Um Lindo Dia na Vizinhança / A Beautiful Day in the Neighborhood

Nota: ★★★☆

(Disponível na Netflix em 4/2023.)

Um Lindo Dia na Vizinhança, produção hollywoodiana de 2019, caminha perigosamente na corda bamba. Fala de uma figura bem pouco conhecida no Brasil, mas que na TV americana tem fama semelhante à de um Silvio Santos, uma Xuxa – e é a personificação do pensamento positivo, do modo de ver a vida com otimismo, esperança.

Como fazer um filme sobre este Senhor Tudo Certo sem parecer um tanto ingênuo, naïf? Neste nosso mundo e nossa época de descrença, desesperança, cinismo, fake news, terra-planismo e ataques duros à democracia, como falar de crença nos bons valores morais sem parecer Polyanna, piegas, bobão, babacão?

Se já há, amplamente difundida mundo afora – especialmente entre as pessoas de narizinho empinado que dizem gostar de “filmes de arte” –, a noção de que, nos filmes de Hollywood, “os pobres ficam ricos, os ricos têm uma vida dura, os sem-documento encontram os documentos, as guerras terminam, os mortos voltam a viver e as putas se casam com milionários”?

Baita de uma corda bamba, meu.

A Beautiful Day in the Neighborhood explora e exibe com insistência o visual dos programas voltados para o público infantil de Fred Rogers, sucesso de audiência nos Estados Unidos por mais de 30 anos, entre 1968 e 2001 – e é um visual danado de bonitinho, que nem a pintura naïf. Bonitinho, naïf e chegado a uma pieguice profunda.

Ali pelos 15 minutos do filme, cheguei a achar que os realizadores não conseguiriam se equilibrar naquela corda bamba tremelicante.

Pois conseguiram. A diretora Marielle Heller (muito prazer; aquela ali é a Mary Zaidan, eu sou o Sérgio Vaz) fez um belo filme. Só não é recomendável para a turma do narizinho empinado que diz “detestar filme americano”. Mas esses aí são uns chatos de galocha mesmo, então tudo bem.

O filme demonstra, com clareza, nitidez, que, por trás daquele jeito meio piegas, esse Fred Rogers fazia um maravilhoso trabalho de abordar para seu público infantil temas duros, sérios, pesados, como dor, sofrimento, perdas, guerras, morte – e insistia em que é muito importante que as crianças expressem abertamente seus sentimentos.

O apresentador e o jornalista, uma amizade improvável

Um Lindo Dia não é propriamente uma cinebiografia de Fred McFeely Rogers (1928-2003, na foto logo acima), pedagogo, ministro da Igreja Presbiteriana, compositor, criador e apresentador das séries MisteRogers, 337 episódios entre 1961 e 1967, e Mister Rogers’ Neighborhood, 896 episódios entre 1968 e 2001. Não é, não pretende ser. É um relato sobre um período bem determinado da vida dele, a partir de 1998, e, mais especificamente, sobre sua relação com o jornalista Tom Junod, da Esquire, a elegante, inteligente revista mensal americana voltada para um público mais seleto, exigente, intelectualizado.

Os créditos mostram que o roteiro é de Micah Fitzerman-Blue & Noah Harpster, “inspirado no artigo ‘Can You Say… Hero?’, de Tom Junod”, que foi capa da Esquire em novembro de 1998.

O nome do jornalista Tom Junod foi trocado, no filme, para Lloyd Vogel – interpretado pelo galês Matthew Rhys, que foi um excelente Perry Mason na série da HBO Max (2020-2023). E Fred Rogers coube ao ator americano mais indicado para interpretar a figura do Senhor Tudo Certo – Tom Hanks, essa espécie de Gary Cooper das últimas quatro décadas, o cara que fez papéis de garotão simpático, depois de adulto simpático e depois de velho simpático.

Tom Hanks e Matthew Rhys estão excelentes, maravilhosos, interpretando esses dois homens tão absolutamente diferentes, duas figuras opostas, antípodas.

O que o famosérrimo apresentador de TV tem de simpático, sorridente, otimista, positivo, o jornalista tem de problemático, mal-humorado, impaciente, chato, desalentado, desencantado.

No começo do filme, vemos Mister Rogers apresentando seu novo amigo Lloyd Vogel para a câmara da diretora Marielle Heller como se fosse um episódio de seu show – o cenário inclui uma linda maquete de uma cidade (num visual que de fato faz lembrar os pintores naifs brasileiros), bichinhos e bonecos, alguns deles transformados às vezes em fantoches que usam vozes do apresentador. Ele canta músicas de sua própria autoria, hinos à fraternidade, à convivência afetuosa entre as pessoas…

Eis um trecho da letra de “Won’t you be my neighbor?”, você não quer ser meu vizinho?, que inspira o título do filme e um sorridente Tom Hanks canta para a câmara de Marielle Heller:

It’s a beautiful day in this neighborhood

A beautiful day for a neighbor

Would you be mine? Could you be mine?

It’s a neighborly day in this beautywood

A neighborly day for a beauty

Would you be mine? Could you be mine?

I have always wanted to have a neighbor just like you

I’ve always wanted to live in a neighborhood with you

So, let’s make the most of this beautiful day (…)

Neighbors are people who are close to us

And friends are people who are close to our hearts

I like to think of you as my neighbor and my friend

Mais ou menos assim: é um lindo dia na vizinha, um lindo dia para um vizinho. Quer ser meu vizinho? Poderia ser meu vizinho? É um vizindo dia nesta lindinhança, vizindo dia nesta lindinhança. Eu sempre quis ter um vizinho exatamente como você, eu sempre quis viver neste bairro com você, então vamos aproveitar ao máximo esse lindo dia. Vizinhos são pessoas que estão perto de nós e amigos são pessoas que estão perto de nossos corações. Gosto de pensar em você como meu vizinho e meu amigo.

E vemos Lloyd Vogel recebendo um dos prêmios do National Magazine Awards de 1998 com um discurso de agradecimento cheio de ironia e amargura:

“É maravilhoso estar entre tantos dos meus desajustados colegas esta noite. Então… Por que escrevemos para revistas como meio de ganhar a vida? Sinceramente, porque fazer qualquer outra coisa não é viver. Nós acompanhamos a história da primeira fila. Temos a chance de expor a verdade que muitos não conseguem ver. E algumas vezes, só algumas vezes, conseguimos transformar um mundo despedaçado com nossas palavras.”

O repórter tenta recusar a pauta

Lloyd Vogel tem um bom casamento com Andrea (o papel da bela Susan Kelechi Watson, 38 anos em 2019, o ano de lançamento do filme, 40 títulos na filmografia, inclusive a série This is Us, 2016-2022), uma ativa, competente advogada. Os dois se amam, se dão bem, e estão em lua de mel com o filhinho de um ano de idade, Gavin.

Mas o bom casamento e o sucesso na profissão não parecem aliviar o peso que Lloyd carrega nos ombros. Muitos de seus problemas vêm da relação eternamente conflituosa com o pai, Jerry (o papel do sempre bom Chris Cooper, na foto acima). O filho jamais perdoou o pai por ter abandonado a mãe quando ela estava doente, à morte. E, na festa de casamento da irmã, Lorraine (Tammy Blanchard), o terceiro, com Todd (Noah Harpster), Lloyd parte para a briga física contra o pai – e leva um soco violento no nariz, dado por um convidado qualquer.

Está com o nariz ferido, horroroso, quando sua editora, Ellen, o chama para dar uma pauta que ele a princípio tenta recusar: fazer um perfil de Fred Rogers, o Mister Rogers.

(Ellen é o papel de Christine Lahti, que, como Chris Cooper, teve presença marcante em vários filmes do cinema americano independente nas últimas décadas.)

Ellen explica que o perfil de Mister Rogers fará parte de uma edição especial da revista dedicada a heróis – figuras famosas, respeitadas, admiradas, adoradas pelos americanos, das mais diversas atividades. Metido, presunçoso, Lloyd usa argumentos do tipo sou um repórter especial, não cumpro pautas. Ellen dá uma dura no jornalista topetudo, e diz que Fred Rogers foi a única das personalidades escolhidas pela revista que admitiu a possibilidade de conversar com Lloyd Vogel, tamanha a fama de antipático, birrento, mal-humorado que o jornalista havia angariado.

Há um diálogo absolutamente revelador entre Lloyd e sua mulher. Andrea pergunta se está tudo bem, e ele responde: – “Vou fazer um perfil de Mister Rogers”.

Ela: – “Lloyd, por favor, não estrague a minha infância”.

Seguramente Lloyd não via o programa de Mister Rogers quando era criança. Era um dos poucos americanos que não se encantavam com o apresentador simpático, agradável, com jeito de amigo do peito. Andrea, assim como a imensa maior parte das pessoas de sua geração, tinha crescido vendo Mister Rogers, e o amava. E, mais do que ninguém, ela imaginava que tipo de matéria o marido de mal com a vida seria capaz de escrever sobre o sujeito amado por milhões e milhões e milhões.

O repórter se surpreende com o entrevistado

A relação entre Lloyd Vogel e Fred Rogers será fascinante para o espectador, absolutamente tranquila para o apresentador e tumultuada, tensa, nervosa, inquietante para o jornalista.

Na primeira vez em que os dois se vêem, no estúdio de TV em Pittsburgh em que são gravados, em sua maior parte, os programas de Mister Rogers, Lloyd fica bastante abalado, impressionado com o ídolo das multidões sobre quem ele não sabia nada, ou quase nada. Mister Rogers se mostra uma pessoa séria, que acredita profundamente no que faz; nada nele parece falso, fabricado, feito para agradar as pessoas. Não, nada disso: tudo nele parece autêntico. Ele é exatamente daquele jeito. Fred Rogers se assusta – genuinamente se assusta – quando o jornalista faz uma pergunta separando a pessoa do apresentador daquilo que ele é diante das câmaras. A cara que ele faz é de quem jamais havia pensado que fossem duas pessoas diferentes.

A sinceridade, a autenticidade de Fred Rogers, o visível amor que ele sente pelo que diz e faz nos seus programas, o amor dele pelas crianças, pelas pessoas – isso mexe com a cabeça de Lloyd. Fica absolutamente claro para o espectador que o jornalista não esperava encontrar nada disso.

– “Ele é muito mais complexo do que eu imaginei”, confessa para Andrea.

Ao mesmo tempo, no entanto, Lloyd fica profundamente incomodado com as tentativas de Fred Rogers de questioná-lo sobre seu relacionamento com o pai. Sente-se invadido em sua privacidade, agredido – e tem reações raivosas. Em uma ocasião em que o apresentador tenta dar conselhos a ele sobre o pai, Lloyd, furioso, se levanta, vai embora.

Depois se arrepende, pede desculpas.

Não é nada fácil para ele ser questionado sobre a relação com o pai, que sempre havia sido traumática.

Uma cena emocionante em um vagão do metrô

O filme tem diversos belos momentos – mas seguramente a sequência do metrô é a mais impressionante, mais emocionante.

O ídolo de multidões, o sujeito famosérrimo é que leva o jornalista para o metrô. Lloyd estranha aquilo, é claro – e vê-se perfeitamente que ele nunca anda de metrô, sempre pega táxi. Ele fica de pé, Mister Rogers se senta; vão conversando – e as pessoas no vagão todas olham para a celebridade. Até que uma moça começa a cantar aquela música que é a marca registrada dele, “Won’t you be my neighbor?” – e em um segundo todas as pessoas no vagão, absolutamente todas, com a única exceção de Lloyd Vogel, estão cantando em coro a canção que é um hino à fraternidade. Roçando na pieguice, é verdade, ou talvez completamente afundada na pieguice – mas um hino à fraternidade, diacho, neste mundo competitivo, mal-humorado, cínico, injusto, cruel,

A diretora Marielle Heller é muito jovem: nasceu em 1979, em Marin County, Califórnia. Trabalhou como atriz em 12 filmes e ou séries – inclusive O Gambito da Rainha. Antes deste Um Lindo Dia na Vizinhança, havia dirigido episódios de duas séries de TV, Transparent (2015) e Casual (2016), e dois filmes, O Diário de uma Adolescente (2015) e Poderia me Perdoar? (2018). Este último teve três indicações ao Oscar: melhor atriz coadjuvante para Melissa McCarthy, melhor ator coadjuvante para Richard E. Grant e melhor roteiro adaptado para Nicole Holofcener e Jeff Whitty.

Diacho! Tinha apenas 40 anos quando dirigiu este Um Lindo Dia na Vizinhança. E parece ter a segurança de quem tinha 40 anos de profissão!

Marielle Heller – conta o IMDb, na página de Trivia sobre o filme – é muito amiga do filho de Tom Hanks, Colin, que é apenas dois anos mais velho que ela. A moça se encontrou com o pai do amigo em uma festa de aniversário – e aproveitou para falar do projeto de fazer um filme sobre Fred Rogers. A própria diretora contaria depois que aquele encontro numa festa foi uma grande sorte, porque, pouco antes, Tom Hanks havia dito a seu agente que gostaria de passar um tempo sem interpretar pessoas reais…

Antes de Fred Rogers, o ator já havia interpretado personalidades da vida real seis vezes:

o astronauta Jim Lovell em Apollo 13: Do Desastre ao Triunfo (1995);

o personagem título de Capitão Phillips (2013), cujo navio foi sequestrado por piratas somalis em 2009;

o mago produtor Walt Disney em Walt nos Bastidores de Mary Poppins (2013);

o advogado James B. Donovan em Ponte dos Espiões (2015);

o piloto Chesley Sullenberger em Sully: O Herói do Rio Hudson (2016);

o lendário jornalista Ben Bradlee em The Post: A Guerra Secreta (2017).

Tom Hanks foi indicado ao Oscar por sua interpretação de Fred Rogers. Foi sua sexta indicação; ele ganhou o prêmio duas vezes, Philadelphia (1993) e Forrest Gump (1994).

O filme obteve média de 7.2 entre 83 mil leitores do IMDb, uma ótima avaliação. No site agregador de opiniões Rotten Tomatoes, a avaliação é ainda mais alta: 95% entre os críticos (382 resenhas foram checadas) e 92% entre os leitores.

“Um homem de uma gentileza sem fim”

Em 2018, um ano antes deste filme aqui, havia sido lançado um documentário sobre a vida e a obra de Fred Rogers, com o título Won’t You Be My Neighbor?, no Brasil Fred Rogers – O Padrinho da Criançada.

A página de Trívia do IMDb sobre o filme tem quase 50 itens, e dá vontade de registrar vários deles aqui, mas vou transcrever só mais um, sobre o jornalista Tom Junod.

O artigo de Tom Junod sobre Fred Rogers, “Can You Say…’Hero?”, saiu, como já foi dioto, na edição de novembro de 1998 da revista Esquire. Em 2019, pouco antes da estréia do filme, ele escreveu um artigo para a revista The Atlantic contando como foi para ele ter conhecido Fred Rogers. Começava assim:

“Muito tempo atrás, um homem de uma gentileza sem fim viu algo em mim que eu mesmo não via. Ele confiou em mim quando eu achava que não era confiávei, e demonstrou um interesse por mim que era muito maior do que meu interesse inicial por ele. Ele foi a primeira pessoa sobre quem eu escrevi que ficou meu amigo, e nossa amizade permaneceu até sua morte. Agora foi feito um filme a partir da matéria que escrevi sobre ele, o que quer dizer ‘inspirado pela’ história que escrevi sobre ele, o que quer dizer que no filme meu nome é Lloyd Vogel e eu entro numa luta com meu pai no casamento da minha irmã. Minha irmã não se casou.”

É difícil mudar a personalidade das pessoas. Quem é cínico e de mal com a vida permanece cínico e de mal com a vida. Mesmo tendo sido amigo do Senhor Tudo Certo.

Anotação em abril de 2023

Um Lindo Dia na Vizinhança/A Beautiful Day in the Neighborhood

De Marielle Heller, EUA, 2019

Com Tom Hanks (Fred Rogers).

Matthew Rhys (Lloyd Vogel)

e Chris Cooper (Jerry Vogel, o pai de Lloyd), Susan Kelechi Watson (Andrea Vogel, a mulher de Lloyd), Maryann Plunkett (Joanne Rogers, a mulher de Fred), Enrico Colantoni (Bill Isler, o secretário de Fred), Wendy Makkena (Dorothy, a mulher de Jerry), Tammy Blanchard (Lorraine, a irmã de Lloyd), Noah Harpster (Todd, o novo marido de Lorraine), Carmen Cusack (Margy), Christine Lahti (Ellen, a editora da Esquire), Maddie Corman (Lady Aberlin, colega de Fred no programa de TV), Daniel Krell  (Mr. McFeely, o carteiro no programa), Jon L Peacock (técnico de som), Gretchen Koerner (médico), Gavin Borders (garoto no estúdio da TV), Mark August (o pai do garoto), Tressa Glover (a mãe do garoto), Jessica Hecht (Lila Vogel), Di Zhu (garçonete), Diane Monroe (membro do quarteto de cordas), Maxine Roach ((membro do quarteto de cordas), Lesa Terry (membro do quarteto de cordas), Tahirah Whittington (membro do quarteto de cordas), Nigel Swinson (cantora no metrô)

Roteiro Micah Fitzerman-Blue & Noah Harpster 

Inspirado no artigo “Can You Say… Hero?”, de Tom Junod, na revista Esquire

Baseado no trabalho de Fred Rogers 

Produção Youree Henley, Leah Holzer, Peter Saraf, Marc Turtletaub, Big Beach Films, Tencent Pictures, TriStar Pictures.

Cor, 109 min (1h49)

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