Fuso Horário do Amor / Décalage Horaire

Nota: ★★★½

Anotação em 2010: A diretora Danièle Thompson é muito competente no drama (como prova em Três Irmãs/La Büche), assim como em obra de tom bem leve, suave (como demonstra em Um Lugar na Platéia/Fateuils d’Orchestre). Neste Fuso Horário do Amor/Décalage Horaire, de 2002, mostra que é muito competente na comédia romântica.

Como nos dois filmes dela que eu tinha visto anteriormente, Danièle Thompson é também a autora do argumento e do roteiro, juntamente com o filho, Christopher Thompson. Bela dupla fazem, essa senhora nascida no Mônaco em 1942 e esse rapaz nascido na Inglaterra em 1969, também ator, e dos bons.

Muitas comédias românticas têm feito graça com as próprias comédias românticas, esse gênero que eu chamo de tão bobinho quanto indispensável. É o caso, por exemplo, dos recentes Ele não está tão a fim de você, de Ken Kwapis, e de (500) Dias com Ela, de Marc Webb, os dois de 2009. Como este aqui é um filme francês (em co-produção com os ingleses), faz graça com o cinema americano, que faz comédias românticas desde sempre e, quer queiram, quer não, é o mais importante do mundo. Europeus e americanos costumam constantemente se xingar, se gozar, se ironizar – é, de fato, uma relação de amor e ódio.

 

Gozação gostosa, irônica, quase amorosa ao cinema americano

A gozação que os Thompson, mãe e filho, fazem com o cinema americano, muito mais que rancorosa, brava, indignada, é gostosa, irônica, fina – quase uma declaração de amor. Vem num texto dito pela voz de Juliette Binoche, uma das duas atrizes francesas (a outra é Marion Cotillard) a ganhar um Oscar nas duas últimas décadas. (Todo mundo fala mal do cinema americano, mas todo mundo baba quando um não-americano é indicado ao Oscar, quanto mais quando ganha.)

A voz de la Binoche abre o filme, quando a tela está inteiramente ocupada por algo azul escuro, que ainda não sabemos o que é.

– “Levei um tabefe. Me pegaram na saída de Les Vacances Romaines, na frente de um cinema que passava filmes antigos. Além de ter cabulado aula, eu não podia ver filmes americanos. Meu pai dizia que eram estúpidos, e minha mãe dizia que eles davam uma idéia errada da vida…”

Rápido parênteses. Les Vacances Romaines, que as legendas do DVD traduzem por “Férias Romanas”, é o título francês de Roman Holiday, em Portugal o literal Férias em Roma, no Brasil A Princesa e o Plebeu, o clássico de William Wyler com Gregory Peck e a iniciante Audrey Hepburn. O filme é de 1953; como a Binochinha nasceu em 1964, seguramente seu personagem viu o filme numa reapresentação – o que é bem plausível. Paris, provavelmente a cidade que mais adora cinema no mundo, tem sempre relançamentos nos seus cinemas.

Uma jovem francesa proibida pelos pais de ver filmes americanos aí pelos anos 70? Pois é. Saberemos mais tarde que os pais de Rose, a personagem de Binoche, são comunistas. Seu nome, Rose, é uma homenagem a Rosa Luxemburgo. Não queriam que os filmes americanos alienassem a cabecinha de sua filha.

Mas, pelamordedeus, voltemos à fala inicial de Rose, que goza com carinho os filmes americanos, comédias românticas ou não:

– “Meu pai dizia que eram estúpidos, e minha mãe dizia que eles davam uma idéia errada na vida. Tudo bem: os pobres ficam ricos, os ricos têm uma vida dura, os sem-documento encontram os documentos, as guerras terminam, os mortos voltam a viver e as putas se casam com milionários. Tudo bem. Andy Warhol disse… Puxa, outro americano. Mas ele disse que todos deveriam ter direito a 15 minutos de fama na vida. Eu sempre achei que merecia um dia em que minha vida fosse igual a um filme americano.”

         Rose quer um dia igual a filme americano; Félix chega dos EUA

Pausa para respirar fundo – e para eu dar uma tergiversadazinha. Cacete, se eu fosse roteirista, gostaria de ter o talento de Danièle e Christopher Thompson para escrever esse texto na abertura de um filme. Que maravilha de texto. Que perfeita definição do cinemão comercial de Hollywood, feita com conhecimento de causa, fina ironia, sem rancor, até com um pouquinho de respeito, simpatia, quase amor. E numa única frase – “Andy Warhol disse… Puxa, outro americano” – eles ainda comentam sobre o que alguns chamam de imperialismo cultural, outros entendem como saber fazer bom uso dos meios de comunicação.

Nos filmes americanos, “os pobres ficam ricos, os ricos têm uma vida dura, as guerras terminam, os mortos voltam a viver e as putas se casam com milionários” – uma óbvia citação de Uma Linda Mulher/Pretty Woman.

Depois dessa maravilha de texto de abertura, a câmara faz um suave zoom para trás, e vemos então que aquele azul escuro que ocupava toda a tela é a máscara de dormir que Jean Reno está usando em sua poltrona do avião que está chegando a Paris. Félix – veremos que este é o nome do personagem de Jean Reno – está chegando a Paris vindo dos Estados Unidos, o país que os franceses amam e odeiam; vai em seguida para Hamburgo, precisa pegar uma conexão no Charles de Gaulle, o mesmo aeroporto onde está Rose, tentando fazer check in num vôo para Acapulco.

Acontece que o aeroporto internacional da capital francesa está o mais absoluto caos – como ficaram os aeroportos brasileiros durante o apagão aéreo patrocinado pelo governo Lula, alguns anos atrás, como ficaram os aeroportos europeus na crise provocada pelas cinzas do vulcão islandês no início de 2010. Há greves dos controladores de vôo, dos ferroviários, dos metroviários. Félix não vai conseguir embarcar para Hamburgo, nem Rose para Acapulco; Rose está falando freneticamente no celular, o tempo todo, inclusive no banheiro – e o celular dela cai no vaso sanitário, vai embora. Numa esteira rolante, Rose vê Félix, pede o telefone celular dele emprestado, dá novos e nervosos telefonemas. É assim que se conhecem, Rose e Félix, nossos heróis.

Estamos com cinco minutos de filme, e todas as pedras das ruas sabem o que vai acontecer – é uma comédia romântica, uai. Francesa, que portanto goza os filmes americanos, mas sempre uma comédia romântica – moço conhece moça, surgem fatos inesperados, situações esquisitas, situações imprevisíveis que a gente sabe que vão previsivilmente acontecer, e tal e coisa.

Tudo previsivelmente previsível – e, no caso deste filme, tudo delicioso, bem feito, bem construído, com belíssimas atuações de dois dos grandes astros do cinema francês desta primeira década de século.

         La Binoche começa maquiada demais – mas nada é gratuito

Achei La Binoche maquiada demais, menos bela do que ela é em geral. Claro, não está feia – nenhum diretor, nenhum fotógrafo, nenhum maquiador conseguiria fazer Juliette Binoche ficar feia. Mas achei que ela veio menos bela do que é, na pele dessa Rose, com o rosto carregado de maquiagem. Parece um tanto vulgar, a Rose, maquiada demais, com roupas e todo um jeito que indicam uma certa… vulgaridade. Acho que essa é a palavra mais exata.

Nada é gratuito, no filme de Danièle Thompson. Saberemos, lá pelo meio do filme, que Rose é pessoa de origem mais humilde, das classes trabalhadoras; sua profissão é de esteticista – ela trabalha em salão de beleza, maquiagem é sua arte, seu trabalho, seu ganha-pão. Não é que seja vulgar – é de origem humilde, classe média baixa, não é refinada, elegante, embora seja inteligente, viva, esperta, bem articulada. E se maquia muito.

Nada é gratuito no filme – não é à toa a referência a Pretty Woman, na fala de abertura. O encontro da esteticista Rose com o rico Félix (ele também de origem humilde, como devem ser todos os heróis, segundo os mandamentos da ideologia predominante entre artistas e intelectuais europeus há pelo menos dois séculos, mas hoje rico, tendo subido na vida à custa de muito trabalho) é, mutatis mutandi, tendo sido mudado absolutamente tudo o que deve ser mudado, assim um pouco como o encontro da pobre Vivian-Julia Roberts com o milionário Edward-Richard Gere em Pretty Woman.

         A mulher e a maquiagem – só uma diretora poderia fazer essa seqüência

Não é absolutamente nada gratuita a coisa do excesso de maquiagem de Rose, a esteticista, quando nós, espectadores, e Félix a conhecemos. Na verdade, fiquei pensando que Fuso Horário do Amor é um dos filmes que dão a maior importância à maquiagem das mulheres em toda a história do cinema.

Não quero dar, neste comentário nem em qualquer outro, spoiler para quem ainda não viu o filme (e quem não viu deveria ver). Mas acho que não entrego muito da história se disser apenas que haverá, mais adiante, na ação, duas seqüências que tratam da questão da maquiagem. Uma acontece lá pelo meio do filme – é ótima. A outra acontece já bem no final – e é extraordinária. A seqüência quase no final que envolve Rose e a maquiagem é lindíssima – só uma diretora mulher poderia ter feito aquilo. Nem os diretores gays, ou os hétero que passaram para a história como profundos conhecedores e intérpretes da alma feminina (fala-se aqui de George Cukor, Vincente Minnelli) seriam capazes de fazer o que Danièle Thompson faz – com a ajuda, é claro, dessa atriz grande, esplendorosa, que é Juliette Binoche. Ela dá um show de interpretação, uma coisa maravilhosa, de aplaudir de pé como na ópera.

Grande, magnífica Juliette Binoche.

E que beleza o roteiro, o texto dos Thompson, mãe e filho. Lá no final do filme, que havia começado com a gozação sobre o cinema americano, há uma frase sensacional de Félix, que, no vozeirão grave de Jean Reno, esse ator de tantos filmes policiais, de ação, fica ainda mais interessante. Félix é um francês que viveu muito tempo nos Estados Unidos. Lá pelo meio do filme, Rose havia dito a Félix que ele é um sujeito muito estressado – não consegue falar um frase numa única língua.

         “Fuck la logique!”

A frase sensacional de Félix fica bastante sem graça tanto nas legendas em português quanto nas em francês – onde se chapou numa única língua tudo o que ele fala, as palavras francesas e as inglesas, quando a graça é exatamente a mistureba que ele faz, algo que remete à genial letra que Chico Buarque criou para Joana Francesa, o filme de Cacá Diegues passado em Alagoas e estrelado por Jeanne Moreau, um perfeito portucês, ou frantuguês. Aqui, é o mais perfeito franglais, ou franchis:

– “Fuck la logique. D’accord, la vie c’est pas un Hollywood movie, et le happy end, c’est du bull shit.”

Que maravilha!

Nos filmes americanos, os pobres ficam ricos, os ricos têm uma vida dura, as guerras terminam, os mortos voltam a viver e as putas se casam com milionários, e isso é que é dar uma idéia errada do que é a vida, até porque, comment disait la Mère Superière du College Sacré-Coeur à tous ses élèves, ses enfants, “Mes élèves, mes enfants, la vie é foda” – e é exatamente por isso mesmo, porque la vie é foda, que os teóricos marxistas todos, os mestres, os acadêmicos, os scholars, os sábios de carteirinha, nos ensinaram que o happy end é bull shit, é para deixar o distinto público acomodado, alienado, o happy end é o escapismo que deve ser evitado a todo custo porque no distinto público é preciso enfiar sempre o inconformismo absoluto, a vontade férrea de mudar tudo isto que está aí e fazer a revolução, e blá-blá-blá, e blá-blá-blá, aquela cantilena toda, velha, puída, esgarçada…

Frase feita por frase feita, prefiro a de John Lennon: “Se você quer mudar o mundo, é melhor liberar a sua mente primeiro”.

Frase por frase, eu me apropriaria da frase de Félix-Jean Reno, com pequeno acréscimo: Fuck la logique de todo esse povo chato, pentelho, viva a comédia romântica.

Fuso Horário do Amor/Décalage Horaire

De Danièle Thompson, França-Inglaterra, 2002

Com Juliette Binoche (Rose), Jean Reno (Félix), Sergi López (Sergio)

Roteiro Danièle Thompson e Christopher Thompson

Fotografia Patrick Blossier

Música Eric Serra

No DVD. Produção Alain Sarde, Bac Films, Pathé

Cor, 91 min

13/5/2010

***1/2

Título em inglês: Jet Lag.

13 Comentários para “Fuso Horário do Amor / Décalage Horaire”

  1. Viva a comédia romântica e, especialmente, reverencie-se sempre bons roteiros e diálogos. Ok, cinema é luz, mas um tantinho de boas falas ajuda, não é? Já vou tratar de comprar logo esse filme que nem vi, mas: a) Binoche é fantástica, b) que texto de abertura!, c) Jean Reno em comédia romântica deve ser uma coisa, d) que texto excelente esse da sua crítica/análise, obrigada, envolvente, engraçado e, tal como você nos falou do filme, em nenhum aspecto, gratuito. O comentário está enorme, mas hoje é meu primeiro dia de férias, estou over…

  2. Na versão que eu assisti não teve a voz da Juliette , em off, na abertura, só o barulho das turbinas do avião. Estranho, não? Tb não consegui encontrar a frase inteira que vc cita do Félix, só o “fuck la logique”; mas tb só apareceu na legenda em inglês, não o ouvi falar. Na legenda em português nem chegou a aparecer. Acho que vou atrás de outra cópia.
    Pra mim, o melhor foi a atuação dos dois: o Reno fazendo algo diferente de assassinos ou policiais, e a Binoche fazendo uma personagem meio vulgar, como vc disse (com gosto duvidoso para se vestir) diferente das personagens elegantes e refinadas que costuma fazer. Ela está ótima, como sempre, muito bem no papel, mas gostei mais do personagem do Reno. Alguém que não gosta de café da manhã é no mínimo curioso, sem falar no jeito mal humorado, reclamão, cheio de não-me-toque. E o ator, que não faz o tipo galã nem nada, ficou bem charmoso no papel. Mas tb vestindo um Armani, qualquer um ficaria.
    Eu adoro quando tiram sarro da França, então eu vibrava quando o Félix reclamava, principalmente por ele ser francês, o que deixa tudo mais engraçado pq é alguém falando mal do próprio país. Uma das melhores piadas é quando ele termina de fazer um pedido ao serviço de quarto, e diz, ao final, depois de ter que dar várias explicações ao atendente: “Tudo é tão complicado nesse país”. Tb gostei muito da trilha sonora. Pena que não encontrei as letras das músicas.
    Como as legendas que eu consegui não estavam muito boas e como meu francês é abaixo do sofrível, eu não tenho certeza, mas acho que ele tinha uma conexão para Munique e não para Hamburgo, e ainda morava nos EUA.

  3. Oi, Sérgio, revi esse filme q é uma verdadeira delícia, uma comédia romântica na verdadeira acepção da palavra.Como vc diz, parece q o happy end incomoda os cinéfilos “metidos”,digamos assim, pois na velha cartilha do cinema sério, filme q se preze tem q ter uma mensagem; deve, ao final, deixar uma sementinha p a gente pensar e, quem sabe, mexer com as estruturas do q está aí.Não pode ser um filme bem feito pra caramba como esse, simplesmente p divertir, tal como aquelas comédias românticas q vc citou ao início de sua crítica.
    E vcs repararam na Rose falando p o personagem do Reno, abordando as queixas da sua ex-mulher, sobre seu desânimo com o café da manhã, q tudo q lhe dá tesão pela noite, o “brocha” pela manhã, assim mesmo?Q sacação de uma simples esteticista!E, Jussara, realmente o Sérgio se enganou, minhas legendas estavam ótimas e meu francês tb o é, o Félix estava indo para Munique e não Hamburgo.O filme é todo engraçado, aquele Sergio do qual a Rose se livra após 12 anos, com a ajuda do Félix, mas cheio de mal entendidos nesse processo, o cel, no qual ela fala compulsivamente e q, afinal, cai na descarga, oh tragédia!Agora, a tal frase do Jean Reno q o Sérgio cita, fiquei superatenta p escutá-la, pois é no mínimo curiosa, mas tive uma decepção, no Dvd q peguei ela não veio, nem a abreviação q a Jussara escutou.
    Guenia Bunchaft
    http://www.sospesquisaerorschach.com.br

  4. Credo, que coisa mais estranha a frase sensacional não estar nas cópias que você, Guenia, e também a Jussara viram… Incompreensível.
    Um abraço, e obrigado pelo belo comentário, Guenia.
    Sérgio

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