Julgamento em Nuremberg / Judgment at Nuremberg

Nota: ★★★★

Anotação em 2010: Seria bom se todo mundo revisse Julgamento em Nuremberg de tempos em tempos.

Esse pensamento me ocorreu quando terminei de rever o filme, que tinha visto algumas vezes na adolescência, e depois de novo pouco antes dos 50 anos, em 1998. Embora conhecesse bem o filme, ele me surpreendeu de novo com seu brilho, com se fosse a primeira vez.

E então me ocorreu a frase, bem parecida com a que usei recentemente – porém diferente dela  – ao rever Cabaret mais uma vez e ser surpreendido de novo com seu brilho: “Todo mundo deveria rever Cabaret de tempos em tempos”.

Cabaret se passa em 1931, e fala da ascensão do nazismo. Julgamento em Nuremberg se passa em 1947, e fala sobre o que o nazismo produziu e destruiu. O primeiro trata o tema com a devida seriedade, mas é um musical, cheio de cores e som. O segundo tem um tom extremamente grave, sério, circunspecto, pesado, denso; a fotografia é em preto-e-branco – embora o texto brilhante do roteirista Abby Mann faça questão de mostrar que há muitas matizes de cinza entre o preto e o branco.

         Talvez o maior elenco reunido pelo cinema americano até então

 

 

 

 

 

 

 

 

Lembrando: produzido e dirigido por Stanley Kramer em 1961, com um elenco absolutamente espetacular, possivelmente o maior reunido até então pelo cinema americano, o filme é inspirado nos acontecimentos reais, os julgamentos de criminosos nazistas na cidade de Nuremberg, na Bavária, a partir de 1946, por autoridades das maiores potências aliadas, vencedoras da Segunda Guerra, Estados Unidos, União Soviética, Inglaterra e França. Os fatos históricos citados são todos reais. Os personagens, as situações, as histórias, no entanto, são fictícios.

A história criada pelo escritor e roteirista Abby Mann focaliza o julgamento de quatro juízes acusados de terem servido aos interesses do regime nazista e condenado à morte ou à esterilização diversas pessoas – judeus, em especial, mas também inimigos do regime e até pessoas consideradas retardadas mentais. Um deles, Ernst Janning (interpretado por Burt Lancaster), era um jurista famoso e respeitado mundialmente, autor de diversos livros de Direito, e havia sido ministro da Justiça, já na época do regime nazista – Hitler assumiu o poder em 1933.

Para presidir aquele julgamento específico, as autoridades americanas indicaram o juiz Dan Haywood (o gigante Spencer Tracy, foto acima). O filme abre com a chegada do juiz Haywood a Nuremberg – e uma seqüência impressionante mostra o carro que o conduz passando no meio de quadras e mais quadras de prédios em ruínas, bombardeados durante a guerra. É um cenário apavorante, e o juiz Haywood não consegue segurar a exclamação: “Não sabia que tinha sido tão ruim”.

 

 

 

 

 

 

Haviam reservado para ele ocupar, durante sua estadia em Nuremberg, uma gigantesca, luxuosa mansão, que escapara ilesa dos bombadeios aliados, pertencente a uma aristocrata, Madame Bertholt (Marlene Dietrich, na foto), casada com um general condenado nos julgamentos. Na casa, o capitão do Exército que será seu secretário particular (interpretado por William Shatner, o capitão Kirk de Jornada nas Estrelas) pergunta se ele ficará confortável, e o juiz Haywood responde: “Capitão, não tenho dúvida de que todo o Estado do Maine ficaria confortável aqui”. É a primeira frase brilhante de um filme com mais de três horas de frases brilhantes.

Logo em seguida, o senador que ciceroneia o juiz, e foi recebê-lo no aeroporto, faz algum elogio a ele, à sua importância, e, na resposta, Haywood se apresenta para os espectadores, e apresenta também o contexto histórico. Ele diz (não é uma transcrição literal): “Meu caro senador, você sabe que não fui a primeira, nem a décima, nem a vigésima pessoa a quem procuraram. Hitler já se foi, Goebbels já se foi, as pessoas mais importantes na hierarquia que chegaram a ser presas já foram julgadas.” O interesse do público e da imprensa pelos julgamentos havia diminuído; os juristas mais importantes não queriam mais aquela tarefa.

O juiz Dan Haywood é apenas um juiz distrital do interior do Maine – nenhuma figura importante, emérita, reconhecida. Mas tem toda a sabedoria do mundo, o sentido rigoroso de Justiça de um Salomão, o caráter firme, honesto, inquebrantável que se poderia esperar do herói mais perfeito de um filme de John Ford ou Frank Capra. É um dos caracteres mais perfeitos, mais dignos que já foram criados pelo cinema americano – tem a dignidade de um Atticus Finch, o advogado interpretado por Gregory Peck em O Sol é para Todos/To Kill a Mockingbird.

Só Spencer Tracy poderia ter sido o ator para dar vida ao juiz Dan Haywood.

         Na acusação, um oficial que odeia tudo que tenha a ver com o nazismo

A acusação ficará a cargo do coronel Tad Lawson (Richard Widmark, na foto ao lado), que um dos dois juízes que trabalharão junto com Dan Haywood definirá como “um jovem radical” – o que significava, no contexto, um democrata da ala mais à esquerda, um ultra-liberal. Lawson havia participado da invasão final da Alemanha nazista, tinha estado presente no momento da libertação de prisioneiros de campos de concentração, vira as atrocidades com seus próprios olhos – tem um ódio profundo de tudo que tenha a ver com o nazismo.

Na defesa, atuará um jovem advogado alemão, Hans Rolfe (Maximilian Schell, na foto abaixo), inteligente, dedicado, arrebatado, teatral, profundo admirador de Ernst Janning, o mais importante dos réus. Sua linha de ação será, basicamente, defender a idéia de que os réus agiram de acordo com as leis então vigentes na Alemanha, mesmo que fossem leis desumanas, absurdas, racistas – e, portanto, não podem ser considerados culpados de crime algum.

         Como os alemães permitiram aquilo?

O juiz Haywood vai ouvir todos os argumentos dos dois lados. Mas, sobretudo, vai tentar entender como tudo aquilo aconteceu. Fará um grande esforço para tentar compreender.

E este é o cerne do filme. O roteirista Abby Mann e o diretor Stanley Kramer vão passar mais de três horas fazendo a questão fundamental, básica: como foi possível que o povo alemão tivesse permitido que tudo aquilo acontecesse?

Em uma das maiores obras de arte que já foram criadas, Liev Tolstói passa umas 1.500 páginas tentando responder à questão: como foi possível que a humanidade tivesse permitido que acontecessem as guerras napoleônicas? Com o cuidado de um cirurgião e o talento de um deus, o grande escritor descarta diversas respostas que já haviam sido dadas pela historiografia; vai negando, uma por uma. Mas, na minha opinião (passei recentemente meses relendo Guerra e Paz, uma experiência que todas as pessoas deveriam ter direito de desfrutar), não consegue colocar no lugar das teses que descarta uma resposta que faça sentido.

Há algumas questões para as quais simplesmente não existe resposta que faça sentido.

Marx achava que o comunismo seria implantado num país de vigorosa classe operária – e no entanto foi a Rússia czarista, rural, agrária, quase ainda feudal, que adotou o comunismo, e não as industrializadas Inglaterra, Alemanha, França. Certamente há diversas teorias para explicar por que foi a Rússia de Tolstói que primeiro implantou o regime comunista. Não conheço nenhuma que consiga dar resposta à questão – mas me parece que, ainda mais difícil do que entender como uma nação de mujiques iletrados, miseráveis, se sujeitou por 70 anos à ditadura comunista, seria compreender como um país adiantado, avançado, de população educada como a Alemanha permitiu a implantação do regime nazista.

E, pior ainda, permitiu, depois da implantação do regime, que ele cometesse todas as atrocidades que cometeu.

         “Eles vão nos livrar dos comunistas, e depois nos livraremos deles”

Em Cabaret, o jovem inglês recém-formado em Cambridge, interpretado por Michael York, pergunta ao barão Maximilian Von Heune como “eles” – a elite da sociedade alemã – permitiam o crescimento do nazismo, e o barão responde algo assim: “Eles vão livrar a Alemanha do comunismo, e depois nós nos livraremos deles”.

Em Julgamento em Nuremberg, o elitista, aristocrático jurista Ernst Janning dá uma explicação semelhante. É um longo, bem longo discurso – a primeira vez que ele fala diante do tribunal cujo direito de existir ele não reconhecia. Transcrevo algumas frases:

– “Havia uma febre nesta terra. Uma febre de desgraça, indignidade, fome. Tínhamos uma democracia, sim, mas ela foi rasgada por elementos dentro dela mesma. Sobretudo, havia medo. (…) Só quando se entende isso fica possível entender o que Hitler significou para nós. Porque ele disse para nós: ‘Levantem suas cabeças! Tenham orgulho de ser alemães! Há demônios entre nós. Comunistas, liberais, judeus, ciganos! Uma vez que esses demônios sejam destruídos, sua miséria será destruída’. Era a velha história do cordeiro a ser sacrificado. (…) Por que ficamos em silêncio? Por que participamos? Porque amamos nosso país! Que diferença faria se alguns extremistas politicos perdessem seus direitos? Que diferença faria se algumas poucas minoriais raciais perdessem seus direitos? Era só uma fase passageira. Era apenas um estágio. Seria descartada, mais cedo ou mais tarde. Hitler seria descartado.”

         “Pisam as flores, matam nosso cão. E não dizemos nada”

 Ao final das três horas de magnífico cinema, magnífico texto, magníficas reflexões sobre como cada um de nós permite que absurdos ocorram, o grande Spencer Tracy na pele do juiz Haywood e o grande Burt Lancaster na pele do juiz Emil Janning (na foto acima) têm o diálogo definitivo, formidável:

Emil Janning: – “Aquelas pessoas, aquelas milhões de pessoas… Eu nunca soube que iria dar naquilo. Você tem que acreditar.

Dan Haywood: – “Herr Janning, deu naquilo na primeira vez em que você condenou um homem que você sabia ser inocente.”

Grandes poetas seguramente assinariam embaixo da frase do juizinho sem importância do interior do Maine.

Para lembrar o poema “No caminho, com Maiakovski”, de Eduardo Alves da Costa (porém muitas vezes creditado ao próprio Maiakovski, como eu mesmo fiz aqui, até ser corrigido pelos simpáticos, gentis leitores Raphael Gomes e Deraldo Mancini):

Na primeira noite, eles se aproximam e colhem uma flor de nosso jardim.
E não dizemos nada.

Na segunda noite, já não se escondem, pisam as flores, matam nosso cão.
E não dizemos nada.

Até que um dia, o mais frágil deles, entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua, e, conhecendo nosso medo, arranca-nos a voz da garganta.

E porque não dissemos nada, já não podemos dizer nada.

Para lembrar Brecht:

“Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro

Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário

Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável

Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho meu emprego
Também não me importei

Agora estão me levando
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo.”

         Como é possível?

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Depois desses poemas  eu deveria calar a boca. Mas ainda vou em frente.

Me permito uma pequena digressão, na verdade um pequeno desabafo: como é possível que tantas pessoas ainda tenham tamanha dificuldade de compreender que não existe totalitarismo bom? Como é possível não compreenderem que, na essência, nazismo e comunismo são exatamente iguais, que quanto mais forte for o Estado mais fracos são os cidadãos?

De volta ao filme:

Sempre me impressionei como Os Desajustados/The Misfits, de John Huston, feito no mesmo ano de Julgamento em Nuremberg, 1961, foi um filme de outono, de fim de ciclo, de fecho de vida. Foi o último filme da carreira de Clark Gable e de Marilyn Monroe, e um dos últimos de Montgomery Clift.

Julgamento em Nuremberg também é assim. Boa parte de seus atores – todos grandes, todos excepcionalmente bem dirigidos, todos em grandes atuações – estava em momentos importantes, e quase finais, de suas carreiras.

Um ano antes, Burt Lancaster havia ganho o Oscar por Entre Deus e o Pecado/Elmer Gantry; no ano seguinte, seria indicado de novo ao Oscar por O Prisioneiro de Alcatraz/Birdman of Alcatraz.

Foi o antepenúltimo filme de Spencer Tracy; depois dele, o imenso ator só voltaria a fazer Deu a Louca no Mundo, em 1963, e Adivinhe Quem Vem Para Jantar, em 1967 – os dois dirigidos pelo mesmo Stanley Kramer.

Foi o penúltimo filme da carreira de Marlene Dietrich, a grande diva, mulher sensacional, extraordinária.

Foi o antepenúltimo filme de Judy Garland (na foto acima), a grande estrela, fenômeno já aos 17 anos, mãe de Liza Minnelli, a atriz de Cabaret. Ela havia ficado sete anos sem filmar, enfrentando duros problemas com bebida e drogas. Em seguida, faria, junto com Burt Lancaster, outro filme produzido por Stanley Kramer, Minha Esperança é Você/A Child is Waiting.

Foi o antepenúltimo filme da carreira de Montgomery Clift, o grande ator (na foto ao lado).

O filme teve 11 indicações ao Oscar, inclusive os de melhor filme e melhor diretor. Levou os prêmios de ator para Maximilian Schell e roteiro adaptado para Abby Mann. Teve um total de 14 prêmios e 32 indicações.

         “O primeiro filme a tratar seriamente dos julgamentos”

Em um texto escrito décadas após o lançamento do filme, o CineBooks’ Motion Picture Guide traz diversas informações fascinantes; apesar de esta anotação já estar gigantesca, e de eu saber que ninguém lê uma trolha destas na tela, não resisto à tentação de transcrever parte (as frases em itálico são minhas):

“Como a maior parte dos dramas de tribunal, Judgment at Nuremberg é longo demais e estático, mas foi sensacional na sua época como o primeiro filme a tratar seriamente dos julgamentos dos criminosos de guerra nazistas. Mais provocativo ainda era o fato de que ele lidava com juízes nazistas que mandaram incontáveis vítimas ou para a morte ou, às vezes ainda pior, para experimentos médicos que os deixavam estéreis ou sem mente. O filme permanece fascinante. (…)

“Com os soviéticos bloqueando Berlim, chega a pressão sobre (o juiz) Dan (Haywood) para ser leniente com os juízes alemães, sob o argumento de que os alemães e a Alemanha serão necessários ao Ocidente para manter a ordem mundial.(…)

“Este drama poderoso foi originalmente apresentado como uma produção da Playhouse 90 para a TV em 1959, dirigida por George Roy Hill e com Claude Rains como Haywood, Paul Lukas como Janning e Maximilian Schell como o advogado, papel que ele repetiu no filme. (É fantástico lembrar que Claude Rains e Paul Lukas trabalharam juntos em Casablanca.) O drama é absorvente mas árido do começo ao fim, oferecendo uma magnífica atuação de Schell como o defensor da velha ordem, um homem confuso em seu zelo de defender tanto o passado quanto seus clientes atuais. Tracy é bastante estóico, mas esse ator nunca teve uma atuação ruim, e ele faz o que ele pode num papel que pede um temperamento judicioso. Foi dito que Tracy chamou a história de “o melhor roteiro que li em anos”, e louvou o produtor-diretor Stanley Kramer como um homem que tentava fazer bons filmes, sem a preocupação primeira de ganhar dinheiro. No entanto, Judgment at Nuremberg foi um tremendo sucesso, com US$ 5,5 milhões de renda em aluguel de fitas ao ser lançado.

“Tracy quase não fez o filme. Ficou preocupado ao saber que Laurence Olivier, que deveria interpretar o principal juiz alemão, tinha saído do projeto e Lancaster iria substituí-lo. O filme, feito em Berlim, exigia que Tracy viajasse até a Alemanha. Ele foi escortado até o Aeroporto de Idlewild por executivos da United Artists e pela sempre presente Katharine Hepburn. (…) Tracy estava doente na época e disse aos repórteres que não faria outros filmes, a não ser com Stanley Kramer. (…)

         Montgomery Clift estava doente, suas mãos tremiam

“Outra escolha de Kramer, Clift, também estava doente – era alcoólatra. Kramer ofereceu ao ator um papel de sete minutos como uma das testemunhas, um homem que havia sido castrado pelos nazistas como parte de seu programa de esterilização. Os agentes de Clift, MCA, pediram o salário que ele havia recebido por The Misfits, US$ 200 mil. Kramer ofereceu US$ 50 mil e a oferta foi rejeitada. Então Kramer falou diretamente com Clift, que disse que trabalharia apenas pelo pagamento das despesas, o que fez sem jamais ter lido o roteiro.

“Clift estava um desastre quando apareceu na cena do tribunal. (O tribunal era um set magnífico, construído nos estúdios Hollywood Revue, todo com rodas, de maneira que a câmara poderia ter fluidez total.) Clift não conseguia decorar uma frase de seu longo monólogo. (Não é propriamente um monólogo: ele está sendo interrogado pelo advogado de defesa.) Suas mãos tremiam tremendamente, sua face tremia, e seus olhos rodavam quase incontrolavelmente. Mas, com o encorajamento de Kramer e Tracy, Clift foi excelente.

“Clift desenvolveu uma profunda amizade com Garland durante a produção; ela também teve um papel como vítima da opressão nazista. Garland tinha recebido US$ 50 mil para fazer sua primeira aparição desde A Star is Born (Nasce uma Estrela), de 1954, e ela teve um dos melhores papéis dramáticos de sua carreira. Clift observou-a enquanto fazia sua cena, chorando, enquanto Garland relatava como tinha sido rotulada como uma alemã poluída por ser amiga de um velho judeu.

“Dietrich sabia em primeira mão o que esperar de seus antigos conterrâneos. Ela havia declarado abertamente seus sentimentos sobre a Alemanha e o povo alemão durante a era Hitler, recusando-se a ficar no país ou mesmo a visitar sua terra natal enquanto ele esteve no poder. Em 1960, um ano antes de fazer Judgment at Nuremberg, ela visitou a Alemanha durante uma turnê como cantora, sua primeira volta a seu país desde 1930, e a primeira vez em que cantava publicamente em sua própria língua desde aquela época. Disseram a ela que poderia haver uma recepção raivosa por parte de alguns alemãos, inclusive com violência (e houve registros de que alguém poderia atirar nela durante as apresentações).”

         Uma première mundial em Berlim, muro recém-instaurado

O texto do CineBooks’ é fantástico, cheio de informações; não dá para parar de traduzir/transcrever:

“Kramer decidiu que Judgment at Nuremberg teria uma première em Berlim, e marcou o evento para dezembro de 1961, pedindo a todos os atores que comparecessem. Notáveis por sua ausência foram Lancaster e Mme. Bertholt (Marlene Dietrich). (…)

“Kramer fez da estréia um evento mundial, levando até Berlim Ocidental mais de 300 jornalistas de 26 países (só de Nova York havia 120 colunistas, críticos e articulistas políticos). Foi uma dos mais caros eventos promocionais de todos os tempos, ao custo de US$ 150 mil. O enorme Congress Hall, onde o filme foi exibido, estava lotado. Não foi uma coincidência, os críticos escreveriam mais tarde, que o evento tenha acontecido no dia 14 de dezembro de 1961, pouco depois que os russos começaram a construir o Muro de Berlim, e um dia antes que Adolf Eichmann fosse condenado por seus crimes de guerra em Israel.”

E aí o CineBooks’ conta um fato interessantíssimo, fascinante: antes da exibição do filme, o então prefeito de Berlim Ocidental fez um discurso. Chamava-se Willy Brandt – Willy Brandt, o estadista que, mais tarde, como primeiro-ministro, fez avançar a História, diminuindo os atritos com o império soviético, no que ficou conhecido como a realpolitik, o início da distensão que acabaria resultando, mais tarde, na reunificação da Alemanha.

Volto ao texto do Cinebooks’:

“Depois da exibição do filme, a audiência alemã ficou em silêncio absoluto. Apenas os membros da imprensa estrangeira aplaudiram. Os repórteres alemães condenaram Kramer por desenterrar o passado da Alemanha e por remexer em antigos ódios. Kramer enfrentou a todos, dizendo que a verdade e a justiça deveriam ser defendidas, e encorajou os cineastas alemães a fazer filmes sobre o Terceiro Reich de Hitler.”

         O cinema alemão tem desenterrado o passado

Exatamente naquele mesmo ano de 1961, Billy Wilder filmava em Berlim Cupido Não Tem Bandeira/One, Two, Three, sua sátira vigorosa, tão vigorosa que chegava a ser grotesca, sobre a guerra fria.

Não sei se é verdade o que o Cinebooks’ disse, sobre Stanley Kramer encorajar os cineastas alemães a fazer filmes sobre o Reich e Hitler. Mas o fato é que eles têm feito. Corajosamente, eles têm feito, têm desenterrado o passado, têm remexido nos antigos ódios. O gênio Rainer Werner Fassbinder fez vários, nos anos 70 e 80. Na primeira década dos anos 2000, vários cineastas foram lá mexer na caixa de marimbondos. Fizeram A Queda! As Últimas Horas de Hitler, fizeram Operação Valkiria, Fizeram A Onda. Que os deuses os tenham, a todos eles.

Julgamento em Nuremberg/Judgment at Nuremberg

De Stanley Kramer, EUA, 1961

Com Spencer Tracy (juiz Dan Haywood), Burt Lancaster (Ernst Janning), Richard Widmark (coronel Tad Lawson), Marlene Dietrich (Mme. Bertholt), Maximilian Schell (Hans Rolfe), Judy Garland (Irene Hoffman), Montgomery Clift (Rudolph Petersen), William Shatner (capitão Harrison Byers), Edward Binns  (senador Burkette), Kenneth MacKenna (juiz Kenneth Norris), Werner Klemperer (Emil Hahn), Ray Teal (juiz Curtiss Ives), Martin Brandt (Frieidrich Hofstetter), John Wengraf (Dr. Wieck)

Roteiro Abby Mann

Fotografia Ernest Laszlo

Música Ernest Gold

Montagem Frederic Knudtson

Produção Stanley Kramer, United Artists. DVD Silver Screen

P&B, 186 min (segundo o iMDB; 178 min, segundo o Cinemania)

R, ****

18 Comentários para “Julgamento em Nuremberg / Judgment at Nuremberg”

  1. Caro Sérgio, o poema de Maiakovski não é dele, mas de Eduardo Alves da Costa, muito confundido porque se chama “No caminho, com Maiakovski”. Se ainda não te dei parabéns pelo site, então parabéns.

  2. Sensacional. Acabei de ver o filme, e corri para ver comentarios na Internet, uma lastima nao ter filmes com esta densidade, a inteligencia, interpretacao – a coragem de acusar a humanidade toda….e o teu site esta de parabens, os melhores comentarios que encontrei.

  3. Dizer que Montgomey Clift é um grande ator é um erro quase tão colossal quanto dizer que comunismo e nazismo são a mesma coisa. Nunca vi um ator tão calculado e pouco natural quanto esse sujeito. Consegue superar os piores momentos do Dustin Hoffman.

    De resto, uma boa análise, um grande filme e o melhor dos que já vi do Kramer

  4. Assisti a esse filme ontem à noite. Cheguei até ele porque sou fã do William Shatner, ator espetacular, mas que tem uma filmografia que deixa muito a desejar.

    Não gostei do filme por estar impregnado da típica retratação hipócrita que é dada por Hollywood a eventos como a Segunda Guerra Mundial. Esse tipo de produção sempre santifica os Aliados, retratando-os como defensores da justiça e da paz, quando na verdade não foi assim. Em uma guerra real, não há heróis, mas interesses econômicos travestidos de humanismo. A única fala interessante do filme é quando o personagem de Maxmilian Schell questiona se os Aliados, o Vaticano e Churchill não deveriam ser julgados, também, por aquele tribunal. De fato, não era segredo o que os nazistas faziam. Os discursos de Hitler eram amplamente divulgados. Por que os Aliados demoraram tanto para reagir? O mundo inteiro teve responsabilidade no que aconteceu na Alemanha naquele período, logo usar meros funcionários do Estado como bode expiatório é uma atitude totalmente hipócrita. Sem falar que não foram só os nazistas que cometeram atrocidades na guerra (basta lembrar de Hiroshima e Nagasaki para constatar isso).

    A postura íntegra do personagem de Spencer Tracy é tão fantasiosa quanto a retratação de uma fada madrinha. O senso de justiça do magistrado não tem lugar em um evento como aquele, quando está em jogo o interesse do sistema capitalista na reestruração do cenário mundial. E o que dizer de Burt Lancaster no papel do alemão arrependido? Chega a ser ridículo de tão caricato (a cara de deprimido que ele faz no tribunal lembra a criatura de Frankenstein).

    Há duas sequências onde fica nitidamente clera a tosca justaposição de imagens para simular a passagem de um automóvel pela cidade, com a câmera dentro do veículo. Me dá indignação quando vejo esse tipo de estratégia. Se não havia recurso para filmar dentro de um carro em movimento, melhor seria evitar esse tipo de tomada.

    Em suma, um filme hipócrita de propaganda dos Aliados, como muitas outras bobagens feitas por Hollywood.

  5. Sérgio, o filme é um porre de competência. Seus comentários brilhantes, como se sempre. Só me permito uma correção: o poema citado não é de Maiakovski. O autor é Eduardo Alves da Costa.
    Em antiga entrevista à Folha de São Paulo ele diz:
    “Eu tinha 27 anos, militava na esquerda e pensei em Maiakóvski quando escrevi o poema”, diz Costa, enquanto toma água mineral num café no bairro de Higienópolis, em São Paulo. “Estava sentado num banco na Praça da República, no centro de São Paulo, quando me veio a ideia. Imaginei uma conversa com o poeta que mais admirava. Fui para casa e passei o texto a limpo.” Logo os versos se popularizaram, até fora do Brasil. Ainda hoje, passados 50 anos, há pôsteres com traduções de “No caminho, com Maiakóvski” decorando paredes de cafés de Londres, Paris e Praga. Tornou-se um dos poemas brasileiros mais conhecidos no mundo. Comicamente, há críticos que afirmam tratar-se do poema mais importante da vanguarda soviética. Até hoje, Maiakóvski não foi totalmente desmascarado.”

    Nascido em Niterói em 1936 e criado em São Paulo, isolou-se do ambiente cultural para escrever. Costa vive na Praia de Picinguaba, em Ubatuba, Litoral Norte de São Paulo, com a mulher, a produtora Antonieta Felmanas. Costa é bem-humorado e conversador.
    Como se vê, prezado Sérgio, o mundo inteiro desconhece o Eduardo.
    Forte abraço

  6. Olá, Deraldo!
    Muitíssimo obrigado pela correção.
    Interessante é que, anos atrás, outra pessoa culta, gentil e educada como você, Raphael Gomes, já havia me corrigido – e, estranhissimamente, eu não havia feito a correção no texto.
    Agora fiz. Com o devido agradecimento a você e ao Raphael Gomes.
    Um grande abraço.
    Sérgio

Comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *