A Noiva Estava de Preto / La Mariée Était en Noir

3.5 out of 5.0 stars

A Noiva Estava de Preto (1968) é muito provavelmente um dos mais hitchcockianos de todos os filmes que não foram feitos por Alfred Hitchcock. É Hitchcock puro, até a medula – François Truffaut estava no auge de sua paixão pelo mestre inglês quando fez o filme.

No ano anterior, 1967, havia lançado a primeira edição de Hitchcock, o livro que transcrevia as longas, quase intermináveis sessões de entrevistas que havia feito com seu ídolo, em 1962, na Universal City, em Los Angeles, dissecando cada um dos filmes do cineasta.

Em seu filme anterior, Fahrenheit 451, de 1966, rodado fora de seu país e em língua que não dominava, Truffaut já havia usado o compositor que era então o grande colaborador de Hitchcock, Bernard Herrmann. E Herrmann é um daqueles compositores que têm um estilo único, personalíssimo: depois de três acordes dele, qualquer espectador um pouco mais atento seria capaz de dizer que isso aí é igual à trilha dos filmes de Hitchcock.

Há vários momentos em La Mariée Était en Noir – alguns longos travellings, por exemplo, a câmara andando no meio das ruas, mostrando as casas, os transeuntes, ao som da trilha de Bernard Herrmann – que poderiam perfeitamente estar em um filme de Hitchcock.

Exatamente como os melhores filmes de Hitchcock, A Noiva não tem absolutamente nada a ver com o whodunit – o quem foi que matou, o tipo de história policial em que o maior interesse do escritor e/ou diretor é esconder até o fim a identidade do assassino. Essa coisa em que Agatha Christie é a especialista perfeita.

Não, não, nada disso: como nos bons filmes de Hitchcock, o espectador de A Noiva sabe muito bem a identidade do assassino, perdão, da assassina. O espectador vê a assassina agindo o tempo todo.

O que A Noiva esconde durante um bom tempo não é o quem foi que matou – é o por que foi afinal que matou. Se Hitchcock fosse, além de realizador, também um crítico, um estudioso da História do cinema – como Truffaut era –, poderia talvez dizer que o MacGuffin de A Noiva é exatamente este: o espectador sabe quem está cometendo os assassinatos – mas demora a perceber por quê. (Falo de MacGuffin, recurso e expressão muito usados por Hitch, mais adiante.)

A Noiva Estava de Preto é um filme absolutamente hitchcockiano. E, no entanto, é também François Truffaut em estado puro.

Essa é uma apenas uma das características mais fascinantes deste filme maravilhoso.

O ruído de uma grande impressora, os acordes de Herrmann, a Marcha Nupcial

Os créditos iniciais já são fantásticos: a câmara está sobre uma máquina impressora que está produzindo diversas cópias de uma pintura ultra-realista em que aparece uma bela mulher dos seios desnudos para cima – e o rosto da mulher pintada pelo artista é, indiscutivelmente, o de Jeanne Moreau.

Jeanne Moreau. O espectador, em especial o eventual espectador jovem, hoje em dia, não tem a obrigação de saber, mas Jeanne Moreau está aqui aparecendo pela segunda vez em um filme de François Truffaut – e olha que A Noiva é o longa-metragem de número 6 do autor. Ela havia sido a protagonista do longa número 3, Jules et Jim (1962) – e havia sido também uma grande paixão do jovem diretor.

(O que não chega a ser estranho, de forma alguma: Truffaut se apaixonou por praticamente todas as atrizes que filmou.)

Enquanto vemos a impressora concluindo mais uma e mais uma e mais uma reprodução da pintura em que aparece o rosto da bela naja desnuda, e os nomes dos atores, ouvimos o barulho mecânico, repetitivo, da máquina, e em seguida o início da trilha sonora, um Bernard Herrmann da mais alta qualidade – que aos poucos vai virando a Marcha Nupcial de Mendelssohn.

A Marcha Nupcial de Mendelsssohn vai aparecer várias vezes ao longo do filme.

A primeira tomada após os créditos mostra Jeanne Moreau de preto, sentada em uma cama, olhando um álbum de fotos.

A sequência é bem rápida.

Ela se levanta, corre para a janela e tenta pular. É impedida pela mãe.

Corta, e Julie Kohler (este é o nome da protagonista da história) está arrumando a mala para deixar a casa da mãe.

Ela naturalmente não conta para a mãe, mas está indo à procura de um sujeito chamado Bliss (Claude Rich), para matá-lo.

Só quando o filme está com 54 minutos ficamos sabendo o motivo dos crimes

Julie aparece – maravilhosa, num vestido de noite todo branco – na festa de noivado de Bliss com a bela Gilberte (Michèle Viborel), no apartamento do noivo, num prédio bem alto de uma cidade litorânea não identificada. Bliss, um mulherengo renitente, obstinado, persistente, cede ao encanto de Julie e vai com ela até a varanda do apartamento.

O filme mostra muito claramente que um amigo de Bliss, Corey (o papel de Jean-Claude Brialy), acompanha o encontro dos dois.

Na varanda, Julie pede a Corey um copo d’água. Quando Corey aparece com o copo, ela joga a água num vaso de planta e pede um novo copo. Corey vai pegar a água – e nesse momento Julie, sem ser vista por ninguém, joga Bliss para fora da varanda. Morte imediata. Julie vai embora da festa bem rapidamente.

Depois de matar Bliss, Julie vai atrás de Coral (Michel Bouquet).

O espectador pode perfeitamente perceber que ela irá matar também aquele Coral, homenzinho tímido, fraco, frágil, inseguro – e de fato Julie mata Coral, muito bem matadinho.

O filme está com uns 35 minutos quando Coral está agonizando diante de Julie e vemos um flashback – ouve-se a Marcha Nupcial, vê-se um casal saindo de uma igreja logo após o casamento, familiares todos juntos, nas escadarias. Um tiro – e o noivo morre.

Julie partirá atrás de um terceiro sujeito, um tal René Morane (o papel de Michael Lonsdale), um burguês candidato a entrar na política. E é só quando, aos 54 minutos de filme, esse René Morane percebe que aquela mulher está ali para mata-lo, que finalmente o espectador ficará sabendo exatamente o que aconteceu no passado. Exatamente como e por que David Kohler, o noivo de Julie, foi morto com um tiro no momento exato em que saía da igreja após o casamento.

O filme se baseia em história de Cornell Woolrich, o mesmo de Janela Indiscreta

Truffaut e Jean-Louis Richard escreveram o roteiro com base na novela homônima de Cornell Woolrich, publicada em 1940, The Bride Wore Black. Não por acaso, de forma alguma por acaso, Hitchcock já havia feito um filme baseado em história do autor: Janela Indiscreta/Rear Window (1954) se inspira num conto de Woolrich. Também não por acaso, Truffaut voltaria a filmar uma história do autor, em 1969 – A Sereia do Mississipi.

Cornell Woolrich (1903-1968), contemporâneo dos grandes escritores de novelas policiais Dashiell Hammett, Raymond Chandler e Erle Stanley Gardner, tinha o dom da prolixidade. Escreveu dezenas e dezenas de novelas e contos. Escrevia tanto que, talvez para não dar bandeira, para não deixar tão clara essa prolixidade, usava também não um, mas dois pseudônimos diferentes, William Irish e George Hopley. Como bem nota a Wikipedia, nenhum outro autor escreveu tantas histórias que deram origens a filmes. Nem mesmo Stephen King. O homem é o absoluto campeão. Estão listados na Wikipedia nada menos que 34 filmes baseados em histórias criadas pela imaginação de Cornell Woolrich-William Irish-George Hopley.

Para citar só uns poucos, além deste A Noiva Estava de Preto:

O Homem Leopardo (1943), de Jacques Tourneur;

A Dama Fantasma (1944), de Robert Siodmak;

A Noite Tem Mil Olhos (1948), de John Farrow.

Casei-me com um Morto (1950), de Mitchell Leisen;

Janela Indiscreta (1954), de Alfred Hitchcock;

A Sereia do Mississipi (1969), de François Truffaut;

Martha (1974), de Rainer Werner Fassbinder;

Pecado Original (2001), de Michael Cristofer.

Truffaut puro: história de amor triste; homens fracos, mulher forte

As histórias de amor, nos filmes de François Truffaut, não são doces, belas, felizes. Muitíssimo ao contrário. São tristes, muitas vezes abertamente dramáticas, ou, pior ainda, trágicas. All you need is love, como dizem os Beatles – mais il n’y a pas d’amour heureux, como define Georges Brassens.

Talvez uma das pouquíssimas histórias de amor felizes que há nos filmes de Truffaut seja a de Julie com David – no passado, nos tempos antes do casamento, antes da época em que se passa a história. O espectador vê algumas poucas imagens, enquanto Julie conta que a vida inteira ela e David estiveram lado a lado, amigos desde a infância.

No dia do casamento, o tiro, David morto na escadaria da igreja.

História de amor triste é Truffaut puro.

E creio que dá para dizer que outra das características truffautianas de A Noiva Estava de Preto é o fato de ser a adaptação de uma obra literária. Nada menos de 10 dos 21 longa-metragens do cineasta se basearam em obras literárias. Os outros são histórias escritas diretamente para o cinema.

Truffaut fez 5 filmes policiais, histórias de crimes, criminosos. Thrillers, como se diz na língua de Hitchcock. Polars, como se diz na língua de Truffaut.

Há a presença de policiais e crimes em outros de seus filmes, como Um Só Pecado (1964) e A Mulher do Lado (1981), mas cinco são abertamente policiais, thillers, polars: Atirem No Pianista (1960), este A Noiva Estava de Preto, A Sereia do Mississipi (1969), Uma Jovem Tão Bela Como Eu (1972) e De Repente, Num Domingo (1983).

Todos esses cinco polars são baseados em histórias de autores norte-americanos. A Noiva e A Sereia do Mississipi, como já foi dito, em Cornell Woolrich. Atirem no Pianista, em David Goodis. Uma Jovem Tão Bela Como Eu, em Henry Farrell. E De Repente, Num Domingo, em Charles Williams.

Outra característica absolutamente truffautiana em A Noiva Estava de Preto: a personagem feminina é forte, os homens são fracos.

No livro François Truffaut editado pela Taschen, os autores Robert Ingram e Paul Duncan notam que, em Atirem no Pianista, o homem é “tímido e hesitante”, a mulher, “forte e decidida”.

Lembro que quase exatamente o mesmo acontece, por exemplo, com o bombeiro-policial Montag-Oskar Werner e a ativista Clarisse-Julie Christie em Fahrenheit 451. Ele é imaturo, até mesmo inocente, no mau sentido da palavra. Não percebe muito bem o que acontece a seu redor, o pano de fundo, o contexto; ela é forte, sabe perfeitamente o que está acontecendo e como lutar contra a situação.

Quase exatamente o mesmo acontece com o casal condenado ao amor louco em A Mulher do Lado: Mathilde-Fanny Ardant saiu daquela, está agora vivendo bem, numa boa, é feliz, tranquila; Bernard-Gérard Depardieu não se libertou jamais do passado, não consegue dominar seus demônios, é grande e forte por fora, no corpanzil, mas é inseguro, mal resolvido.

Exatamente o mesmo acontece em A Noiva Estava de Preto.

Julie Kohler é decidida, firme, dura. A perda do grande amor, exatamente no dia de seu casamento, a deixou endurecida, coração de pedra, e absolutamente segura no seu propósito de vingança. No único momento em que perde um pouco da segurança – embora não permita sequer que o espectador perceba que isso tinha acontecido –, após matar o terceiro homem, ela vai se confessar. E usa as palavras sábias, sensatas, equilibradas do padre – condenando o desejo de vingança, mostrando que ele não poderá levar de forma alguma a qualquer tipo de satisfação, de felicidade – como argumento para reforçar sua determinação, sua firmeza.

É uma sequência duríssima, pesada, forte: Julie transforma as palavras que ouve naquilo que ela deseja ouvir. Ignora o que está sendo dito, porque só quer ouvir o que ela mesma fala. Muda o deixa pra lá para o vá em frente.

Julie é decidida, firme, dura. Os homens que ela mata são frágeis, débeis, tíbios, inseguros, imaturos.

E, sim, são, todos eles – uns mais, uns menos –, machistas, porco-chauvinistas.

Truffaut mostra os homens como patéticos, tolos, inteiramente perdidos

Os homens, em muitos dos filmes de François Truffaut, são patéticos, pateticamente tolos, infantis – e machistas, porco-chauvinistas.

Robert Ingram e Paul Duncan dizem isso em seu livro François Truffaut quando falam de Atirem no Pianista. Lembram que uma das características do cineasta é expor “o chauvinismo em relação às mulheres”.

Em Atirem no Pianista, de fato, essa característica aparece de forma aberta, realçada, ampliada, exagerada. No meu comentário sobre o filme, transcrevi diálogos longos em que isso fica exposto de forma absolutamente nítida: os homens se referem às mulheres da forma mais tosca, grosseira, machista possível.

Em A Noiva Estava de Preto, é um absurdo.

Os homens – em especial os já citados Bliss (Claude Rich), Corey (Jean-Claude Brialy) e mais Fergus (o papel de Charles Denner) – já passaram bastante dos 30 anos, estão se aproximando da meia-idade, e no entanto agem em relação às mulheres como adolescentes, ginasianos, na explosão da testosterona. Só pensam naquilo, só querem saber daquilo – e as mulheres não são propriamente seres humanos, são bonecas infláveis dotadas de um buraco que é o centro do prazer, a razão da vida.

Bliss é um sujeito tão idiota, tão adolescente, que tenta cantar a mulher desconhecida na própria festa de seu noivado.

E quem não é adolescente cheio de espinhas e tesão é totalmente inseguro, fraco, tímido – o caso de Coral (Michel Bouquet) – ou então absolutamente narcisista, umbigocêntrico, adorador do som da própria voz – o caso de René Morane (Michael Lonsdale).

François Truffaut era um homem que amava apaixonadamente o amor, as mulheres e o cinema, não sei exatamente em que ordem. E tinha consciência de que os homens – o Planeta Homem, como diziam as moças da redação da revista Marie Claire, em seu início, quando passei por lá – estão mais perdidos que cego no meio de tiroteio do bangue-bangue mais cheio de tiros que possa haver.

A câmara de Truffaut é apaixonada pelas pernas das mulheres

Mas talvez o que torne este filme hitchcockiano o mais truffautiano possível sejam a paixão do cineasta francês pela beleza das mulheres, e, em especial, das pernas das mulheres – e o fato absolutamente perceptível, para quem gosta dos filmes de Truffaut, de que o personagem do pintor Fergus é a semente de O Homem Que Amava as Mulheres (1977), o longa-metragem de número 16 dos 21 do autor.

Truffaut, homem que amava as mulheres, fez elegias à beleza das pernas das mulheres desde Les Mistons, seu curta-metragem de 1957, até De Repente, Num Domingo, de 1983, que viria a ser seu último filme – morreria em 1984, com apenas 52 anos de idade, vítima de um câncer. Em Les Mistons, os pivetes do título babavam pelas pernas de Bernadette (Bernadette Lafont), que se tornavam visíveis quando ela, de saia, andava de bicicleta pelas ruas de Nîmes, uma cidade do Sul da França, não muito longe de Marselha. E De Repente, Num Domingo abre com a câmara seguindo pelas ruas de uma cidade não explicitamente identificada também do Sul, da Côte d’Azur, as pernas lindas, longas, extasiantes de Fanny Ardant, então senhora François Truffaut, embora não com assinatura em cartório.

Em A Noiva Estava de Preto, a câmara de Raoul Coutard – um dos melhores diretores de fotografia da Europa na segunda metade do século XX – mostra-se interessada em, sempre que possível, focalizar as pernas de Julie Kohler-Jeanne Moreau. Felizmente para a câmara de Raoul Coutard, para François Truffaut e para os espectadores, era 1968, e do outro lado da Canal da Mancha Mary Quant havia inventado essa maravilha que é a minissaia – e então Julie Kohler-Jeanne Moreau, jovem senhora, viúva de marido morto ao sair da igreja em que se casou, mulher aí de 30 e muitos anos, podia perfeitamente usar saias e vestidos não propriamente muito curtos, muito mini, mas que terminavam alguns dedos acima dos joelhos.

Sempre que pode, a câmara mostra as pernas de Julie Kohler-Jeanne Moreau. Em alguns momentos, com grande importância narrativa e impacto, como na sequência em que Julie Kohler começa a rondar a terceira vítima, o umbigocêntrico René Morane.

O espectador ainda nem sabia da existência de René Morane; Julie havia matado o segundo homem, e vemos um garotinho de cinco anos, Cookie (Christophe Bruno), que é buscado na escola pela mãe. Cookie e a mãe e caminham até sua casa – Julie os seguindo, a uma distância segura, a câmara em travelling fazendo as vezes de seus olhos.

Cookie fica jogando bola à frente de sua bela casa. A bola rola para fora, em direção à rua – e a câmara mostra em close-up o pé de Julie parando a bola com o pé. Vemos, ocupando a tela inteira, a bola, o sapato preto de salto alto, a perna de Julie-Jeanne Moreau até alguns dedos acima do joelho, até o início da saia.

Beleza de sequência, beleza de tomada. Beleza de pernas.

É de fato o ensaio final para O Homem Que Amava as Mulheres

Quando, mais adiante, Julie se apresenta no estúdio do pintor Fergus fingindo-se de modelo, teremos a chance de ver, em tomadas mais longas, as coxas de Jeanne Moreau.

Meu Deus do céu e também da terra, que coxas!

Quando interpretou Julie Kohler neste filme lançado em 1968, Jeanne Moreau estava 6 anos mais velha e um número de quilos indeterminado, mas expressivo, mais cheia do que quando fez Catherine, a parisiense alegre que, antes e depois da Segunda Grande Guerra, amou ao mesmo tempo dois homens, Jules et Jim – e fez o jovem diretor François Truffaut se apaixonar perdidamente.

Estava com exatos 40 anos no ano em que A Noiva Estava de Preto foi lançado. Tinha a derrière um pouquinho volumosa para os padrões da época – mas semelhante à de Marilyn Monroe, tão exibida em seus filmes da segunda metade dos anos 50.

E as coxas eram perfeitas, maravilhosas, sublimes.

A adoração da câmara pelas pernas de Jeanne Moreau é Truffaut em estado puro, neste filme hitchcockiano.

E a paixão exaltada, furiosa, apaixonada, do pintor Fergus-Charles Denner pela beleza das mulheres é, de fato, o ensaio que Truffaut fez para criar o personagem que o mesmo Denner interpretaria em O Homem Que Amava as Mulheres.

O Homem Que Amava as Mulheres me parece o mais pessoal de todos os filmes deste cineasta extraordinário que só fez filmes de alguma maneira pessoais. Identificar em A Noiva Estava de Preto o rascunho do personagem central, o homem apaixonado pelas mulheres do título, me fez gostar ainda mais do filme, ao revê-lo agora.

E é fascinante também ver – como eu até havia anotado, no texto bem pequeno que fiz sobre o filme ao revê-lo em 1998 – que as cenas finais antecipam o clima de Uma Jovem Tão Bela Como Eu. Não é o caso, evidentemente, de relatar o que acontece nas cenas finais, mas o fato é que Truffaut mostra as prisões da rica França no final dos anos 60 bem parecidas com as masmorras deste país miserável aqui, perdido para sempre no fundo do Tiers Monde.

 Alexandra Stewart, belíssima, aparece em uma sequência antológica

Duas ou três coisas sobre o filme e o contexto em que foi feito.

* Como já disse lá em cima, o livro das entrevistas de Truffaut com Hitchcock foi lançado em 1967, um ano antes do filme, e cinco longos anos após a série de entrevistas feitas na Universal City, em Los Angeles, Truffaut falando em francês, Hitch em inglês, e entre eles a personagem fundamental de todo o projeto, Helen Scott, que trabalhava no French Film Office de Nova York, uma americana criada na França, que, como escreveu Truffaut, dominava “perfeitamente o vocabulário cinematográfico nas duas línguas” e era “dotada de uma verdadeira solidez de julgamento”.

Truffaut jamais parou de trabalhar nesse livro. Manteve-se sempre em contato com Hitchcock, e. em 1983, 3 anos após a morte do mestre, publicou uma edição ampliada e atualizada do livro. Em 1993, lançou o que foi chamado de edição definitiva, com o nome de HitchcockTruffaut. Essa edição foi traduzida e lançada no Brasil em 2004 pela Companhia das Letras. É uma preciosidade.

* O MacGuffin. Disse lá em cima que falaria dele. No livro HitchcockTruffaut fala-se bastante de MacGuffin.

O livro The Films of the Sixties fala maravilhosamente do tema, no capítulo sobre Os Pássaros (1963):

“Todo filme de Hitchcock tem um MacGuffin: a chave que destranca uma explicação lógica para todas as coisas aparentemente insanas que estão ocorrendo ao longo da história. Sempre desfrutamos dos assustadores elementos de suspense: coisas estranhas estão acontecendo! Sempre, no entanto, o mistério é ao fim esclarecido, e as motivações passam a parecer bastante racionais – se menos que prováveis. Essa é a base da fórmula de sucesso de Hitchcock, e funcionou bem por mais de 30 anos. Mas em 1963 Hitchcock deu à sua audiência o maior choque de todos: um filme sem um MacGuffin.”

* Alexandra Stewart. Meu Deus, como é pequeno o papel de Alexandra Stewart.

A beleza de Alexandra Stewart me impressionava demais nos anos 60. A não ser que eu esteja muito enganado, a atriz canadense nunca teve um papel de protagonista, mas era presença frequente em filmes importantes dos melhores diretores. Estava fascinante, por exemplo, em Mickey One (1965), de Arthur Penn. Aparece pouco, mas linda, em Trinta Anos Esta Noite/Le Feu Follet (1963), de Louis Malle.

O próprio Truffaut a escalaria para fazer o papel de uma atriz que tentava esconder a gravidez em A Noite Americana (1973).

Aqui, reservou para ela o papel de Mademoiselle Becker, a professora do garotinho Cookie. Aparece em duas, no máximo três sequências. Menos de dois minutos na tela – mas como era bela!

A última sequência em que Alexandra Stewart aparece é magnifica.

Mademoiselle Becker havia sido presa, acusada de matar o pai de Cookie. Ao ver a notícia no jornal, Julie liga para a polícia, garante que foi ela a assassina, e pede para que libertem a professora inocente.

E então Mademoiselle Becker-Alexandra Stewart chega de volta à escola – e dezenas, dezenas, muitas dezenas de crianças correm para abraçá-la. A câmara dá um zoom para trás, para mostrar bem de longe aquela multidão de gentinha miúda cercando a professora querida que voltava.

Nessa tomada, Truffaut estava treinando para fazer Na Idade da Inocência/L’Argent de Poche (1976).

“Ao redor de Jeanne Moreau, um festival de grandes atores”

Leonard Maltin, o crítico que mais vendeu guias de filmes nos tempos em que se vendiam guias de filmes, deu 3.5 estrelas em 4 para o filme: “Suspense hitchcockiano sobre Moreau perseguindo e matando os cinco homens que acidentalmente mataram seu marido no dia do casamento. Homenagem excitante, interessante ao Mestre, até na trilha sonora de Bernard Herrmann (embora Truffaut tenha omitido a reviravolta do final da novela de Cornell Woolrich).”

Epa! É mesmo? Isso eu não sabia.

Vejo a sinopse do romance de Cornell Woolrich na Wikipedia. Diacho! De fato, Truffaut e seu co-roteirista Jean-Louis Richard fizeram outra história a partir da história do escritor. Nada contra. Mas deu vontade de ler o livro The Bride Wore Black.

O Guide des Films de Jean Tulard não gostou do filme. Deu uma única estrela – e ele só dá estrelas a um número bem pequeno de filmes:

“O próprio Truffaut diz que não gostava muito deste filme. Ele deve estar certo, porque, apesar dos bons atores, não dá para não pensar que essa longa série de mortes é pouco crível, e que o interesse pelo conjunto é de fato pequeno.”

Le Petit Larousse des Films, um guia de que cada vez gosto mais, ficou no muro. Não quis fazer – ao contrário do que é seu padrão – um parágrafo de sinopse e outro de considerações. Resumiu tudo num único parágrafo: “Viúva no mesmo dia de seu casamento, Julie elimina um após outro os cinco homens que ela acha que são responsáveis pela morte de seu marido. Ao redor de Jeanne Moreau, um festival de grandes atores.”

“Não se deve procurar vingança, a vingança não é nobre”

Eis aqui, então, finalmente, dois textos do próprio Truffaut sobre o filme.

Em abril de 1968, a época do lançamento, ele deu o seguinte depoimento á revista de cultura Lettres Françaises:

“Penso que A Noiva se parece um pouco com meus outros filmes. La Peau Douce retomava certos temas do Pianiste e de Quatre Cents Coups. Fahrenheit 451 relia os outros filmes. Em A Noiva, reencontramos um pouco o país imaginário de Fahrenheit 451, depois o princípio de temas americanos como em Pianiste, tratados dentro de um espírito francês. Recentemente, percebi que A Noiva parece até mesmo com Mistons: os cinco homens que Jeanne reencontra são os pivetes que cresceram. Se existe um traço comum a todos os meus filmes é que, no final das contas, a tela é ocupada por alguém que se encontra em falta.”

Dez anos mais tarde, em março de 1978, a revista L’Express publicou uma entrevista com Truffaut em que duas repórteres perguntaram a ele se, com o passar do tempo, os filmes dele inspiram maior afeição ou maior repulsa. A resposta:

“O único de que me arrependo por ter feito é La Mariée Était en Noir. Eu queria oferecer a Jeanne Moreau alguma coisa que não se parecesse com nenhum de seus outros filmes, mas não deu certo. Eis aí um filme ao qual as cores causaram um erro enorme. O tema não tem interesse: a apologia da vingança, isso na verdade me choca. Quando eu vi Le Vieux Fusil (O Velho Fuzil, de Robert Enrico, 1975, drama de guerra com Philippe Noiret e Romy Schneider), fiquei constrangido, e eu tinha feito a mesma coisa! Não se deve procurar vingança, a vingança não é nobre. A pessoa trai algo de si ao exaltar a vingança.”

François Truffaut não é apenas um realizador brilhante, um dos melhores que já houve, nem apenas um grande estudioso do cinema: é também um ser humano admirável.

Formalmente, este A Noiva é excepcional, um grande filme, um filmaço. Mas de fato ele faz a defesa da vingança – e isso é muito triste, como seu autor reconheceu perfeitamente.

“Não se deve procurar vingança, a vingança não é nobre. A pessoa trai algo de si ao exaltar a vingança.”

Vinte anos antes, uma curta anotação sobre o filme

Em 1998, ao rever o filme, fiz uma anotação curta, para mim mesmo – sempre gostei de registrar minhas impressões sobre os filmes. Quando, dez anos depois, em 2008, criei o 50 Anos de Filmes, postei diversas dessas minhas anotações pessoais, inclusive a sobre A Noiva Estava de Preto.

Acho interessante mantê-la aqui:

Anotação em 1998: Fantástico ver, em duas sessões corridas, como Truffaut é eclético e ao mesmo tempo é absolutamente fiel a si próprio (no mesmo dia, além deste filme, vi Domicílio Conjugal). Aqui a face mais visível é a do amante do mestre Hitchcock. A música de Bernard Herrmann, ela própria sempre carregada da assinatura, pessoal e intransferível, ajuda, e muito, a dar um clima hitchcockiano, assim como os muitos planos longos, câmara suavemente em grua.

A câmara é absolutamente apaixonada pela beleza de La Moreau, que faz Julie, a personagem central; permanece nela longamente, como os olhos do pintor interpretado por Charles Denner. Os cinco homens que, sem querer, mataram o marido de Julie, têm em comum o amor pelas mulheres.

Mas é o personagem de Denner que resume mais claramente isso; as explicações que ele dá a Julie a respeito de sua paixão pelas mulheres antecipam O Homem que Amava as Mulheres, que Truffaut faria dez anos mais tarde (assim como a câmara seguindo as pernas de Christine em Domicílio Conjugal). As cenas finais, na prisão, antecipam o clima de Uma Jovem Tão Bela Como Eu.

Anotação em abril de 2018

A Noiva Estava de Preto/La Mariée Était en Noir

De François Truffaut, França-Itália, 1968

Com Jeanne Moreau (Julie Kohler)

e Jean-Claude Brialy (Corey), Michel Bouquet (Coral), Charles Denner (Fergus), Claude Rich (Bliss), Michael Lonsdale (René Morane), Daniel Boulanger (Delvaux), Alexandra Stewart (Mademoiselle Becker), Sylvine Delannoy (Madame Morane), Luce Fabiole (a mãe de Julie), Michèle Montfort (uma das modelos de Fergus), Paul Pavel (mecânico), Gilles Quéant (juiz), Michèle Viborel (Gilberte), Serge Rousseau (David, o noivo), Christophe Bruno (Cookie, o garotinho, filho de René Morane)

Roteiro e adaptação François Truffaut e Jean-Louis Richard

Baseado na novela de Cornell Woolrich

Fotografia Raoul Coutard

Música Bernard Herrmann

Montagem Claudine Bouché

Produção Les Films du Carrosse, Les Productions Artistes Associés,Dino de Laurentiis Cinematografica.

Cor, 107 min (1h47)

R, ***1/2

25 Comentários para “A Noiva Estava de Preto / La Mariée Était en Noir”

  1. Transcrevo comentário postado pelo Ivan junto da primeira anotação que fiz sobre o filme. (Sérgio Vaz)

    Ivan Postado em 21 dezembro 2013 às 11:56 am | Permalink
    O filme é bastante focado nas conversas da Julie com suas vítimas e, também destaca a grande atração que ela exercia sôbre eles.
    O que digo a seguir não é spoiler pois está na sinopse.
    Mas não consegui digerir bem como ela descobriu quem matou seu marido. Que para mim, ela não descobriu senão, teria matado só ele. Mas (pelo filme) com todo seu ódio ela mata todos.
    E também como ela descobriu o lugar onde cada um deles estava.
    Mas isto talvez seja muita exigência minha e não desabona em nada este ótimo filme.
    Aquele ditado “vingança é um prato que se come frio” , se aplica muito bem nela em relação à última vítima. O que ela fez para chegar até ele.
    A frieza dela era uma coisa … ela já era assim ou teria ficado assim ?
    Acho que foi a primeira vez que vi uma marcha nupcial tão lúgubre.
    Se aquela mulher desse muitas “roubadas” no gim do sujeito, ía acabar todo aguado.
    “O champanhe é o leite dos adultos.”
    “Não esqueças o que dizem os Italianos, tôdas as mulheres são umas … exceto minha mãe que é uma santa.”
    Pergunto eu: Será mesmo verdade ?
    Para uma vítima ela vestia branco para outra, vestia preto. Sendo que para a quarta (o pintor) ela vestiu branco e preto.
    Achei a Jeanne Moreau bem rolicinha.
    Será que sou só eu que acho a Jeanne Moreau e a (falecida) Norma Bengell tão parecidas?
    Um abraço !!

  2. Que texto maravilhoso pra alegrar o fim do feriado!!! Um dos melhores finais de filmes já feitos…

    PS: O ator que interpreta o Cookie, no texto, está creditado com o nome do ator que interpreta o pai.

  3. Senhorita, permite que lhe dê um beijo na testa? Muito obrigado: correção já feita. Christophe Bruno chamava-se o garoto que faz Cooke, o filho de René Morane.

    Mas que olho preciso você tem, hein, Senhorita? Parabéns! E, de novo, obrigado.

    Sérgio

  4. Quem deve agradecer somos nós, que temos a sorte de contar com o 50 Anos S2 =)

  5. Truffaut era um ser humano admirável? Será? Como crítico de cinema, ele foi um dos principais responsáveis por destruir a reputação de importantes cineastas franceses da geração anterior a Nouvelle Vague (nomes como Julien Duvivier, Claude Autant-Lara, Jean Delannoy, etc). Detalhe: os “defeitos” que Truffaut apontava nos filmes desses cineastas franceses também estavam presentes nos filmes dos seus adorados cineastas americanos. Afinal de contas, os americanos da “Era de Ouro” de Hollywood também filmavam
    em estúdio, seguiam o roteiro ao pé-da-letra e não faziam malabarismos com a câmera. Qual era a intenção, então, de Truffaut ao atacar os seus colegas franceses? Tomar o lugar deles, como de fato conseguiu, ao se tornar um dos mais prestigiados e importantes cineastas do mundo em atividade na década de 1960? Será que um ser humano que age assim é admirável?

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