O que Woody Allen diz em seu filme de 2004, Melinda e Melinda, não é complicado, complexo. É o que ele vem dizendo em muitos de seus filmes. A rigor, a rigor, coisas muito simples, quase um conjunto de truísmos: a vida é curta, aproveite bem cada momento; tente, se possível, não fazer muito drama, não complicar, não desperdiçar tempo e energia.
Paul McCartney ainda não tinha sequer chegado aos 30 anos quando simplificou essa mesma lição em poucas palavras, dois curtos versos, em “We can work it out”, de 1967: “Life is very short and there’s no time for fussing and fighting, my friend”.
O professor John Keating interpretado por Robin Williams em Sociedade dos Poetas Mortos (1989) usava a expressão latina de apenas duas palavras para dizer o mesmo: “Carpem diem” – que traduzia, se não estou enganado, por “seize the day”, agarrem o dia, aproveitem o dia.
Moral da história de fato muito simples, quase um truísmo, uma obviedade. O duro, aí, não é saber. Saber disso, todo mundo sabe. Difícil é seguir o conselho no dia-a-dia, praticar, vivenciar, executar o que sabemos que temos que executar, mas que passamos a vida não executando, enquanto ficamos fazendo outros planos, para citar mais um verso impecável, este do antigo parceiro de Paul, John Lennon.
Mas então: o que Woody Allen tem a dizer em Melinda e Melinda é bem simples. Fantástica é a forma complicada que ele arranjou para dizer isso. Criou três diferentes histórias e mais de uma dúzia de personagens que ficam cruzando na tela pondo à prova a capacidade de concentração do espectador.
Uma delícia.
A essência da vida é cômica. Ou seria um grande drama?
Como Broadway Danny Rose (1984), Melinda e Melinda começa com um grupo de amigos reunidos ao redor de uma mesa, conversando e bebendo. Em Broadway Danny Rose era um grupo grande de gente do show business de Nova York. Aqui, são quatro pessoas apenas, três homens, uma mulher, também ligados ao show business. Sy (Wallace Shawn, veterano nos filmes de Allen) é autor de comédias. Max (Larry Pine) escreve dramas. Os outros dois à mesa são Al (Neil Pepe) e Louise (Stephanie Roth Haberle).
O tema da conversa é o amor a vida a morte – se tudo no mundo é uma comédia, ou um drama. Os dois escritores defendem idéias opostas. Sy, o que faz comédias, acha que o forte é o drama, enquanto Max, o que faz dramas, realça que a vida é cômica.
O diálogo é esplendoroso.
Sy, o das comédias: – “A essência da vida não é cômica – é trágica. Não há nada engraçado sobre a terrível existência humana.”
Max, o dos dramas: – “Discordo. Os filósofos consideram a vida absurda porque, no final, o que podemos fazer é rir. As aspirações humanas são irracionais, ridículas. Se o que há por trás de nossa existência é trágico, minhas peças renderiam mais que as suas, porque minhas histórias tocariam mais fundo a alma humana.”
Sy, o das comédias: – “É exatamente por tocarem nas dores da vida que as tragédias fazem com que as pessoas queiram ver as minhas peças. Para fugir da tragédia. A tragédia confronta. A comédia permite uma fuga, um escape.”
Duas histórias de Melinda, uma cômica, uma dramática
Al conta uma história que aconteceu recentemente com conhecidos dele, e pergunta se aquilo é uma comédia ou um drama. Um jovem casal – ele um ator à procura de um papel – estava oferecendo um jantar em seu apartamento para dois amigos e para um diretor de teatro. O casal queria impressionar o diretor. Nisso, de repente, inesperadamente, toca a campainha, uma mulher irrompe no apartamento do casal, atrapalha o jantar…
Max diz que ali há os elementos fundamentais de um drama. Sy contesta: há naquela situação tudo para se criar uma boa comédia romântica.
E a partir daí acompanharemos as duas possíveis histórias de Melinda, a moça que aparece de repente no jantar que os anfitriões pretendiam fosse gostoso, animado, refinado – que causasse uma excelente impressão no visitante ilustre.
Vamos vendo simultaneamente as duas histórias que os escritores vão inventando na mesa do restaurante – uma dramática, uma cômica.
Algumas situações são bem parecidas nas duas histórias, porque é como se os escritores fossem repentistas nordestinos, ou gaúchos – um vai aproveitando uma dica do outro, colocando na história um elemento que o outro usou. Então, por exemplo, nas duas histórias haverá um pianista que terá um envolvimento com Melinda; nas duas histórias aparecerá um dentista.
Só Melinda é interpretada nas duas versões pela mesma atriz, a estonteantemente bela australiana Radha Mitchell. As pessoas em volta dela são umas na versão drama, e outras na versão comédia, o que faz com que o espectador tenha que se acostumar com os nomes de uma dúzia de personagens.
Melinda chega exausta, suada, uma pilha de nervos
Na versão drama da história, Melinda chega de repente, sem avisar, ao apartamento do casal Lee e Laurel (Johnny Lee Miller e Chloë Sevigny) no meio de um jantar para seis pessoas. Lee, um ator desempregado, queria impressionar Jack (Matt Servitto), um diretor que está para montar o elenco de sua próxima peça. Além da mulher de Jack, Sally (Arija Bareikis), está presente o casal Peter e Cassie (Zak Orth e Brooke Smith).
Laurel, Cassie e Melinda eram amigas de infância – garotas ricas da região da Park Avenue.
A chegada de Melinda quebra inteiramente o clima. Ela irrompe na sala com um aspecto horroroso, exausta, suada, carregada de malas – viajou vários dias de ônibus, desde o Meio-Oeste – e é visivelmente uma pilha de nervos. Acende um cigarro, pede um uísque. Veio se hospedar por um tempo na casa de Lee e Laurel.
Sua história de vida nos últimos anos tinha sido uma sucessão de tragédias. Havia se casado com um médico de St. Louis, e tinham tido dois lindos filhos, mas o marido tinha se envolvido com uma mulher mais jovem e ela mesma havia se apaixonado por um fotógrafo de nome romântico. O marido tinha ido à Justiça pela guarda dos filhos, e vencera.
Bem mais tarde, a Melinda do drama contará uma outra versão de sua história, ainda mais trágica.
Melinda aparece depois de tomar 28 pílulas para dormir
No restaurante, na mesa de quatro, Sy, tendo ouvido esse início de história contado pelo amigo Max, apresenta a sua versão.
Na versão dele, que em tudo vê a comédia humana, Melinda estava morando, havia poucas semanas, no mesmo prédio do casal Hobie e Susan (os papéis de Will Ferrell e Amanda Peet). Hobie era um ator desempregado, e Susan, uma assistente de diretora de cinema e aspirante a diretora. Tinha pronto um roteiro de um filme sobre a sexualidade feminina, mas precisa encontrar um produtor, alguém que entrasse com uns US$ 2 milhões.
Numa determinada noite, Hobie e Susan estavam oferecendo um jantar para um casal de amigos, Jennifer e Doug (Christina Kirk e Andy Borowitz), e para um convidado especial, Steve (David Aaron Baker), um ricaço que talvez se interessasse em entrar com um dinheiro para financiar o filme de Susan.
Estavam prontos para começar a comer o delicioso jantar que havia sido preparado por esmero por Hobie quando a campainha toca, e entra Melinda, a vizinha do andar de baixo.
A Melinda da versão comédia tem cabelos lisos, diferentes dos encaracolados da Melinda versão drama. É menos ansiosa, menos nervosa – mas não chega a ser propriamente um exemplo de pessoa saudável, como mostra o diálogo que rola aí:
Melinda: – “Ahn… Eu tenho tido uns dias ruins, e então tomei algumas pílulas para dormir.”
Hobie: – “Pílulas para dormir? Quantas?”
Melinda: – “Ahn… Vinte e oito.”
Susan: – “Meu Deus, Hobie, vá fazer um café.”
Melinda: – “Não, eu sou alérgica a café. Mas você teria uma vodca?”
Os convidados falam em chamar uma ambulância, um médico, mas ninguém toma qualquer providência. Melinda avisa que está passando mal, que vai vomitar. Aí Hobie intervém: – “No tapete, não! Venha até o banheiro!”
Nas duas versões, apresentam um dentista para Melinda
Na versão drama, as amigas Laurel e Cassie levarão a pavorosamente nervosa, sempre à beira de um ataque Melinda a uma festa, para que ela conheça Bud (Geoffrey Nauffts), um dentista simpático, desportista, viúvo, pai devotado de um garotinho. Ela não vai se interessar por ele – mas sentirá grande atração por Ellis, o pianista convidado para a festa (o papel do sempre bom Chiwetel Ejiofor).
Vai rolar um belo caso entre eles – mas depois virá mais um grande drama.
Na versão comédia, Susan vai apresentar Melinda – aqui uma neurótica bem mais sob controle do que a outra – a um dentista riquíssimo, aventureiro, que adora fazer safáris na África, tem um Bentley e uma casa fantástica em Hamptons, o bairro à beira-mar ao Norte de Nova York exclusivíssimo dos muitíssimos ricos. O dentista, Greg, é interpretado por Josh Brolin.
Melinda não vai se interessar por ele, e sim por um pianista, Billy (Daniel Sunjata).
Já Hobie, o ator desempregado, cuja mulher, Susan, não quer saber de sexo faz tempo, se apaixonará tremendamente por Melinda. Um amigo de Hobie, Walt, insistirá com ele para que revele seus sentimentos a Melinda. Walt é interpretado por Steve Carell, que, em 2004, ano de lançamento do filme, já era bastante conhecido; no entanto, ele aparece apenas em duas ou três sequências, bem rapidamente, como se fosse um iniciante.
E ainda vão apresentar para Hobie uma moça chamada Stacey (a bela Vinessa Shaw), uma republicana que trabalha em Wall Street, desculpa para Woody Allen se sair com boas piadas gozando os republicanos.
“Ela é deslumbrante”, diz Hobie. “Eu não tinha idéia de que uma republicana podia ser tão sexy.”
E para o próprio avião, o mulherão em pessoa, Hobie diz: – “Acho que eu tenho que avisar você. Eu sou liberal.”
E Stacey: – “Oh! Você diz… politicamente, ou no quarto?”
Hobie: – “Eu estava me referindo à política. No quarto, eu sou um liberal de esquerda.”
Há personagens demais. Muita gente não gostou do filme
Radha Mitchell. Chloë Sevigny. Will Ferrell, Amanda Peet. Chiwetel Ejiofor. Josh Brolin. Vinessa Shaw. Brooke Smith. Steve Carell.
Mais outra meia dúzia, talvez mais uma dezena de atores menos conhecidos.
É muito ator, é muito personagem.
Confesso que eu, um fanático por Woody Allen há muitas décadas, tive alguma dificuldade em acompanhar tanta gente, tanto nome, tanta relação entre um e outro.
Dá perfeitamente para imaginar que o filme não tenha agradado a muita gente.
Há boas piadas, os atores são ótimos, a idéia original de a mesma história poder ser vista como uma comédia ou um drama é deliciosa – “o que dá pra rir dá pra chorar”, dizia Billy Blanco. Ou “A vida pode ser uma comédia ou uma tragédia – tudo depende da maneira como você a encara”, como diz a tagline, a frase promocional nos cartazes do filme.
Mas é muito ator, é muito personagem.
Um fase de filmes tidos como menores
Muitos críticos classificaram os filmes que Woody Allen fez entre 1997 – o ano de Desconstruindo Harry, que veio depois do maravilhoso e aclamado Todos Dizem Eu Te Amo – e exatamente 2004, o ano deste Melinda e Melinda, como sendo menores. De uma fase mais fraca de sua carreira.
Que carreira, meu Deus do céu e também da terra. Mais de 50 títulos, 50 filmes escritos e dirigidos por ele, ao longo de 50 anos. Não há nada igual na História do cinema – a não ser, talvez o mestre dele, Ingmar Bergman.
Foram várias fases diferentes, ao longo deste meio século de produção ininterrupta. Depois de um início mais baseado em esquetes do que propriamente em histórias mais completas, veio a Era Diane Keaton, de 1972 a 1979, que incluiu duas magníficas obras-primas, Annie Hall (1977) e Manhattan (1979), e uma primeira incursão no drama, Interiores (1978).
Durante a Era Mia Farrow, de 1982 a 1992, foram 13 filmes, entre eles uma obra-prima, A Rosa Púrpura do Cairo (1985), comédias irresistíveis, como Hannah e Suas Irmãs (1986) e A Era do Rádio (1987), e algumas obras pesadas, densas, às vezes bastante sombrias – A Outra/Another Woman (1988), Crimes e Pecados/Crimes and Misdemeanours (1989), Neblina e Sombras/Shadows and Fog (1991).
Depois do fim da Era Mia Farrow voltaram as comédias escarradas, escancaradas, alegres, como Poderosa Afrodite/Mighty Aphrodite (1995) e Todos Dizem Eu Te Amo/Everyone Says I Love You (1997).
E, na virada do novo século, do novo milênio, viria o que é considerado o período de obras “menores”: Poucas e Boas (1999), Trapaceiros (2000), O Escorpião de Jade (2001), Dirigindo no Escuro (2002), Igual a Tudo na Vida (2003), e este Melinda e Melinda (2004).
Foi, de fato, a única fase em que a crítica torcia o nariz para seus filmes, e as salas de cinema já não se enchiam tanto para vê-los. A empresa que distribuiu muitos de seus filmes, a Orion, tinha falido, e ele andou precisando arranjar financiamento fora de casa – O Escorpião de Jade, de 2001, por exemplo, é uma co-produção EUA-Alemanha, e Igual a Tudo na Vida teve dinheiro de produtores franceses e ingleses.
Voltaria, depois, a ser aclamadíssimo, especialmente a partir de seus filmes produzidos na Europa, os brilhantes Match Point (2005) e Scoop (2006), culminando com o sucesso retumbante de Vicky Cristina Barcelona (2008).
Tenho revisto os filmes dessa fase “menor” – e a conclusão é sempre de que o “menor” Woody Allen é melhor que 95% de tudo o que se produz no mundo. Poucas e Boas, Trapaceiros, O Escorpião de Jade são todos belos filmes. E mesmo Igual a Tudo na Vida e este Melinda e Melinda, que de fato não estão à altura da maioria das obras dele, têm imensas qualidades.
“Eu acredito em mágica. É a única coisa que pode nos salvar”
Fiquei encantado com um pequeno detalhe: uma lâmpada de lata, parecida com os desenhos que se fazem da lâmpada mágica de Aladim, que aparece duas vezes – uma na história dramática, outra na história cômica.
Na versão comédia, Hobie, absolutamente apaixonado por Melinda, vai a uma loja de antiguidades à procura de um presente para dar a ela. E encontra uma lâmpada, encanta-se, pega nela, passa a mão, fascinado.
Isso acontece quando o filme já se aproxima do final. O espectador já havia visto uma lâmpada idêntica bem antes: na história dramática, a lâmpada aparece na tal grande festa à qual as amigas Laurel e Cassie levam Melinda, na esperança de que ela se interesse por Bud, o dentista desportista. Melinda se ausenta do salão principal em que as pessoas estão reunidas, e vai para uma pequena sala praticamente vazia. É ali que ela começa a conversar com Ellis, o pianista interpretado por Chiwetel Ejiofor. Melinda observa os objetos que enfeitam a sala, e se sente atraída pela lâmpada. Passa a mão nela, como se estivesse chamando o gênio.
Quando percebe a presença de Ellis, Melinda diz: – “Eu estava esfregando esta lâmpada na esperança de mudar minha vinha.”
Ao que Ellis, belo, charmoso, responde: – “Bem, eu acredito em mágica. No final, acho que é a única coisa que pode nos salvar.”
A mágica tem presença forte na obra de Woody Allen, que começou a vida no show business como aprendiz de mágico. Magia está nas tramas de Sonhos Eróticos de uma Noite de Verão (1982), Neblina e Sombras (1991), O Escorpião de Jade (2001), Scoop (2006) e Magia ao Luar (2014).
Detalhinho: o filme dentro do filme. Em muitas das obras de Allen, os personagens vão ver um filme, e gosto sempre de registrar qual é. O filme que, na versão comédia, Melinda, o pianista Billy, Hobie mais Stacey, a republicana sexy, vão assistir é O Gato Preto/The Black Cat (1934), um dos grandes clássicos de terror da Universal nos anos 30, dirigido por Edgar G. Ulmer, com Boris Karloff e Bela Lugosi.
A mesma idéia está num filme de Julien Duvivier de 1952
O Guide des Films de Jean Tulard afirma que o tema já havia sido abordado por Jean Duvivier em La Fête à Henriette – e questiona se Woody Allen estaria sem inspiração.
Interessante informação. Gosto bastante dos filmes de Jean Duvivier que tive oportunidade de ver – poucos, é verdade, entre eles O Diabo e os Dez Mandamentos (1962), Pega-Fogo/Poil de Carrote (1932), uma obra-prima, Mistérios da Vida/Flesh and Fantasy (1943), de sua fase americana. Não gostei de um dos mais incensados, O Demônio da Argélia/Pépé Le Moko (1937), mas minha opinião não vale 3 guaranis furados. Esse La Fête à Henriette não conheço.
La Fête à Henriette, no Brasil A Festa do Coração, 1952: na Paris enfeitada para o 14 de Julho – o dia nacional da França –, dois autores, de visões diametralmente opostas, escrevem o roteiro de um filme. Passa-se do romance rosa ao romance negro nos diálogos escritos por Henri Jeanson.
Muito interessante, sem dúvida. Não tinha a menor noção de que Allen usou uma idéia que já havia resultado em um filme.
E a coisa fica cada vez mais interessante: segundo o Petit Larousse des Films, La Fête à Henriette foi refilmado como Paris When It Sizzles. Estranho, porque eu vi Paris When It Sizzles, é claro, no Brasil Quando Paris Alucina, 1964, de Richard Quine, competente ourives da comédia romântica sofisticada, o segundo encontro nas telas de William Holden e Audrey Hepburn.
Em Paris When It Sizzles, um roteirista de Hollywood, Richard Benson, dado à cachaça como tantos roteiristas de Hollywood, como o próprio William Holden que o interpreta, tem a incumbência de escrever o roteiro de um filme. Mas, cabeça leve, bebe e passeia por Paris. Quando finalmente chega bem perto do deadline, do prazo final de entrega do roteiro, ele contrata uma secretária, Gabrielle Simpson, para datilografar o trabalho. Gabrielle, que vem na pele majestosa de Audrey Hepburn, faz bem mais que datilografar: dá idéias, ajuda a criar personagens, situações.
Jamais me ocorreria – se não tivesse lido agora a informação – que Paris When It Sizzles é a refilmagem de uma obra de Julien Duvivier de 1952 que já antecipava a base da trama de Melinda e Melinda.
Woody Allen não faz referência alguma ao filme de Duvivier, nas longas e diversas conversas com Eric Lax que resultaram no livro Conversas com Woody Allen. E Allen não é de mentir, de esconder fatos; creio mesmo que ele não conhecia o filme francês de 1952 – embora seja um rato de salas de cinema e tenha extenso conhecimento do cinema europeu – quando pensou em fazer Melinda e Melinda. No livro, ele diz que era “uma idéia que sempre quis fazer” – e conta que o que mais o atraía era a história dramática. “Todo o calor e a paixão estavam na história dramática. (…) A história cômica ficou boa porque o Will Ferrell é um cara engraçado e a Amanda Peet é ótima – é bonita, sexy e também muito engraçada. Uma atriz maravilhosa mesmo. E eles fizeram um trabalho incrível. Mas, como escritor, a metade cômica nunca me interessou tanto quanto a outra metade. A outra metade era onde estava o meu coração. E eu tive a chance de descobrir a Radha Mitchell.”
A bela Radha Mitchell mostra seu talento
Leonard Maltin, que classificou Igual a Tudo na Vida como BOMBA, assim, em maiúsculas berrantes, e disse que foi o pior filme do realizador, deu 2 estrelas em 4 para Melinda and Melinda. “Dois dramaturgos discutem como eles contariam uma história sobre uma jovem mulher que aparece sem aviso no apartamento de velhos amigos em Manhattan – um como comédia, outro em termos dramáticos. As duas histórias são contadas, mas não levam a lugar algum; o filme tortuoso oferece ecos e lembranças de outros mais antigos e melhores filmes de Allen, embora sirva como uma bela vitrine para Mitchell. As falas de Farrell são cheias de piadas Woodyescas.”
Em um ponto concordo absolutamente com Maltin: o roteiro oferece uma bela chance para Radha Mitchell demonstrar talento – e ela demonstra. Ninguém sob a direção de Woody Allen atua mal; se Victor Mature, o maior canastrão da história de Hollywood, fosse dirigido por ele, não faria careta. Mas Radha Mitchell está fabulosa fazendo dois papéis semelhantes e no entanto diferentes, uma mulher que, na versão comédia, é um misto de inocência e perdição e, na versão drama, é um poço sem fim de profunda tristeza, loucura, incapacidade de saber viver.
Woody Allen sabe como ninguém fazer frases engraçadas, como as que coloca na boca de Hobie-Will Ferrell, mas também sabe fazer belos diálogos sérios. Há um momento em que Ellis, o pianista charmoso, pergunta a Melinda do drama o que ela quer na vida. A resposta é uma das coisas mais tristes que pode haver:
– “Eu queria querer viver.”
Para qualquer pessoa que tenha conhecido de perto alguém que não quer viver, a frase é uma faca enfiada no peito e retorcida sem piedade.
Anotação em novembro de 2016
Melinda e Melinda/Melinda and Melinda
De Woody Allen, EUA, 2004
Com Radha Mitchell (Melinda / Melinda)
(na mesa de restaurante: ) Wallace Shawn (Sy, o autor de comédias), Neil Pepe (Al), Stephanie Roth Haberle (Louise), Larry Pine (Max, o autor de dramas),
(na versão drama: ) Chloë Sevigny (Laurel), Jonny Lee Miller (Lee), Brooke Smith (Cassie, a grande amiga de Laurel e Melinda), Zak Orth (Peter, o marido de Cassie, advogado), Matt Servitto (Jack, o diretor de teatro), Arija Bareikis (Sally, a mulher de Jack), Chiwetel Ejiofor (Ellis, o pianista), Geoffrey Nauffts (Bud, o dentista desportista)
(na versão comédia: ) Will Ferrell (Hobie), Amanda Peet (Susan), Christina Kirk (Jennifer, a grande amiga de Susan), Doug (Andy Borowitz, o marido de Jennifer), Josh Brolin (Greg, o dentista rico), Vinessa Shaw (Stacey, a republicana de Wall Street), David Aaron Baker (Steve, o ricaço), Daniel Sunjata (Billy, o pianista), Steve Carell (Walt, o amigo de Hobie)
Argumento e roteiro Woody Allen
Fotografia Vilmos Zsigmond
Montagem Alisa Lepselter
Casting Juliet Taylor
Direção de arto Santo Loquasto
Produção Charles H. Joffe e Jack Rollins, Fox Searchlight Pictures. DVD Fox.
Cor, 99 min
R, ***
Prazer em voltar a este espaço, onde sempre acabo aprendendo algo novo. Como sempre, muito bom e engrandecedor texto. À altura do diretor da obra retratada.
“…e a conclusão é sempre de que o ‘menor’ Woody Allen é melhor que 95% de tudo o que se produz no mundo.” Não canso de repetir semelhante opinião. Ainda hoje não há um só filme de Allen que, estando zapeando pelos canais de filmes, eu consiga deixar de assistir. Mesmo que já o tenha visto.
Algumas vezes caio em um filme do qual nem reparo o nome, muito menos o diretor, sequer a sinopse, começo a assistir e lá vem o pensamento quase que inconsciente: “Puxa, que texto inteligente, parece coisa de Woody Allen…” E batata: quase sempre é Woody Allen mesmo.
“Melinda e Melinda”, que só vi agora em 2022, é mais um desses trabalhos que me dá a impressão de que sempre haverá vida inteligente no cinema enquanto houver um filme – mesmo que “menor” – de Woody Allen nas telas.
E o motivo de apenas ter visto este filme agora é algo semelhante a situações que vivia na infância, por exemplo. Como quando eu ia comendo os ovos de Páscoa que ganhava bem aos pouquinhos com pena de que acabassem logo.
Com filmes de Woody Allen é assim. Não tenho pressa. Guardo em um cofre virtual para quando chegam aqueles dias em que sinto muita necessidade de assistir a um bom filme, um filme que me leve a outro plano, relaxe a alma, deixe um sorriso no rosto de satisfação, como após, sei lá, uma boa e saudável refeição, por exemplo (certamente não é a melhor das analogias, mas é o que me veio à mente agora, muito provavelmente por estar com fome enquanto bato no teclado aqui…).
E vou assistindo já com certa melancolia por saber que não vai durar para sempre. Aí o jeito será apelar para o requentado prazer de rever suas obras. O que também enche barriga…