa), Leslie Odon Jr. (Dr. Arbuthnot), Penélope Cruz (Pilar Estravades, a missionária), Judy Dench (Princesa Dragomiroff), Johnny Depp (Edward Ratchett, a vítima), Josh Gad (McQeen, o secretário de Ratchett), Derek Jacobi (Masterman, o criado de Ratchett), Sergei Polunin (Conde Andrenyi), Lucy Boynton (Condessa Elena Andrenyi), Willem Dafoe (Gerhard Hardman), Olivia Colman (Hildegarde Schmidt, a criada da princesa), Marwan Kenzari (Pierre Michel, o condutor), Manuel Garcia-Rulfo (Biniaamino Marquez)
Roteiro Michael Green
Baseado na novela de Agatha Christie
Fotografia Haris Zambarloukos
Música Patrick Doyle
Canção “Never forget” por Patrick Doyle-Kenneth Branagh, interpretada por Michelle Pfeiffer
Montagem Mick Audsley
Casting Lucy Bevan
Desenho de produção Jim Clay
Produção Twentieth Century Fox, Genre Films, Kinberg Genre, The Mark Gordon Company, Scott Free Productions.
Cor, 114 min (1h54)
***
Qualquer fã ardoroso da velha sabe o quanto ela se decepcionava com as escolhas de atores para o seu Poirot (fato comentado com mais afinco na “Autobiografia” e em “A morte da Sra. McGinty”), então eu suponho que ela não fosse gostar desse filme, onde o Kenneth Branagh deu uma de Seu Madruga (“A estrela do espetáculo é o diretor!”) e se escalou como Poirot mesmo sem ter nenhuma semelhança com o biotipo (parece brincadeira, mas até hoje a melhor personificação, na minha opinião, é James Coco em “Murder by Death”, uma paródia).
Por outro lado, mesmo sendo fã ardorosa, defendo que quando você compra os direitos de qualquer obra você vai adaptar da forma que mais lhe apetece, criando uma obra distinta, então não tenho preconceito com versões de livros, ainda mais se a DIVA Michelle estiver no elenco.
PS: Pilar Estravados é personagem em outro livro, “O natal de Poirot”, onde se destaca bem mais que nessa mudança para o filme.
Senhorita, você é extraordinária!
Em tudo por tudo!
Obrigado, e um abraço!
Sérgio
Não sou não, você que é!!!
Um abraço do tamanho do Orient Express 🙂
Parece-me inferior à versão de Sidney Lumet. Agora há remakes de tudo, ainda estou à espera de aparecer um atrevido que se atire a Citizen Kane de Orson Welles ou a Vertigo de Alfred Hitchcock.
Achei desengraçado. Nem consegui identificar as personagens durante o filme.
O Guardian escreveu;
O elenco de grandes nomes inclui todos, de Johnny Depp a Judi Dench, mas esta adaptação de Agatha Christie bloqueada pela neve é um fracasso antiquado e empoeirado.
Parece-me correcto.