Minha Esperança é Você / A Child is Waiting

Nota: ★★★☆

Anotação em 2010: Quase meio século depois, este filme dirigido por John Cassavetes permanece corajoso, forte, fascinante, impressionante. As interpretações são magníficas, e há uma série de seqüências antológicas, assustadoras e belas.

Até hoje, não é muito comum se falar no cinema sobre pessoas com deficiência mental, ou com necessidades especiais, a nomenclatura mais politicamente correta nos tempos do politicamente correto. Em 1962, então, era sem dúvida um ato de grande coragem fazer um filme sobre esse tema. O nome do produtor explica a coragem: Stanley Kramer era um sujeito que não tinha medo de polêmicas, de abordar temas difíceis. 

Passo a palavra a Jean Tulard, no verbete sobre Kramer no seu Dicionário: “Produtor audacioso e conhecedor de seu ofício – pois fora anteriormente montador e roteirista –, tornou-se um realizador polêmico. Engajou-se em todas as direções, sem fixar-se em nada. (…) Mas sua predileção recaiu sobre os filmes de mensagem. Denunciou com convicção o racismo em Acorrentados e Adivinhe Quem Vem para Jantar? e o nazismo no surpreendente Julgamento em Nuremberg.”

Para lembrar: em Acorrentados/The Defiant Ones, de 1958, quando o racismo ainda imperava com o apoio das leis no Sul dos Estados Unidos, dois prisioneiros, acorrentados um ao outro, fogem de uma penitenciária; um é branco (Tony Curtis), o outro é negro (Sidney Poitier), e os dois se odeiam. Em Adivinhe Quem Vem para Jantar?, de 1967, o último filme da dupla Spencer Tracy-Katharine Hepburn, um casal que se acreditava liberal e progressista percebe que não é tanto assim quando a filha apresenta o noivo, um negro (de novo Sidney Poitier, com aquele seu rosto belo como da mais bela estátua grega).

         Produtor corajoso, diretor talentoso, grande elenco

Neste Minha Esperança é Você, a coragem do produtor Kramer se une ao imenso talento do diretor John Cassavetes, tido hoje como o pai do cinema independente americano. Cassavetes, extraordinário ator, é um dos melhores diretores de atores da história do cinema. Teve aqui dois imensos astros, Burt Lancaster e Judy Garland, e ainda diversos experientes e ótimos atores em papéis secundários, a começar por uma radiantemente bela e jovem Gena Rowlands, senhora John Cassavetes, mãe do à época garotinho Nick, que mais tarde se tornaria também um bom diretor.

Só para dar um exemplo: John Marley, que seria o principal ator de Faces, o filme extremamente ousado que Cassavetes faria em 1968 (ousado e, na minha opinião chato, mas tudo bem), aqui faz uma breve aparição como um funcionário do governo federal. 

Todas as interpretações são excelentes, e Cassavetes não tinha vergonha alguma em abusar dos close-ups, algo de que o cinema americano não gostava muito na época, para se distanciar de sua grande rival, a TV.   

A escolha dos atores é perfeita. Burt Lancaster, acho eu, é bastante irregular; se o diretor deixar, fica careteiro demais – e, como ele foi também produtor de diversos de seus filmes, fez muita careta na vida. Mas, com um diretor bom, experiente, de rédeas firmes, teve interpretações magistrais. Não é à toa, afinal, que Luchino Visconti fez dele uma espécie de personagem de seu filme Belíssima, de 1951 (a personagem central, interpretada por Anna Magnani, é apaixonada pelo ator americano), e depois o dirigiu na obra-prima O Leopardo, de 1963, e em Violência e Paixão, de 1974; e também não é à toa que o italiano Bernardo Bertolucci o tenha escolhido para trabalhar em seu épico Novecento, de 1976, e o francês Louis Malle o tenha dirigido em Atlantic City, de 1980. 

Aqui, está perfeito. Alto, forte, atlético, figura imponente, tem o physique du role para fazer o dr. Clark, o diretor clínico de uma grande instituição para deficientes no interior de Nova Jersey. Clark é competente, abnegado, dedicado, decidido, firme como uma rocha. Exatamente o oposto da outra protagonista, Jean Hansen, que no início da ação se apresenta para trabalhar na instituição, embora não tenha experiência nem como enfermeira, nem como professora, nem tenha nunca lidado com deficientes na vida. É insegura, temerosa, tremelicante como vara verde; teve uma história de vida triste e solitária, fracassou no seu sonho de se tornar uma concertista; só é aceita no novo emprego porque Clark precisava desesperadamente de mão de obra.

Uma mulher insegura, temerosa, com um passado inquieto – é o papel que cabia como uma luva para Judy Garland, essa artista fenomenal e fenomenalmente problemática, atriz de cinema a partir dos 14 anos de idade, estrela mundial aos 17 com o papel de Dorothy em O Mágico de Oz, incensada tanto como atriz quanto como cantora – e dá-lhe cachaça para agüentar essa barra. Em parte devido à cachaça (misturada com muita pílula), a carreira de Judy Garland no cinema tinha ido ladeira abaixo: depois da segunda versão cinematográfica de Nasce uma Estrela/A Star is Born, de 1954 – justamente a história da queda de um artista e da ascensão de sua mulher –, ela passaria nada menos que sete anos sem filmar. Só voltou em 1961, nas mãos exatamente de Stanley Kramer, numa interpretação brilhante, marcante, em Julgamento em Nuremberg.

Jean Hansen, a mulher insegura como a própria atriz, de feições sempre turvadas por dúvidas, questionamentos, medos, foi o penúltimo personagem da carreira de Judy Garland. Um grande papel, uma grande interpretação.

         Jovens deficientes trabalham no filme e dão autenticidade forte

Uma das grandes qualidades da história de Minha Esperança é Você – o roteiro é de Abby Mann, baseado em texto de sua própria autoria – é que não ficamos conhecendo muito do passado do forte Clark e da insegura Jean. Em alguns diálogos rápidos, mostra-se um pouquinho: Clark é psicólogo, separou-se da mulher, mas se recusa a contar por que acabou indo cuidar de crianças deficientes porque a história seria comprida demais; Jean chegou a cursar a Julliard, a mais famosa escola de músicos do país, mas não deu certo, e ficou pingando de emprego em emprego até ser aceita naquela instituição. Não se fala um momento algum nisso, mas dá para intuir que ela deve ter tido problemas com o álcool – ou talvez tenha até se prostituído para sobreviver.

O passado deles, de qualquer forma, fica em aberto. O espectador que imagine o que quiser. Não é disso que o filme quer tratar.

O filme quer discutir a questão de como lidar com os deficientes.

E nisso reside seu valor, e ao mesmo tempo residem suas pequenass falhas.

Parte do valor, do grande valor do filme: jovens deficientes mentais fazem parte do elenco, estão lá representando a si próprios, o que dá um tom fortíssimo de documento, daquilo que os franceses chamaram de cinéma-vérité. E Cassavetes usa e abusa dos close-ups dos meninos – é chocante, é apavorante, é belo, no preto-e-branco escandalosamente bem fotografado pelo mestre Joseph La Shelle. Nos créditos iniciais, explicita-se que os produtores contaram com o apoio e a orientação de uma instituição da Califórnia de educação de deficientes mentais.

O filme defende a tese de que os jovens deficientes mentais, como se falava na época, ou os com necessidades especiais, como se diz hoje, devem ser cuidados em instituições especializadas, voltadas para eles, onde há apenas outras pessoas como eles. Devem sentir que estão entre pares, entre iguais; conviver com crianças diferentes deles só os fará ter mais e mais problemas. Mais ainda: eles devem ser ensinados a ter disciplina e nunca vergonha do que são; devem ser preparados para ter algum tipo de habilidade que permita de alguma forma sua insersão na sociedade. Devem ter dignidade.

Além de defender essa tese, o filme se dedica a demonstrar que os pais devem vencer o medo, o preconceito, e admitir o quanto antes que seus filhos com deficiência têm deficiência.

Para demonstrar isso, a trama criada por Abby Mann usa a história de um casal de classe média em ascensão social, cujo primogênito, Reuben (Bruce Ritchey), é deficiente. Tanto a mãe de Reuben, Sophie, mulher de boa formação universitária (o papel da grande dama Gena Rowlands, na foto abaixo), quanto o pai, Ted (Steven Hill), arquiteto ambicioso, dinheirista, carreirista, demoram muito a aceitar o fato de que, sim, Reuben é deficiente – e fica explícito que essa demora piorou as coisas para o menino. Pai e mãe são tão incapazes de aceitar o fato que o casamento acaba um ano após o primeiro diagnóstico, que eles insistem em reverter procurando uma segunda, uma terceira, uma quarta opinião. 

         Ao defender sua tese, o filme cai na armadilha do didatismo

É uma tese corajosa para ser exposta no cinema em 1963. Mas é uma tese, e, revendo o filme agora (eu havia visto pela primeira vez em 1964, no Cine Pathé, quando Savassi era apenas o nome da padaria, não do bairro que virou in na Belo Horizonte de hoje), foi impossível não ver nele uma coisa que corre o risco de ser perigosamente anti-arte: o didatismo.

É um belo filme, mas tem o drástico defeito de ser didático. E não dá também para não perceber que é datado. Não dá para apreciar o filme se não estivermos o tempo todo conscientes de que ele foi feito em 1963.

Mais complexo ainda: os conceitos médicos, psicológicos, pedagógicos mudam – como muda até a nomenclatura para definir as questões. Os conceitos mudam mais, na verdade, do que a gente muda de roupa. Até porque, se se reunirem numa conferência 37 pedagogos, teremos 37 diferentes teses, sistemas, modos de encarar a educação. Os conceitos mudam a todo momento. De 1963 para cá já devem ter surgido umas 432 teorias a respeito da melhor maneira de cuidar das pessoas com necessidades especiais.

         O dr. Clark do filme babaria de ódio com o que se faz hoje no Brasil

Visto hoje pelos gurus do politicamente correto, o filme deve chocar, e muito. Usam-se todos os termos banidos: defective (deficiente, mas também defeituoso, imperfeito), retardation (retardamento), mentally retarted (deficientes mentais).

No Brasil de hoje, está em vigor um troço que, me informa aqui a Mary, se chama de “educação inclusiva”. Na prática, isso significa que, em São Paulo, a maior cidade do país, por exemplo, as escolas públicas são obrigadas a aceitar alunos com as mais diversas deficiências. Botando em termos crus, não políticamente corretos: na mesma classe, então, podem (e devem, segundo a doutrina) conviver um garoto deficiente mental, um bando de garotos de inteligência mediana ou normal, e eventualmente um ou outro prodígio. E o coitado do professor tem que tornar atraente a matéria que está ensinando para todos eles, indistintamente.  

O dr. Clark do filme babaria verde de ódio diante da doutrina da “educação inclusiva”. Num dos muitos belos diálogos do filme (o texto é um brilho, ao longo de todo o filme), Clark mata a cobra e mostra o pau, ao falar com uma figura do governo federal que vai visitar a instituição. Jamais esqueci essa frase, ao longo de quase meio século:

– “Como você se sentiria se estivesse numa classe composta apenas por Einsteins?”

Minha Esperança é Você/A Child is Waiting

De John Cassavetes, EUA, 1963

Com Burt Lancaster (Dr. Matthew Clark), Judy Garland (Jean Hansen), Gena Rowlands (Sophie Widdicombe), Steven Hill (Ted Widdicombe), Bruce Ritchey (Reuben Widdicombe), Gloria McGehee (Mattie), Paul Stewart (Goodman), Lawrence Tierney (Douglas Benham), Elizabeth Wilson (Miss Fogarty), Barbara Pepper (Miss Brown), June Walker (Mrs. McDonald), John Marley (Holland)

Roteiro Abby Mann, baseado em história de sua autoria

Fotografia Joseph La Shelle

Música Ernest Gold 

Montagem Gene Fowler, Jr.

Produção Stanley Kubrick Productions, United Artists

P&B, 100 min

R, ***

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