Nota:
(Disponível no YouTube em 3/2023.)
Cloak and Dagger, no Brasil O Grande Segredo, o 13º filme que o austríaco Fritz Lang, um dos maiores realizadores da História do Cinema, dirigiu nos Estados Unidos, foi lançado em 28 de setembro de 1946. Fazia apenas um ano que os americanos haviam lançado bombas atômicas sobre Hiroshima e Nagasaki, assassinando mais de 210 mil pessoas, quase todos civis.
Não era uma boa época para falar mal da bomba atômica para o público norte-americano.
Cloak and Dagger é um filme para elogiar os homens que trabalharam no OSS, Office of Strategic Services, o serviço secreto do governo dos Estados Unidos para atuação no exterior, e que operou durante a Segunda Guerra Mundial para que o país conseguisse fazer a bomba antes dos nazistas. A trama acompanha o trabalho de um professor de física que se transforma em agente secreto em missão arriscada na Suíça neutra mas cheia de nazistas e na Itália fascista.
Pois é: mal curadas as feridas da guerra, da decisão mais do que polêmica do governo de Harry Trumam de usar pela primeira vez na História bombas atômicas em um conflito, o filme de Fritz Lang faz, sim, o elogio do trabalho do OSS – mas, ao mesmo tempo, critica, com uma dureza germânica, a bomba atômica.
Os produtores meteram as mãozonas na montagem de Fritz Lang, cortaram fora o final – mas, mesmo assim, não conseguiram transformar o filme em algo emasculado, edulcorado.
Quando estamos com apenas 9 minutos do filme que chegou às telas com 106, Gary Cooper – o ator que representava o caráter bom, imaculado, a retidão em pessoa, o melhor da sociedade dos Estados Unidos – fala o seguinte:
– “Esta é a primeira vez que me arrependo de ser cientista. (…) Não estamos preparados para a energia nuclear. Estou morrendo de medo. Pela primeira vez, milhares de nossos melhores cientistas estão trabalhando juntos, e para fazer o quê? Uma bomba! Mas quem estava, antes da guerra, disposto a financiar pesquisa para acabar com a tuberculose? E quando nós vamos receber um bilhão de dólares para extirpar o câncer? Eu digo para você: daria para fazer isso em um ano!”
Fritz Lang não é bolinho. Não é pouca coisa, não.
E o filme ainda tem Lilli Palmer, em sua estréia no cinema americano. Linda, simpática, talentosa, encantadora.
Um professor recrutado para ser agente secreto
O filme abre com um letreiro: “Perto do fim da guerra… A fronteira do Sul da França”. É um rápido intróito: dois homens – entenderemos logo que são agentes da OSS americana – enviam para Washington telegrama informando sobre carregamento de minérios daquela região, os Pirineus da fronteira França-Espanha, para a Alemanha. O telegrama não chega a ser enviado até o fim: nazistas invadem o lugar e executam os dois agentes.
Em Washington, na sede da OSS, o coronel Walsh (James Flavin) recebe o telegrama incompleto, compreende que seus agentes foram atacados e mortos, e conversa com um subordinado. Diz que precisa conversar com quem entende de física – e vai visitar um velho conhecido dos tempos de estudante, o agora professor e pesquisador de física na Midwestern University Alvah Jesper – o papel de Gary Cooper.
O diálogo entre os dois é interessante – e serve para revelar para o espectador toda a base da trama que virá daí em diante.
O professor de Física estranha que seu amigo esteja sem farda, em roupas civis. – “Estou no OSS”, diz o coronel Walsh. – “Nunca ouvi falar”, retruca Jesper. – “Isso é muito bom. Não podemos mesmo ser conhecidos. Office of Strategics Services. Em Washington somos conhecidos como o pessoal de Cloak and Dagger”.
As legendas traduzem como “o pessoal do Grande Segredo”. Substituem o título original pelo título escolhido pelos exibidores brasileiros.
“Cloak and Dagger” é o que chamamos de capa e espada, como os filmes que se faziam muito nos anos 30 e 40, e não só em Hollywood, mas também na França, na Itália. Capa e espada – aquelas aventuras com muitos duelos entre espadachins, tipo Zorro, tipo Os Três Mosqueteirtos.
Enquanto durava a Segunda Guerra – informa o IMDb –, o nome OSS não podia ser usado nos filmes. Era, afinal, a agência do serviço secreto do governo americano, e, como menciona o personagem, não era mesmo para que o pessoal de cloak and dagger fosse conhecido. Passada a guerra, no entanto, esses cuidados já não eram mais necessários.
O professor de Física não sabia o que era OSS, mas o coronel Walsh sabia muito bem que seu amigo Alvah Jesper era um dos muitos cientistas envolvidos no Projeto Manhattan – o projeto ultrassecreto do governo de desenvolver a bomba atômica. Na conversa, ele apresenta a Jesper os relatos de agentes da OSS na Europa mostrando que a Alemanha vinha recebendo grandes carregamentos de pechblenda e monazita. – “Pechblenda é para extrair urânio”, explica Jesper. “Monazita é para extrair tório. Não trabalhamos mais com tório; urânio é mais conveniente.”
É nessa conversa entre os dois que Jesper fala aquelas frases fortes, duras, contra a bomba atômica que transcrevi mais acima.
O coronel Walsh parece compreender a angústia do amigo – mas argumenta: – “Se alguém vai desenvolver a bomba atômica, que sejamos nós. Não os nazistas.” E prossegue: – “Alvah, precisamos de mais homens treinados. Precisamos saber até onde os alemães já chegaram. Onde estão trabalhando, e como podemos detê-los. A maioria dos nossos agentes não sabe o que procurar. Eles não percebem as pistas. Esta é uma corrida. São os alemães ou nós. Precisamos ter mais cientistas entre nós.”
O professor pergunta: – “E quanto ao que estou fazendo aqui?”
– “Já recebi autorização para levar você. Você conhece o assunto, é solteiro, fala um pouco de alemão. Você precisa aceitar ser voluntário.”
Alvah Jesper dá um daqueles sorrisos irônicos de que só Gary Cooper é capaz, e diz, vencido:
– “Já houve uma época em que pensava em ser agente secreto. Mas desisti aos oito anos de idade.”
Lilli Palmer, em sua estréia nos EUA, está maravilhosa
A missão do professor de Física forçado a virar agente secreto o levará primeiro para Zurique, para onde havia fugido dos nazistas uma grande cientista húngara, Katerin Loder (Helene Thimig), e depois para a Itália fascista, para se encontrar com outro grande físico, o dr. Polda (Vladimir Sokoloff).
Na Itália, os agentes do OSS tinham a colaboração de uma afiada rede de pessoas da resistência ao fascismo. A ajuda desses partisans antifascistas será fundamental para Jesper. E, entre os abnegados lutadores contra o regime de Mussolini está uma bela moça, Gina.
É claro, é óbvio que vai rolar paixão entre o americano altão e bastante sem jeito para esse ofício de agente secreto e a italiana durona, angustiada com os horrores da guerra mas inflexível na vontade de combater os fascistas.
E será uma bela, fascinante história de amor, no meio deste filme de guerra e espionagem. Fazem um casal interessante, simpático, gostoso de se ver Gary Cooper e Lilli Palmer.
Nascida em 1914, o ano em que começou a Primeira Guerra Mundial, em Posen, então Prússia, filha de uma atriz judia austríaca e um cirurgião judeu alemão, Lilli Marie Peiser estava com 32 anos em 1946, o ano de lançamento do filme, e uma carreira de 21 filmes (se minha conta estiver certa) na Inglaterra, onde havia se radicado após fugir da Alemanha que passou a ser governada pelo nazismo em 1933.
Em uma absurda demonstração de que o que acontece fora de Hollywood não existe, os créditos iniciais trazem um “introducing Lilli Palmer”!
Há registro de que Fritz Lang – conhecido como um diretor exigente, mandão, quase despótico, como outro de língua alemã, Otto Preminger – foi extremamente duro com sua quase compatriota.
Seguramente não era preciso nada disso. Lilli Pàlmer é uma atriz de imenso talento. Ela é uma das melhores coisas do filme.
Uma sequência de luta impressionante
Outro ponto alto deste Cloak and Dagger é uma sequência em que o protagonista da história luta contra um agente fascista encarregado de vigiar o cientista italiano Polda. A sequência tem a assinatura do cineasta que foi um dos expoentes do expressionismo alemão dos anos 20. É extremamente tensa, violenta, maravilhosamente encenada. O professor Alvah Jasper e o fascista lutam no hall de entrada de um prédio residencial enquanto, na rua, está passando um grupo de pessoas de todas as idades cantando e tocando uma canção extremamente popular, Viene Sul Mar.
Há um momento em que o fascista põe a mão sobre o rosto de Jasper-Gary Cooper, como se quisesse enfiar os dedos nos olhos dele. É apavorante.
Finalmente, o americano consegue dominar o italiano, e vai apertando a garganta dele; a câmara não mostra as mãos do primeiro – elas, e o rosto do adversário, estão escondidos atrás de um móvel. O que vemos são as pernas do fascista – até o momento em que elas param de se movimentar.
Na parte de trás do hall, há uma escada – e, logo após o momento em que Jasper mata o oponente, uma bola de criança vem caindo pela escada. Ouvimos uma voz de criança que vem descendo os degraus atrás de sua bola. A tensão é absoluta.
Jasper consegue fugir com Gina e o dr. Polda, logo em seguida. A câmara focaliza o rosto do cientista – e ele está em absoluto choque por ter matado uma pessoa.
A sequência toda é muito impressionante.
(Para os mineiros, há, além de tudo, um certo desconforto: Viene Sul Mar nos obriga a lembrar que a canção “Oh! Minas Gerais”, o hino não oficial do Estado, não é um original produto da terra das montanhas – é uma famosa e antiga canção italiana que ganhou letra enaltecendo as Alterosas..)
Os roteiristas entraram na lista negra
Os créditos iniciais dizem que o roteiro do filme é de autoria de Albert Maltz e Ring Lardner Jr., baseado em história criada por Boris Ingster e John Larkin, que foi sugerida pelo livro de Corey Ford e Alastair MacBain.
O livro se chama Cloak and Dagger: The Secret Story of the Office of Strategic Services, e foi lançado no início daquele ano de 1946, apenas alguns meses, portanto, após o fim da Segunda Guerra Mundial.
Os dois roteiristas, Albert Maltz e Ring Lardner Jr., seriam, daí a poucos anos, colocados na lista negra do macarthismo, o vergonhoso processo de caça às bruxas que procurou comunistas, simpatizantes e simpatizantes de simpatizantes do comunismo nas artes e entretenimento dos Estados Unidos nos últimos anos 40 e primeiros dos 50.
O filme foi produzido fora dos grandes estúdios, por uma empresa pequena, United States Pictures. Apenas a distribuição foi feita por uma das majors, a Warner Bros.
O livro The Warner Bros. Story traz um verbete sobre ele, com alguns equívocos que eu comentarei depois:
“Ao aceitar o compromisso de realizar Cloak and Dagger, o diretor Fritz Lang acreditou que seria capaz de usar a história básica do filme (em que o físico nuclear Gary Cooper é lançado de pára-quedas sobre a Alemanha na tentativa de resgatar uma idosa cientista italiana sequestrada pelos nazistas) para fazer algumas declarações importantes sobre os usos e abusos da energia atômica. Mas o estúdio se recusou a lançar o filme tal qual ele foi feito, cortou o rolo final e substituiu o pretendido final pesado, carregado de desgraça, por outro mais feliz. O resultado foi uma aventura de guerra rotineira, com alguns poucos momentos Languianos cheios de suspense, mas não muito mais. Até Gary Cooper parecia pouco à vontade. Robert Alda fazia um partisan italiano. Lilli Pàlmer, fazendo sua estréia nas telas americanas, estava envolvida no movimento clandestino e Vladimir Sokoloff era um cientista italiano sempre com medo de perder a vida. (…) Milton Sperling, casado com uma sobrinha de Jack Warner, produziu.”
A fofoca de que o produtor era “nephew-in-law” do chefão do estúdio é interessante. Mas há erros danados naquela frase que fala da história básica do filme. O cientista interpretado por Gary Cooper não cai de pára-quedas na Alemanha. Ele não pisa na Alemanha em momento algum – chega de avião a Zurique, na Suíça. E a velha cientista que ele encontra lá não é italiana, e sim húngara.
De resto, não acho que Gary Cooper estivesse pouco à vontade… Mas aí é uma questão de opinião.
Leonard Maltin deu 2.5 estrelas em 4 e também comete erro na Geografia: “O professor Cooper vira agente secreto em sua viagem à Alemanha; a intriga de Lang não está entre suas melhores, mas ainda é habilidosa”.
Eis o que diz o Guide des Films de Jean Tulard sobre Cape et Poignard, como o filme foi lançado na França, com a tradução literal do Cloak and Dagger original:
“Este filme anti-nazismo, embora realizado como uma batida de tambor, não inspirou Lang, que não acreditou um minuto nessa história de cientista americano (inspirado em Oppenheimer) que se transforma em espião para tentar impedir a Alemanha de construir a bomba atômica antes dos americanos. No entanto, dá para ver o filme sem tédio.”
Meio bobinha essa avaliação do grande Guide.
Acho que este pode não ser (e não é) um dos melhores filmes americanos do grande realizador – mas tem qualidades, e merece respeito.
Anotação em março de 2023
O Grande Segredo/Cloak and Dagger
De Fritz Lang, EUA, 1946
Com Gary Cooper (professor Alvah Jasper),
Lilli Palmer (Gina)
e Robert Alda (Pinkie), Vladimir Sokoloff (Dr. Polda, o cientista italiano), J. Edward Bromberg (Trenk), Marjorie Hoshelle (Ann Dawson, a bela espiã em Zurique), Ludwig Stossel (alemão), Helene Thimig (Katerin Loder, a cientista húngara), Dan Seymour (Marsoli), Marc Lawrence (Luigi), James Flavin (coronel Walsh), Patrick O’Moore (inglês), Charles Marsh (Erich), Don Turner (Lingg), Clifton Young (comandante americano), Ross Ford (pára-quedista), Robert Coote (Cronin), Hans Schumm, Peter Michael (agentes alemães), Yola D’Avril, Claire DuBrey, Lotte Stein (enfermeiras), Rory Mallinson (Paul), Bruce Lester (oficial inglês), Leon Lenoir (soldado italiano), Otto Reichow, Arno Frey (soldados alemães), Maria Monteil, Lillian Nicholson (freiras), Bobby Santon (garoto italiano), Hella Crosley (Rachele)
Roteiro Albert Maltz, Ring Lardner Jr.
Baseado em história de Boris Ingster e John Larkin
Sugerida pelo livro de Corey Ford e Alastair MacBain
Fotografia Sol Polito
Música Max Steiner
Montagem Christian Nyby
Direção de arte Max Parker
Figurinos Leah Rhodes
Produção Milton Sperling, United States Pictures, distribuição Warner Bros.
P&B, 106 min
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Título na França: Cape et Poignard. Em Portugal: O Grande Segredo
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