Pronta para Amar / A Little Bit of Heaven

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Nota: ★★★☆

Já houve dezenas e dezenas de filmes sobre doentes em fase terminal. A Little Bit of Heaven, que no Brasil recebeu o título babaca de Pronta para Amar, é bastante diferente da maioria deles.

Talvez o único que se aproxime um tanto dele seja All That Jazz. Pensei em All That Jazz enquanto ainda estava vendo A Little Bit of Heaven, e de novo quando me sentei aqui para começar esta anotação.

zzheaven2Me lembrei especialmente da seqüência em que Joe Giddeon, chegando perto do final, com aquele bata branca de paciente, que só cobre o corpo até o início das coxas, caminha pelos corredores do hospital depois de fugir do quarto em que deveria estar em absoluto repouso após dois ataques cardíacos, e aí vira-se para a câmara e diz para ela, para o espectador: – “O que é que há? Você não gosta de comédia musical?”

A Little Bit of Heaven é uma comédia. Não é propriamente um musical, mas é cheio de música. Ainda não estamos sequer com 20 minutos de ação quando a protagonista, Marley Corbett (uma das melhores interpretações da carreira da bela Kate Hudson), uma jovem alegre, cheia de vida, liberadíssima, extremamente bem sucedida na profissão, recebe o diagnóstico de câncer avançado, inoperável, no cólon.

Em dois filmes, Nicole Kassell mostra muito talento e uma bela visão de mundo

Já parei de ver mais de um filme sobre doentes terminais. Não porque fossem ruins, mas porque não é propriamente um tema agradável. Na verdade, é um tema de que prefiro fugir.

Passou pela minha cabeça abandonar este A Little Bit of Heaven – mas o pensamento logo foi deixado de lado. É um bom filme, e é intrigante, porque é rara, raríssima, a maneira com que o tema doença terminal é abordado, e fiquei curioso em saber como seria o desenvolvimento da trama.

É um filme pouco comum, raro, e feito com muito talento.

zzheaven3É um filme de alma feminina; tem uma visão feminina da vida. A protagonista, como já foi dito, é mulher. A autora da história e do roteiro, Gren Wells, é mulher – e uma bela mulher, pela foto que vejo dela agora no IMDb. Mulher, bela, e jovem: nasceu em 1974, um ano antes da minha filha. A diretora, Nicole Kassell, é mulher, também bela, também jovem. O IMDb, que sabe tudo, não conta a idade da moça – da biografia dela, consta apenas que tem um filho e se formou na escola de cinema da NYU, New York University.

Meu Deus! Só vi isso agora, ao escrever aqui: Nicole Kassell foi a diretora de O Lenhador/The Woodsman, de 2004, um filme bom, sério, barra pesada, sobre um sujeito (interpretado por Kevin Bacon) que sai da prisão após cumprir pena por crime de pedofilia. É um filme sobre um tema importantíssimo, tão fundamental quanto delicado: o direito à segunda chance, e a dificuldade de se obtê-la, quando toda a sociedade tem a certeza de que o criminoso – mesmo já tendo pago por seu crime – vai reincidir.

Não sabia disso, é claro, quando vi A Little Bit of Heaven. Não me lembrava de forma alguma do nome de Nicole Kassell.

É, Nicole Kassell tem mesmo muito talento – e sua visão de mundo, pelo que dá para ver por esses dois filmes que dirigiu, é absolutamente admirável.

O Lenhador foi seu primeiro longa; antes, havia dirigido apenas um curta, em 2002. Depois, dirigiu episódios de três diferentes séries de TV. Este filme aqui foi seu segundo longa, e depois dele ela voltou às séries de TV. Mais uma entre tantas provas de que gente de talento tem se dedicado à TV. Não é de se estranhar que muito do melhor cinema que se tem feito – nos Estados Unidos em especial – seja para a TV.

Um filme raro e corajoso, com belos personagens

Um dos maiores amigos da protagonista Marley, Peter (Romany Malco, na foto abaixo) é negro e homossexual. No momento em escrevi isso me lembrei da célebre frase de James Baldwin: “Sou o mais infeliz dos homens, porque sou americano, negro e homossexual”. A frase de Baldwin, creio, é dos anos 1950 – e é impressionante como, em muitas coisas, o mundo melhorou demais, em tão pouco tempo. Tudo bem, ainda há muito caminho pela frente, mas já andamos bastante, desde aqueles tempos sombrios.

zzheaven4Peter é negro e homossexual – e uma pessoa feliz.

Lá pelas tantas surgirá um prostituto profissional que atente mulheres solteiras ou necessitadas – e, além de bom de serviço, ele é anão, e feliz. (O ator que interpreta esse Vinnie é Peter Dinklage, que está na série Game of Thrones e é o protagonista do excelente O Agente da Estação, de Thomas McCarthy.)

O homem por quem Marley vai se interessar é um mexicano. O dr. Julian Golstein, judeu mexicano, vem na pele de Gael Garcia Bernal.

Gael Garcia Bernal tem sólida carreira internacional, já fez bons filmes nos Estados Unidos. Não afugenta americanos da bilheteria, até porque, além de bom ator, tem excelente inglês e fina estampa, olhos claros aí incluídos. Mas, pô, os produtores, a autora Gren Wells, a diretora Nicole Kassell teriam à sua disposição um bando de atores americanos, anglo-saxões, jovens e de boa estampa para fazer o segundo papel mais importante do filme.

O fato de terem escolhido um mexicano é prova de bom caráter de todos os envolvidos na produção do filme – e de boas intenções.

Um herói mexicano, um anão comedor, um negro que é gay nos dois sentidos da palavra.

Uma protagonista jovem, esfuziante, no auge da maturidade jovem condenada à morte por uma doença cruel e definitiva.

É. De fato, A Little Bit of Heaven é um filme raro. E corajoso.

O anjo que a botticellimente linda Kate Hudson vê é Whoopi Goldberg

E quando, anestesiada para uma colonoscopia, ainda na primeira meia hora do filme, Marley tem um sonho viajandão e se vê no céu, encontra um anjo na pele de Whoopi Goldberg.

zzheaven9E aqui me lembro do anjo que o piloto de aviões bombeiros de Além da Eternidade/Always, um dos mais belos e menosprezados filmes de Steven Spielberg, vai encontrar nas nuvens. O bravo piloto Pete Sandich (interpretado por Richard Dreyfuss) acorda depois do acidente fatal e se vê numa paisagem paradisíaca. Não entendeu ainda que passou desta para outra que dizem ser melhor. E aí vê o anjo. O anjo vem na figura angelical de Audrey Hepburn. Não haveria outra atriz mais perfeita para representar um anjo do que Audrey Hepburn, em sua última aparição diante das câmaras, para citar uma frase dita sobre Joe Giddeon em All That Jazz.

Marley, a loura de rosto botticellimente lindo, perfeito de Kate Hudson, dá de cara no céu com Whoopi Goldberg!

E agora me lembro de outra frase impressionante, de outro filme de Spielberg. Em A Cor Púrpura, se diz que Celie – a personagem de Whoopi Goldberg – é a coisa mais triste que pode haver, porque é “preta, pobre, feia e mulher”.

Um filme que faz a defesa firme da opção pela morte sem prolongamentos

Uma boa frase leva a outra boa frase.

zzheaven5Com fina ironia e uma indisfarçável simpatia pelo objeto de sua ironia, a diretora Danièle Thompson diz – através da boca de Juliette Binoche, uma das atrizes européias que mais trabalharam em filmes americanos nos últimos 30 anos – que no cinema feito nos Estados Unidos “os pobres ficam ricos, os ricos têm uma vida dura, os sem-documento encontram os documentos, as guerras terminam, os mortos voltam a viver e as putas se casam com milionários”.

Neste fascinante filme americano aqui, os pobres não ficam ricos, não há milagres – mas o negro é gay-homo e gay-feliz, o anão satisfaz as mulheres, o herói é latino. E o anjo celestial vem na pele de uma atriz negra e não helenicamente linda.

É verdade que a narrativa nos poupa dos detalhes mais sórdidos, mais humilhantes do avanço da doença fatal. Há até um certo charme, nas seqüências que mostram avanço da doença – tornadas ainda mais charmosas pela fotografia deslumbrante e pelos cenários lindíssimos de Nova Orleans, essa cidade que, como talvez apenas San Francisco, consegue ser ao mesmo tempo americana e européia.

zzheaven8A rigor, a rigor, tudo é uma questão de gosto, de opinião – e gosto e opinião não deveriam ser motivo de discussão. Há quem prefira a crueza de Amour, de Michael Haneke. Eu, de minha parte, passo longe de Amour, assim como gostaria imensamente de passar longe dos detalhes sórdidos e humilhantes do avanço da doença fatal.

E acho este A Little Bit of Heaven um belo filme. Sensível, belo, corajoso, e suavemente, quase subliminarmente iconoclasta, subversivo.

Outros filmes, como, por exemplo, E Se Vivêssemos Todos Juntos?, para dar apenas um exemplo, já vêm fazendo isso, mas é sempre bom que haja outros: A Little Bit of Heaven é uma defesa firme, clara, do direito à opção pela morte sem prolongamentos.

E é maravilhoso ver um filme afirmar que é uma imensa asneira acharmos que nossos pais são responsáveis por nossas misérias.

Anotação em julho de 2013

Pronta para Amar/A Little Bit of Heaven

De Nicole Kassell, EUA, 2011

Com Kate Hudson (Marley Corbett), Gael García Bernal (Julian Goldstein), Kathy Bates (Beverly Corbett)

e Lucy Punch (Sarah Walker), Romany Malco (Peter Cooper), Rosemarie DeWitt (Renee Blair), Whoopi Goldberg (Deus), Treat Williams (Jack Corbett), Peter Dinklage (Vinnie), Alan Dale (Dr. Sanders)

Argumento e roteiro Gren Wells

Fotografia Russell Carpenter

Música Heitor Pereira

Produção Davis Entertainment, The Film Department.

Cor, 106 min

***

5 Comentários para “Pronta para Amar / A Little Bit of Heaven”

  1. Realmente, o tema é batido, mas o filme é diferente, a gente fica triste só em alguns momentos.
    Achei a Kate Hudson careteira.
    Gael García Bernal foi o mesmo de sempre, ele é esforçado mas fraquinho.
    Quanto a colocarem um mexicano pra fazer o papel de galã e herói, sei lá, ele é mexicano mas tem o tipo de beleza que agrada ao padrão americano (e brasileiro), mesmo sendo um pouco baixo. Só acho fofo que ele fale com um pouco de sotaque e pronuncie errado algumas palavras com som de “z”. Por falar em padrão, Kate Hudson também está dentro dos padrões, mas eu não consigo achá-la super bonita. Parecia que ela estava meio fake no começo, sempre com o cabelo milimetricamente arrumado, em todas as situações, isso me cansou um pouco. Sem falar nas dúzias de biquinhos o tempo todo.
    Apesar de pequenas, foi muito bom ver as atuações dos sempre ótimos Kathy Bates e Treat Williams. Os atores que fazem os amigos também estavam bem, os personagens eram divertidos; gostei principalmente do amigo gay, mesmo aparecendo menos.
    Apesar de ter um pouco de conto de fadas, é como você falou: o filme é bonito, sensível, corajoso, e ouso dizer, até um pouco divertido. O que foi aquele final? Pra rir e chorar.
    “E é maravilhoso ver um filme afirmar que é uma imensa asneira acharmos que nossos pais são responsáveis por nossas misérias.” Só por isso já vale a pena ver.

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