Duas constatações ficaram me passando pela cabeça enquanto revia Neblina e Sombras (1991) e logo depois. A primeira: este talvez seja o filme mais europeu de Woody Allen. Embora inteiramente filmado num estúdio de Nova York, é mais europeu até que seus filmes produzidos na Inglaterra, França, Espanha e Itália.
A segunda: que elenco! E que audácia dele ter Madonna para aparecer em não mais que três tomadas; ter Jodie Foster e Kathy Bates para dizer no máximo quatro ou cinco frases.
Jodie Foster e Kathy Bates, Madonna, Lily Tomlim e também Kate Nelligan e Julie Kavner, ótimas atrizes, apesar de não serem estrelas, aparecem na tela pouco mais tempo que dois excelentes atores que estavam, em 1991, começando a carreira, e têm papéis curtíssimos, pouquíssimo importantes, a rigor são meros figurantes. John C. Reilly é apenas um dos policiais da delegacia, creio que não tem sequer uma fala. E William H. Macy é apenas outro policial que aparece numa cena bem ao final da narrativa, quando se reúnem diversos grupos de vigilantes em redor dos personagens de Woody Allen e Mia Farrow.
O primeiro filme de John C. Reilly tinha sido em 1989. Neblina e Sombras foi o quinto filme em que ele apareceu, mostra o IMDb. Depois, faria, só para dar poucos exemplos, Deus da Carnificina (2011), de Roman Polanski, Chicago (2002), de Rob Marshall, Água Negra (2005), de Walter Salles.
William H. Macy começou a carreira bem mais cedo, em 1978, e fez várias séries de TV, mas ainda estava longe de ser muito conhecido quando fez a rápida participação neste filme aqui. Depois, estrelaria Fargo (1996), dos irmãos Coen, Focus (2001), de Neal Slavin, De Porta em Porta (2002), de Steve Schachner.
A participação desses dois grandes atores como figurantes mostra o talento de Juliet Taylor, a mulher que é diretora de casting dos filmes de Woody Allen praticamente desde sempre. Para fazer uma pontinha em Annie Hall (1977), por exemplo, Juliet Taylor escolheu uma desconhecida belíssima, altíssima, chamada Sigourney Weaver.
Tudo no filme remete a Franz Kafka – até o nome do bordel
Woody Allen já fez homenagens a Ingmar Bergman (A Outra, Desconstruindo Harry), Federico Fellini (A Era do Rádio, Memórias), Fiodor Dostoiévski (Crimes e Pecados), Liev Tolstói (A Última Noite de Bóris Grushenko), até a Django Reinhardt (Poucas e Boas).
Neblina e Sombras é uma homenagem ao expressionismo alemão dos anos 20 e início dos 30 de uma maneira geral, e creio que a Fritz Lang em particular, a Ingmar Bergman, de novo e sempre, e a Franz Kafka. Foi por isso que fiquei com a sensação de que este é provavelmente o filme mais europeu de todos os do realizador prolífico, incansável.
Fala-se em dólares, como se a ação se passasse nos Estados Unidos – mas a rigor, a rigor, pelo tipo de cenário, de casario, de rua, de escadarias, de iluminação, de ambiente, aquilo ali é cidadezinha do interiorzão de país europeu, talvez Alemanha, talvez a Checoslováquia natal de Kafka.
As músicas que ouvimos ao longo do filme são do compositor alemão Kurt Weill, o gênio que fez parceria com Bertold Brecht em diversas peças teatrais, como A Ópera dos Três Vinténs.
Até o nome do protagonista da história, o papel do próprio Allen, é um nome alemão, Max Kleinman. E começa com K, como o personagem de O Processo, Joseph K. E o bordel em que trabalham, sempre muito alegres, as prostitutas interpretadas por Lily Tomlin, Kathy Bates, Jodie Foster e Anne Lange, chama-se Felice. Felice, o mesmo nome do grande amor da vida de Kafka!
Como o Joseph K. de Kafka, Max Kleinman vive uma situação surreal, louca, incompreensível – kafquiana. Está dormindo, uma noite, quando batem na porta de seu apartamento. São vários homens, liderados por um tal de Hacker (David Ogden Stiers), que mandam que ele se vista e os acompanhe na caçada ao estrangulador que vem agindo na cidade. Dizem que têm um plano, e que Kleinman faz parte dele.
Embora muito contra sua vontade, Kleinman se veste, e sai para a rua para encontrar Hacker e seus vigilantes – mas eles não estão mais à vista!
Ele começa a perambular pelas ruas, à procura dos homens que haviam ido buscá-lo.
As ruas estão escuras, a iluminação é pouca, e um cerrado nevoeiro cobre tudo.
O grande diretor de fotografia italiano Carlo Di Palma recria para Woody Allen o visual dos filmes do expressionismo alemão: o jogo do negro e do branco, o chiaroscuro, a obsessão pelas sombras projetadas no chão, nas paredes. É G. W. Pabst puro, é F.W. Murnau escancarado, é M, O Vampiro de Dusseldorf de Fritz Lang reencarnado – exatamente como no filme de 1931, temos aqui um assassino à solta.
No seu livro … ismos – Para entender o cinema, Ronald Bergan fala assim do visual do expressionismo alemão: “O uso de sombras exageradas, iluminação de alto contraste e ângulos de câmara oblíquos buscava um certo mal-estar, na tentativa de traduzir o estado psicológico retratado em cena. Os argumentos dos filmes muitas vezes tratavam de loucura, insanidade e traição.”
Tudo isso está lá em Neblina e Sombras.
O circo está para deixar a cidade. A engolidora de espadas perambula pelas ruas
Enquanto o apavorado Kleinman anda sem rumo pelas ruas na noite profunda, temendo a cada momento se deparar com o estrangulador, a narrativa se volta para o circo que esteve se apresentando ali na cidade, e que irá embora na manhã seguinte.
Presenciamos um diálogo entre o palhaço (o papel de John Malkovich) e Irmy, a engolidora de espadas (o papel de Mia Farrow). Comentam que a platéia naquela noite esteve extremamente apática, não ria, não aplaudia: todos na cidade morrem de pavor por causa do assassino à solta.
Os dois são casados. Irmy quer ter um filho, o palhaço não quer nem pensar nessa possibilidade. Ele dá um jeito de sair de sua carroça e vai se encontrar com a trapezista – o papel de Madonna (na foto abaixo), que, à parte a ascensão como primeira estrela da música pop, ainda vinha do sucesso de Procura-se Susan Desesperadamente (1985) e Dick Tracy (1990). A trapezista é casada com o homem mais forte do mundo, mas, como este está dormindo pesadamente, ela se dispõe a dar uma rapidinha com o palhaço – mas não chegam às vias de fato, porque a engolidora de espadas vai até a carroça onde o marido está para trai-la, e apronta um escarcéu.
Irmy decide abandonar o marido, o circo, tudo: faz uma mala e sai sem rumo pela cidade.
Encontra uma prostituta de bom coração (interpretada por Lily Tomlin), que fica com pena daquela mulher perdida numa cidade em que, afinal, há um assassino à solta. A prostituta a leva para o bordel Felice, para que ela passe lá a noite.
Irmy é muito bem recebida pelas colegas da prostituta – moças interpretadas por Kathy Bates, Anne Lange e uma Jodie Foster lindérria, deslumbrante.
Chega ao bordel um grupo de frequentadores assíduos, estudantes universitários. Um deles – interpretado por John Cusak – fica absolutamente fascinado por Irmy. A prostituta que a levou para lá explica que ela não é profissional, trabalha no circo, estava sozinha nas ruas, vai apenas passar a noite ali.
O estudante não se deixa abater pelos argumentos. Senta-se perto de Irmy e começa a tentá-la com dinheiro. Oferece 50, depois 100, depois 200 dólares. Vai subindo os lances, até chegar à absurda quantia de 700 dólares – tudo o que ele havia ganho mais cedo, naquela noite, na jogatina.
Kleinman-Allen gostaria de acreditar em Deus – seria muito mais feliz
Kleinman tem um encontro tétrico com o médico (o papel de Donald Pleasence), no local de trabalho dele – um grande salão em que há vários corpos que o doutor disseca, analisa, estuda. Kleinman pergunta ao médico se, no meio dos órgãos, ele não teria achado nada menos material, mais…
Espiritual?, pergunta o médico, um tanto horrorizado. “Você acredita em Deus?”, insiste o médico, chocado. Ele, o médico, não acredita em nada espiritual. Acha que o homem é matéria, só matéria, que veio do pó e ao pó voltará.
Bem mais tarde, naquela mesma noite que não parece terminar nunca – toda a ação do filme se passa ao longo de uma única noite –, Kleinman vai se encontrar com aquele estudante universitário que havia ficado fascinado por Irmy, a engolidora de espadas. E o estudante perguntará para ele: – “Você acredita em Deus?”
A resposta, neste filme cheio de homenagens a Kafka, Pabst, Murnau, Lang, Bergman, é o mais puro Woody Allen. É – me parece – a síntese do pensamento que perpassa todos os filmes desse gênio maravilhoso.
– “Incrível! É a terceira vez esta noite que me fazem esta mesma exata pergunta. Eu adoraria. E seria muito mais feliz.”
Kleinman, como tantos outros personagens criados por Woody Allen, muito provavelmente como o próprio Woody Allen, adoraria acreditar em Deus – e seria muito mais feliz.
E o estudante replica: – “É, mas você não consegue. Você duvida da existência dele e não consegue ter a fé necessária.”
Kleinman, em outra frase que sintetiza Woody Allen: – “Não tenho a fé necessária para acreditar sequer na minha própria existência.”
Mais tarde ainda, quando a manhã já está chegando, e o filme maravilhoso está infelizmente terminando, Kleinman tem o encontro com o mágico (o papel de Kenneth Mars).
Ele será salvo pelo mágico, pela magia.
Mágica, magia são elementos fundamentais na obra de Allen, que começou a vida artística fazendo uns truques de mágica. Os mágicos e a magia estão em diversos de seus filmes, como O Escorpião de Jade/The Curse of the Jade Scorpion (2001), Scoop – O Grande Furo/Scoop (2006), Magia ao Luar/Magic in the Moonlight (2014).
E então Kleinman diz para o mágico: – “Todo mundo adora ilusões.”
O mágico faz uma correção: – “Adora? As pessoas precisam de ilusões.”
Allen munca escondeu sua admiração por Bergman. Muito ao contrário
O roteiro do filme é o desenvolvimento de uma peça teatral de um ato escrita por Woody Allen e publicada em 1972, o ano em que ele lançou seu terceiro longa-metragem, Tudo o que você queria saber sobre sexo mas tinha vergonha de perguntar. A peça chamava Death, e saiu numa antologia de trabalhos dele, Without Feathers.
Death, morte.
Em Love and Death (1975), no Brasil A Última Noite de Bóris Grushenko, a morte aparece como a Parca, aquela tradicional figura coberta até os pés por uma túnica e com a cabeça encoberta por um capuz, carregando uma imensa foice. A Parca reapareceria levando os mortos para os seus domínios em um barco em Scoop (2006).
A Parca, com sua grande foice, é presença forte e constante em A Carruagem Fantasma, um filmaço dirigido por Victor Sjöstrom em 1921 – quase cem anos atrás. Trinta e seis anos mais tarde, em 1957, Victor Sjöstrom faria o protagonista de Morangos Silvestres, de Ingmar Bergman, o cineasta que é o maior ídolo de Woody Allen, a quem o americano está sempre reverenciando, inclusive e especialmente neste Neblina e Sombras.
Nenhum outro cineasta, além de Woody Allen, perseguiu tanto e tão insistentemente em sua obra os temas básicos do mestre sueco – o questionamento do sentido da vida, da existência de Deus, a morte. Em O Sétimo Selo, também de 1957, o mesmo ano de Morangos Silvestres, Bergman mostra a morte como um homem inteiramente vestido de preto, que dedica algum tempo a jogar xadrez com o cavaleiro interpretado por Max Von Sydow – o grande ator que Woody Allen convidou para trabalhar em Hannah e Suas Irmãs.
(Allen chamou para trabalhar em seus filmes também o diretor de fotografia do mestre sueco, Sven Nykvist. Ele jamais pretendeu esconder sua paixão por Ingmar Bergman. Muito ao contrário.)
Foi o filme mais caro de Allen até então – e um tremendo fracasso na bilheteria
Neblina e Sombras foi o 12º dos 13 filmes de Woody Allen estrelados por Mia Farrow. A parceria artística dos dois havia começado em 1982, com Sonhos Eróticos numa Noite de Verão; depois vieram Zelig/Zelig, Broadway Danny Rose, A Rosa Púrpura do Cairo, Hannah e suas Irmãs, A Era do Rádio, Setembro, A Outra, um dos três episódios de Contos de Nova York , Crimes e Pecados e Simplesmente Alice.
Logo depois de Neblina e Sombras viria Maridos e Esposas, de 1992, o último da parceria, lançado já depois da tumultuadíssima separação do casal.
Foi a produção mais cara do realizador até então: custou US$ 19 milhões. Boa parte do orçamento foi gasto na construção dos sets, dentro dos estúdios Kaufman-Astoria. Com 8 mil metros quadrados, foi o maior set até então construído em Nova York.
Foi o último filme de Allen produzido pela Orion Pictures – que pouco depois iria falir. Conta-se que, quando Allen mostrou o filme pronto para o chefão da empresa, Eric Pleskow, ficou absolutamente claro, visível, que o sujeito estava estarrecido com o quanto o filme não tinha qualquer apelo comercial, e seria seguramente um fracasso de bilheteria.
O filme rendeu apenas US$ 3 milhões, diz o IMDb. Entre 45 filmes dirigidos por Allen, apenas quatro outros tiveram desempenho pior na bilheteria. Pela ordem, de cima para baixo: A Outra, Memórias, Setembro e O Que Há, Tigresa?
Foi o quarto filme preto-e-branco de Woody Allen, depois de Manhattan, Memórias e Zelig. Em 1998, ele faria o quinto e até agora último filme P&B, Celebridades.
O elenco extraordinário reuniu duas atrizes que ganharam Oscars – Kathy Bates (por Louca Obsessão) e Jodie Foster (por Acusados e O Silêncio dos Inocentes). Estão no elenco cinco outros atores indicados ao Oscar: John Malkovich, John C. Reilly, Kate Nelligan, William H. Macy e Lily Tomlim.
Leonard Maltin e Roger Ebert deram apenas 2 estrelas em 4
Leonard Maltin deu 2 estrelas em 4 para o filme: “Um pesadelo kafquiano, envolvido em neblina, é Allen-zado com apenas ligeiros resultados cômicos. Um estrangulador que ataca à noite aterroriza uma cidade – e um sujeito que é pego por facções conspiratórias. Uma galáxia de astros aparece em pequenos papéis, o que distrai o espectador do filme, em vez de acrescentar algo a ele.”
Roger Ebert também deu 2 estrelas em 4. Ele abre sua crítica assim: “A maior parte dos espectadores nunca terá visto um filme como Shadows and Fog de Woody Allen, porque eles não viram o trabalho dos grandes expressionistas alemães dos anos 1920, que usavam cenários estilizados e uma atmosfera em preto e branco para criar espaços oníricos e inquietantes. O novo filme de Allen, que se passa nas ruas e vielas e quartos escondidos de uma cidade européia nos anos 20, foi filmada no estilo daquelas obras-primas, mas sem sua urgência e precisão. Como muitas homenagens, ele não possui a inspiração imediata que tornou os originais excitantes.”
Depois de contar um pouco da trama, Ebert diz: “Sou um admirador dos filmes que inspiraram Shadows and Fog, e um amante da fotografia em preto-e-branco. Se eu pudesse escolher entre ver filmes preto-e-brancos e filmes em cores pelo resto da vida, escolheria os preto-e-brancos sem um momento de hesitação, porque a cor muitas vezes apenas mancha a tela com informação desnecessária, e obscurece as estratégias sofisticadas de iluminação mais adequadas ao preto-e-branco. Por mais que eu admire Allen, o preto-e-branco, os expressionistas e a música de Kurt Weill, no entanto, não consegui ter muito entusiasmo por Shadows and Fog. Ele me pareceu um artifício, um exercício com uma superfície bonita mas sem nenhuma razão particular de existir.”
O Guide des Films de Jean Tulard diz: “Kafka, M le Maudit (o título francês de M, O Vampiro de Dusseldorf), o Bergman de Le Septième Sceau e de La Nuit de Forains (o título francês de Noites de Circo): Allen consegue uma sutil mistura, jogando com um preto-e-branco vindo do expressionismo (as orelhas do assassino evocam as de Nosferatu) e feitiço de melodias tiradas em parte da Ópera de Três Vinténs”.
Eu, aqui no meu cantinho, adaptaria a frase do grande crítico americano: por mais que eu admire Roger Ebert, não concordo com ele. Neblina e Sombras tem toda razão de existir. É a expressão perfeita das duas idéias que volta e meia aparecem na obra desse cineasta genial: as pessoas que conseguem acreditar em Deus são muito mais felizes. E todo mundo precisa das ilusões.
Anotação em setembro de 2015
Neblina e Sombras/Shadows and Fog
De Woody Allen, EUA, 1991.
Com Woody Allen (Max Kleinman), Mia Farrow (Irmy, a engolidora de espadas)
e John Malkovich (o palhaço), Madonna (Marie, a trapezista), Donald Pleasence (o médico), Lily Tomlin (prostituta), Kathy Bates (prostituta), Jodie Foster (prostituta), Anne Lange (prostituta), John Cusack (Jack, o estudante), Kate Nelligan (Eva, a namorada de Kleinman), Julie Kavner (Alma, a ex-noiva de Kleinman), Kenneth Mars (o mágico), David Ogden Stiers (Hacker), Philip Bosco (Mr. Paulsen), Josef Sommer (o padre), Wallace Shawn (Simon Carr), Eszter Balint (a pobre com o bebê), Michael Kirby (o assassino), John C. Reilly (policial na delegacia), William H. Macy (policial no tumulto)
Argumento e roteiro Woody Allen
Fotografia Carlo Di Palma
Montagem Susan E. Morse
Casting Juliet Taylor
Desenho de produção Santo Loquasto
Produção Orion Pictures. DVD 20th Century Fox.
P&B, 85 min
R, ***1/2
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