Ao longo de seus cento e tantos anos de história, o cinema tem abordado, examinado, perscrutado, dissecado das mais diferentes formas – e combatido – o racismo, esse crime que é um dos piores que a humanidade soube inventar.
No denso, sério, profundo, politizadíssimo A Classe Operária Vai ao Paraíso, de 1971, o diretor Elio Petri aborda o racismo quase en passant. O protagonista, o metalúrgico Lulu, interpretado por Gian Maria Volontè, se orgulha do fato de ser do Norte da Itália, “quase na fronteira com a Suíça”, e tem desprezo pela gente do Sul, a região mais pobre, mais atrasada do país. É uma forma de classismo racista muito comum, que a gente pode observar em qualquer lugar, tanto na vida real quanto no cinema. Muita gente do Sudeste brasileiro demonstra isso em relação a quem nasceu da Bahia para cima, assim como tanto branco americano demonstra em relação aos imigrantes e aos negros.
No leve, nada sério, divertissement puro O Mundo Perdido – Jurassic Park, de 1997, Steven Spielberg aborda o racismo de maneira absolutamente sutil, fingindo que está en passant. A filha do personagem Ian Malcolm, interpretado por Jeff Goldblum, tem a pele negra. Não se explica por que a diferença da cor da pele da garotinha e do pai, e não se faz qualquer referência a ela. Para quem sabe somar 1 + 1, a mensagem é clara: a cor da pele não importa.
Adivinhe Quem Vem Para Jantar, de Stanley Kramer, de 1967, causou muita polêmica ao mostrar um casal de noivos de cores de pele diferentes. Na época – os Estados Unidos acabavam de proibir todas as formas de segregação racial, depois da longa e dolorosa luta pelos direitos civis –, ainda eram tabu no cinema os casais inter-raciais. No filme, um casal educado, muito liberal, progressista (Spencer Tracy e Katharine Hepburn) fica chocado com a notícia de que sua única filha (Katharine Houghton) está noiva de um homem bonito, culto, e negro. O noivo é interpretado por Sidney Poitier, que, três anos antes, em 1964, havia sido o primeiro negro a ganhar um Oscar de melhor ator, por Uma Voz nas Sombras/Lilies of the Field, de Ralph Nelson.
Em O Casamento de Rachel, de Jonathan Demme, de 2008, Rachel (Rosemarie DeWitt), branca, judia, muito rica, está se casando com Sidney (Tunde Adebimpe), cuja pele é negra. Não há uma fala sequer no filme que leve em consideração esse pequeno, ínfimo detalhe, de que as cores das peles dos noivos são diferentes.
Palestinos e israelenses juntos, fazendo belos filmes
Qualidade dos filmes enquanto filmes à parte, gosto demais da forma como Spielberg e Jonathan Demme colocam a questão. Eles mostram uma realidade que já existe: embora em minoria, uma parte da humanidade já se livrou do racismo. Ou, dito de outra maneira: é possível, sim, ir em frente. Não estamos todos condenados a ser idiotas, imbecis, ao longo de toda a História.
Até aqui falou-se da cor da pele. Vamos adiante – vamos dar uma olhada em outras questões relacionadas a racismo, supremacismo, xenofobia, imigração, Ocidente e mundo muçulmano, judeus x árabes.
Sempre mais à frente do que o resto do mundo, sempre na vanguarda, o cinema já demonstrou várias vezes, em obras brilhantes, que judeus e árabes podem, sim, conviver em paz, em harmonia. O israelense Eran Riklis e a palestina Hiam Abbas (foto), por exemplo, foram parceiros – ele na direção, ela como atriz – em duas obras-primas exatamente sobre a convivência em clima de guerra entre judeus e árabes, A Noiva Síria, de 2004, e Lemon Tree, de 2008.
Em O Pequeno Traidor, uma co-produção Israel-EUA de 2007, a diretora Lynn Roth, com base em um livro do israelense Amos Oz, conta a história do relacionamento de um garoto judeu e um sargento inglês, em Jerusalém, em 1947, às vésperas da decisão da ONU de criar um Estado para os judeus na Palestina então ocupada militarmente pela Grã-Bretanha; o garoto judeu que tem ódio dos ingleses vai, depois de adulto, ser um defensor ativo, militante – assim como o filme – da coexistência entre Israel e um Estado palestino.
Na obra-prima A Banda, uma co-produção Israel-França-EUA de 2007, o diretor israelense Eran Kolirin mostra, com maestria e uma grande ternura, a convivência dos moradores simples de uma pequena vila israelense e os músicos de uma banda militar egípcia. O encontro-desencontro entre o egípcio Tawifiq (Sasson Gabai) e a israelense Dani (Ronit Elkabetz, extraordinária atriz) é mostrado com uma elegância e uma competência raras; não é muito o que é dito, o que não é dito é uma imensidão, e tudo passa com muita força para o espectador. O pequeno discurso de Dani sobre os tempos em que ela era jovem e via com a mãe filmes egípcios – “nós todas amávamos Omar Sharif” – é de fazer chorar. As pessoas – o filme mostra esta grande verdade de uma forma magnífica, emocionante, tocante –, as pessoas comuns são muito maiores, mais sábias, melhores do que seus Estados, seus governos, as ideologias de seus países.
Em outra obra-prima, Gran Torino, um dos dois filmes que fez em 2008, aos 78 anos de idade, Clint Eastwood interpreta Walter Kowalski, um sujeito irascível, bruto, grosseiro, autoritário, conservador até a medula, racista, xenófobo. Xinga com todos os palavrões imagináveis os vizinhos da casa ao lado da sua, chineses da etnia hmong. Xinga o filho que tem e vende carro japonês. Japonês, coreano, chinês, para ele é tudo igual, tudo gente repulsiva, invasores de sua América sagrada. Implica (e nisso ele faz lembrar o metalúrgico Lulu, de A Classe Operária Vai ao Paraíso) até com os seus velhos conhecidos, como o barbeiro a quem chama de italiano – ele mesmo, Kowalski, um descendente de poloneses, num país feito por imigrantes.
Mas Walt Kowalski vai, ao fim e ao cabo, revelar-se assim um cão que ladra mas não morde. Late muito racismo – mas veremos que é da boca pra fora. Com pele de cão raivoso racista, ele é, na verdade, um ser humano sensível que se afeiçoa a pessoas diferentes dele próprio e é capaz de defendê-las em qualquer situação, custe o que custar.
Em O Visitante, de Tom McCarthy, de 2007, o professor universitário Walter Vale, magnificamente interpretado por Richard Jenkins, um sujeito solitário, amargo, desiludido, que perdeu o interesse pelas coisas e sobrevive quase como um autômato, vai redescobrir a gana de viver, a alegria da amizade, do companheirismo, através do contato com Tarek, um rapaz sírio, imigrante ilegal na capital do mundo.
A sociedade pós-racial está aí
Não sei se está bem claro o que estou tentando dizer até aqui. O que quero realçar é isto: o cinema já mostrou muito claramente que é possível avançar, ir em frente, deixar o racismo para trás. O cinema demonstrou, cabalmente, que já existem exemplos de uma era pós-racial.
A eleição de Barak Obama para a presidência do país em que até 1964 a segregação racial era sacramentada por leis em diversos Estados trouxe à baila essa expressão e esse conceito, a sociedade pós-racial, o mundo pós-racial. Ainda é um sonho distante um mundo em que a cor da pele, a origem, a opção religiosa não tenham importância alguma – mas já há exemplos fartos de convivência harmônica entre brancos e negros, judeus e árabes, muçulmanos e cristãos. É possível, é plausível – já existe, ainda que numa escala muito menor do que todos desejaríamos.
Assim como mostra que é possível avançar, o cinema, olhando para trás, já denunciou, e continua e vai continuar denunciando o crime do racismo. Ainda bem. É preciso sempre bater nesta tecla, sem parar, não importa quantas vezes – para nos alertar continuamente contra esse absurdo, para disseminar que é necessário combatê-lo sempre. Como eu anotei ao ver Em Nome da Honra, do australiano Phillip Noyce, de 2006: Mais um filme sobre o apartheid – e que venham mais, que venham quantos vierem. Ou sobre Sombras do Passado (foto), de Tom Hooper, de 2004, uma co-produção Inglaterra-África do Sul: Ainda outro filme sobre o apartheid. Repito o que falei: que venham mais filmes sobre o apartheid, quantos vierem. Todos são bem-vindos.
Assim como são bem-vindos todos os filmes que denunciam o anti-semitismo – e esses são centenas, são milhares, mas tudo bem, que venham mais. E que venham mais filmes denunciando o poder descomunal do Estado israelense, sua prepotência, seu expansionismo – o sionismo é tão criminoso quanto o anti-semitismo.
Que sejam bem-vindos todos os filmes mostrando os abomináveis crimes nazistas contra os judeus, como A Lista de Schindler, A Trégua, O Leitor, Um Homem Bom, Enquanto Houver Esperança. E que sejam da mesma forma bem-vindos todos os filmes mostrando a abominável prepotência de Israel, como Lemon Tree, A Noiva Síria, Sob o Céu do Líbano.
Num monólogo, toda a imbecilidade do supremacismo
E que sejam bem-vindos todos os filmes denunciando o preconceito contra os imigrantes, que tem manchado cada vez mais os países ricos, especialmente os europeus, aqueles países desenvolvidos, culturalmente avançados, que se orgulham de ser o berço da civilização ocidental e ter longa tradição democrática, humanista, mas hoje, cada vez mais invadidos por cidadãos dos países pobres que colonizaram no passado, chafurdam na miséria do preconceito, do racismo.
Em A Pequena Lili, um drama sobre família, amor, traição, juventude & maturidade, e também sobre cinema, dirigido pelo francês Claude Miller e inspirado na peça A Gaivota, do russo Anton Tchekhov (1860-1904), há uma frase quase solta, no meio da ação; um dos personagens secundários, Simon (Jean-Pierre Marielle), diz que não quer voltar para Paris porque lá agora há negros demais.
Em Lila Diz…, do diretor libanês Ziad Doueiri, co-produção França-Itália-Inglaterra de 2004, a câmara faz close-ups de uma garota muito jovem e muito bonita, a Lila do título (Vahina Giocante); são diversos planos curtos, bem montados, um após o outro, todos em big close-up; o rosto ocupa a tela inteira; a câmara se mexe, aproxima ainda mais; há momentos em que vemos apenas a boca da menina, os olhos. Há momentos em que a expressão dela é de uma adolescente inocente, angelical; às vezes a expressão dela é de pura safadeza, uma Lolita com o diabo no corpo. Eis o que diz Lila, que mora num gueto de árabes em Marselha, e está falando para um adolescente árabe que emigrou para a França:
– “Reparou que eu tenho cara de anjo? Todo mundo diz. Está vendo meus olhos? São claros e azuis. Você daria tudo por eles. Está vendo meu cabelo? Louro como o dos anjos, e a pele branca. Minha tia diz que isso vem de longe, de cinco gerações. Conhece minha tia? Ela diz que eu sou tão loura que pareço uma mancha. Nem os especialistas sabem por quê. Sou como uma Ferrari no meio do lixo.”
E eu anotei, assim que terminei de ver o filme: Meu Deus do céu e também da terra, que civilização nós criamos, que ensina uma meninota de uns 18, 20 anos a dizer uma frase como esta – “Sou como uma Ferrari no meio do lixo”? – porque sua pele é branca, o cabelo, louro, e os olhos, claros?
Foi quando ouvi essa fala supremacista, racista, louca, que tive a idéia de criar uma tag para reunir os filmes que tratam de racismo e de imigração, preconceito contra o imigrante esse outro grande drama, irmão siamês do primeiro.
A busca de uma terra melhor, um tema eterno
A imigração – gente que deixa seu país, em geral para fugir da pobreza, em direção a uma terra que promete mais conforto, mais liberdade, mais felicidade, para muitas vezes encontrar uma realidade duríssima, de muito trabalho em troca de quase nenhum dinheiro, nenhuma realização, e todo tipo de dificuldade – é outro tema que sempre cativou o cinema. Há filmes de todos os tipos sobre imigração.
A própria Meca do cinema, o lugar que acabaria virando o centro mundial da produção cinematográfica, bem no início do cinema e do século XX, foi construído basicamente por imigrantes – assim como de resto todo o país em que ela se localiza. No início do século XX, acorria para os Estados Unidos gente de todas as partes da Europa, russos, italianos, gregos, suecos, ingleses, austríacos, e bota etc nisso.
Mas Hollywood, especificamente, talvez mais do que qualquer outro lugar do mundo, ou só rivalizando com Nova York, é um lugar feito por imigrantes. E, nas últimas décadas, a região em que Hollywood se localiza, a Grande Los Angeles, todo o sul da Califórnia, tem sido invadida por levas e levas de imigrantes mexicanos e de toda a América Latina.
Não é de se estranhar, assim, que a imigração seja um tema constante do cinema americano – e também que a imensa maioria dos filmes tenha um viés simpático aos imigrantes, e não contrário a eles. Muitos dos grandes estúdios sempre foram ou ainda são dirigidos por judeus, eles próprios vítimas de perseguição em diversos lugares do mundo; os artistas e técnicos, muitos deles filhos de imigrantes, gente mais estudada, mais culta que a média, tende a ser liberal, progressista – à frente do senso comum, em geral mais conservador. Ainda bem que é assim.
Em Um Dia Sem Mexicanos, de 2004, uma co-produção EUA-México-Espanha, o diretor mexicano Sergio Arau mostra como seria caótica a vida na Califórnia se um belo dia todos os imigrantes fizessem greve. O filme é interessante, inteligente, brinca bem com o tema sério. A diretora Patricia Riggen, que como Sergio Arau é mexicana e trabalha tanto no seu país de origem quanto nos Estados Unidos, não faz graça nenhuma ao tratar do mesmo tema. Em seu ótimo Sob a Mesma Lua (foto), de 2007, ela envolve e emociona o espectador ao contar a história triste de uma jovem mãe que imigra ilegalmente para os Estados Unidos deixando o filho garoto no México, aos cuidados da avó – até que, aos nove anos de idade, o menino resolve fazer a travessia da fronteira por sua conta e risco, na tentativa de reencontrar a mãe.
“Pobre México, tão perto dos Estados Unidos, tão longe de Deus.” A bela frase resume o drama de milhões de pessoas que vivem tão perto do país mais rico do mundo que fica difícil resistir à tentação de cruzar a fronteira, mesmo correndo todos os riscos – inclusive o de encontrar lá, em vez do paraíso, empregos mal pagos, em condições horrorosas, como mostra o diretor Richard Linklater em Nação Fast Food, de 2006.
Nesse filme, a colombiana Catalina Sandino Moreno (foto) interpreta uma das muitas mexicanas imigrantes ilegais exploradas num sub-emprego numa fábrica de hambúrgueres. Antes, a atriz havia feito o papel de uma colombiana que viaja aos Estados Unidos como uma “mula” do tráfico de drogas, no tristíssimo, cruel Maria Cheia de Graça, de 2004, que lhe deu uma indicação ao Oscar. Em Paris, Te Amo, de 2006, que reúne pequenos curta-metragens de vários diretores de todo o mundo, Catalina Sandino Moreno, dirigida pelo brasileiro Walter Salles, faz uma imigrante latino-americana que deixa seu filhinho numa creche para cuidar do filho de uma burguesa em Paris.
Se hoje os Estados Unidos fazem de tudo para barrar a entrada de imigrantes no país – como mostra, com brilhantismo e a força de um soco no estômago, o filme Território Restrito/Crossing Over, do sul-africano Wayne Kramer, de 2009, com Harrison Ford e atores e atrizes das mais diversas nacionalidades, inclusive a brasileira Alice Braga –, um século, um século e meio atrás o país abria as portas às pessoas de fora. E recebia levas, hordas de gente de diversos países europeus, da Irlanda à Itália, Grécia, Turquia, Suécia, Rússia, Polônia. O diretor Elia Kazan, nascido em Constantinopla filho de pais gregos que emigraram para os Estados Unidos quando ele tinha quatro anos, fez um dos mais belos filmes sobre a travessia do Oceano Atlântico daquelas multidões que se comprimiam na terceira classe de navios abarrotados em direção ao que imaginavam ser o Paraíso, A Terra do Sonho Distante/America, America, de 1963, um filme autobiográfico, emocionante, num preto-e-branco glorioso, num tempo em que estavam desaparecendo os filmes em preto-e-branco.
O italiano Emanuele Crialese faria outra obra-prima sobre o mesmo tema, em que a maior parte da ação igualmente se passa no navio dos imigrantes pobres: seu Novo Mundo, de 2006 (foto acima), tem algumas das imagens mais belas, impressionantes, acachapantes que vi nos últimos muitos e muitos anos, como anotei logo depois assistir ao filme. Um plano geral, em plongée, a câmara numa grua altíssima – centenas, milhares de pessoas vistas do alto, uma multidão compacta, as pessoas apertadas umas contra as outras; lentamente, suavemente, vai-se abrindo um espaço no meio da multidão, o espaço vai aumentando, crescendo – o navio apinhado de imigrantes começa a se distanciar do porto apinhado de gente que foi se despedir, ou simplesmente olhar a partida, talvez futuros imigrantes num próximo navio. Mal o espectador está refeito dessa tomada maravilhosa, violentamente bela, e vem outra. De novo plano geral em plongée, câmara bem no alto, agora só da multidão no convés do navio. Ouve-se o apito fortíssimo do alto de uma das chaminés – e toda a multidão, espantada, chocada, se volta para cima, para o apito, para a câmara. É uma beleza de doer. A seqüencia dos imigrantes amontoados sofrendo quando o navio enfrenta uma tempestade em alto mar é outro brilho. Fascinante: não é uma reconstituição naturalística; ao contrário, é estilizada, é quase um balé – trágico, desengonçado, torto.
A terra dos sonhos que, após uma sofrida viagem através do oceano, revela-se um pesadelo foi o tema de um dos melhores filmes brasileiros dos anos 70 e 80, Gaijin – Os Caminhos da Liberdade, de Tizuka Yamasaki, de 1980. Anos mais tarde, outro filme brasileiro sobre imigrantes – estes italianos, no Rio Grande do Sul –, O Quatrilho, de Fábio Barreto, de 1995, conseguiria um feito raro, a indicação para o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.
Raras exceções
Felizmente, são bem raros os filmes racistas, supremacistas de qualquer natureza, ou contra imigrantes. O caso mais emblemático é O Nascimento de uma Nação, de D.W. Griffith, de 1915. Griffith foi um dos diretores que estabeleceram a linguagem cinematográfica – foi um dos primeiros a empregar flashbacks e ações paralelas, a usar a montagem como elemento importante na narrativa, a dar ênfase aos movimentos da câmara e a incentivar os atores a encontrar uma forma de expressão diferente da usada no teatro. Foi ainda um dos primeiros, ou o primeiro, a filmar numa vilazinha próxima de Los Angeles chamada Hollywood. O diretor é importantíssimo na história do cinema – mas seu O Nascimento de uma Nação defende a Ku-Klux-Klan, o símbolo mais nojento do racismo americano.
É uma exceção – assim como acabariam virando exceções os filmes que, embora não chegando propriamente a defender o massacre dos índios, no processo de avanço rumo ao Oeste americano, dão de ombros, viram para o outro lado, ou o tratam como parte natural da história. John Ford, o mestre em cujos westerns centenas e centenas de índios foram mortos, explicitou o racismo contra os índios em Rastros de Ódio/The Searchers, de 1956, considerado por muita gente (inclusive o American Film Institute) como o melhor western já realizado.
O protagonista do filme, Ethan Edwards (uma das melhores interpretações da longa filmografia de John Wayne), um ex-militar que lutou pelos Confederados contra o fim da escravatura e ainda usa o uniforme dos derrotados, conhece as crenças, tradições e línguas dos índios, mas tem um profundo ódio de todos eles. Quando o irmão de Ethan, sua cunhada e sua sobrinha são mortos num ataque dos comanches, e Debbie, a outra sobrinha, é seqüestrada, ele passa a existir em função da vingança; ao longo de cinco anos, persegue o grupo que atacou sua família – não tanto para resgatar a sobrinha, que a essa altura já não estaria mais tão “branca” quanto ele gostaria, mas para matar os índios responsáveis pela tragédia.
Quatro anos mais tarde, em 1960, John Huston faria outro filme com um dos mais assustadores relatos de preconceito racial jamais mostrados num western – O Passado Não Perdoa/The Unforgiven, com Burt Lancaster e Audrey Hepburn (foto). É tão assustador quanto o racismo do personagem de John Wayne em Rastros de Ódio. “The Unforgiven toca com convicção num tema que só vem à tona ocasionalmente nos westerns: a virulenta intolerância que floresceu entre os pioneiros e colonos do Oeste”, diz o livro Great Hollywood Westerns, de Ted Sennett. “O violento ódio dos índios que Ethan Edwards levou à sua busca pela sobrinha seqüestrada em The Searchers, ou a fúria que leva ao linchamento do indianizado irmão de Marty Purcell em Two Rode Together (Terra Bruta, também de Ford), de 1961, mostram o racismo que impregnava aquele tempo.”
O livro Great Hollywood Westerns lembra, depois, que o mestre John Ford iria admitir, em entrevista ao cineasta e historiador Peter Bogdanovich, autor do livro John Ford: “Vamos enfrentar a verdade, nós os tratamos muito mal”, diz, sobre os índios. “É uma mancha que carregamos. Trapaceamos, roubamos, matamos, assassinamos, massacramos, e tudo o mais, mas se eles matassem um homem branco, Deus, lá vinham as tropas.”
Como penitência pelos erros do passado, mestre Ford fez, em 1964, o belo Crepúsculo de uma Raça/Cheyenne Autumn, em que enfocava a conquista do Oeste pela visão dos derrotados, e não dos vencedores. Como Rastros de Ódio e O Passado Não Perdoa, mas talvez ainda mais que eles, Crepúsculo de uma Raça abriu caminho para os filmes posteriores que, invertendo a forma mostrada anteriormente em muitos westerns, faziam a clara defesa dos índios. Pequeno Grande Homem, de Arthur Penn, de 1970, e Dança com Lobos, de Kevin Costner, de 1990, foram os mais vigorosos nessa postura pró-índio e de denúncia dos massacres perpetrados pelos brancos.
E como, apesar de tudo, apesar de todas as forças do atraso, a Terra gira, a Lusitana roda e a história vai em frente, Kevin Costner fez, em Dança com Lobos, coisas que seriam absolutamente inimagináveis alguns anos antes, além do simples fato de ser pró-índio e condenação dos massacres: boa parte de seu filme é falado em linguagem dos índios, e foi exibido com subtítulos, coisa que os manuais do mercado americano dizem ser fatal; e o filme durava 3 horas, quando os tais manuais dizem que para ter sucesso um filme não pode passar de duas horas. Foi um sucesso tremendo, e ganhou um bando de Oscars – levou sete, fora cinco outras indicações.
De fato, tirando poucas exceções, em todo o mundo, em todas as épocas, o cinema é anti-racismo, anti-xenofobia.
O radicalismo leva ao radicalismo – ainda há quem não saiba?
Os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001, que produziram um recrudescimento dos crimes de racismo e xenofobia em diversas partes do mundo, resultaram, no sentido inverso, em um grande número de filmes denunciando esses absurdos e condenando a política supremacista, imperial, todo-poderosa, de Bush e Cheney. Vários deles já foram comentados aqui neste site – belos filmes que demonstram que a radicalização total só leva a mais radicalização do outro lado.
É o que mostra, por exemplo, Ato Terrorista/The War Within, de Joseph Castelo, de 2005. O personagem central, Hassan (interpretado pelo co-roteirista do filme, Ayad Akhtar), é um paquistanês classe média, estudante de Engenharia no Canadá, que é preso por agentes da CIA em Paris e entregue à polícia do Paquistão por ser suspeito de ligações com o terrorismo. Ele não tem qualquer conexão com grupo terrorista algum; seu irmão, porém, tinha, e foi assassinado. Torturado na prisão, e sob a influência de um companheiro de cela, Hassan então, sim, se converte ao terrorismo.
A lista dos filmes feitos nos Estados Unidos sobre o mundo pós-11 de setembro tem outros belos exemplos, como No Vale das Sombras/In the Valley of Elah, Medo e Obsessão/Land of Plenty, O Traidor/Traitor, Rede de Mentiras/Body of Lies, Inspeção Geral/Strip Search.
Inspeção Geral/Strip Search, é um descarado, fortíssimo panfleto a favor dos direitos humanos e contra a estratégia do governo Bush de relegar esses direitos a segundo plano em nome da guerra contra o terror. Fortíssimo, feroz, e extremente didático – ao mostrar um árabe sendo interrogado por uma agente oficial do governo americano (Glenn Close) exatamente com as mesmas perguntas e situações humilhantes por que passa uma jovem americana (Maggie Gyllenhaal, na foto) na China.
O filme, feito para a TV americana, foi dirigido pelo veterano defensor das causas liberais Sidney Lumet; judeu, Lumet foi casado com Gail Lumet Buckley, por sua vez filha da fantástica cantora Lena Horne, que cantou e dançou no famoso Cotton Club do Harlem, onde, como mostrou o filme de Francis Ford Coppola que leva o nome do clube, apresentavam-se artistas negros, para uma audiência estritamente branca – não se permitia a entrada de negros como fregueses. O diretor Sidney Lumet e Gail Lumet Bucket são os pais de Jenny Lumet, a autora do roteiro do já citado O Casamento de Rachel, aquele em que Rachel, judia, se casa com um negro – e não há uma fala sequer no filme a respeito da diferença das cores das peles dos noivos.
A miscigenação, essa maravilhosa arma contra o racismo, que produz pessoas lindas, como a roteirista Jenny Lumet e as atrizes Halle Berry e Rosario Dawson (descendente de porto-riquenhos, negros de Cuba, irlandeses e índios americanos), é citada num excelente diálogo de Ódio/Hate, um episódio da quinta temporada (2003-2004) do seriado da TV americana Lei e Ordem: Special Victims Unit, que também fala sobre o pós-11 de setembro.
Nesse episódio Ódio, dois árabes – uma mulher, depois um homem – são assassinados, e de maneira estupidamente bárbara: queimados vivos, depois de uma brutalidade sexual. O tipo de crime leva os policiais da Special Victims Unit a suspeitarem de motivação racista. Um suspeito é preso; no longo interrogatório diante dos detetives Olivia Benson e Elliot Stabler (Mariska Hargitay e Christopher Meloni), o suspeito, Sean, descendente de irlandeses, se mostra um racista extremado. Há este diálogo:
Sean: – “Sou um americano de verdade. Eu nasci aqui. As coisas eram diferentes quando eu era mais jovem. Não havia essas pessoas (ele se refere aos árabes, quaisquer que forem eles, sejam terroristas, extremistas ou não, apegados à religião ou não, xiitas ou sunitas, ou o que for).
Olivia Benson, enraivecida, e com toda a razão do mundo: – “Sempre houve estrangeiros. Todos somos estrangeiros. Este país foi feito por imigrantes.”
Quando finalmente o interrogatório termina, após mais de 4 horas e meia, Olivia conversa com o detetive Fin Tutuola, interpretado pelo ótimo Ice-T, que ficou famoso como cantor de hip-hop, e tem a pele negra. Tutuola diz uma frase ótima:
– “Daqui a uns séculos, as raças estarão tão misturadas que isso não vai ter a menor importância. Ninguém saberá a cor de ninguém.”
Tomara que não demore tanto, alguns séculos – tomara que isso seja bem mais rápido.
Aliás, o Brasil sempre foi um exemplo disso, de país gloriosa, maravilhosa, felizmente miscigenado, e que, ao contrário dos Estados Unidos e da África do Sul, nunca teve leis separando as pessoas pela cor de sua pele – até agora. No governo Lula, infelizmente, tem ganhado força a corrente racialista, que pretende fazer o país retroceder também nesse campo em que ele era exemplo de avanço.
Construindo as pontes entre culturas diferentes
Como os americanos, os europeus também têm feito diversos bons filmes sobre imigrantes muçulmanos e de outros países pobres, do Leste europeu ou do Terceiro Mundo. Em Yasmin, Uma Mulher, Duas Vidas/Yasmin, co-produção de Inglaterra e Alemanha, o diretor Kenneth Glenaan mostra a dura vida de uma paquistanesa numa periferia de cidade inglesa, na época do ataque terrorista de 11 de setembro – e indica que não há saída para esses imigrantes pobres. Yasmin, o personagem título, bem que tenta se misturar aos ingleses, não dá muita importância às suas origens e sua religião, mas o preconceito e o medo dos ingleses acabam empurrando-a para mais perto de seu próprio povo.
No badaladíssimo – e excelente – Entre os Muros da Escola/Entre les Murs, de 2008, o diretor francês Laurent Cantet focaliza uma classe do correspondente à nossa sétima série de uma escola pública da periferia de Paris, nos dias de hoje, e portanto com uma forte presença de imigrantes e/ou filhos de imigrantes africanos, muçulmanos, orientais, antilhanos. Há uma imensa tensão na classe. Há tensão social, racial; a questão da autoridade do professor é colocada em xeque praticamente o tempo todo.
Há tensão social e racial na cidade do litoral mediterrâneo francês que o diretor Abdel Kechiche focaliza no seu também badalado – e ótimo – O Segredo do Grão/La Graine et le Mulet, um filme sobre relações familiares, a vida de imigrantes argelinos enfrentando preconceito e dificuldades de se achar trabalho na França de hoje. O protagonista é Slimane Beiji (Habib Baoufares), um franco-argelino de 61 anos que, quando a ação começa, está sendo demitido do estaleiro no qual trabalhou durante 35 anos, na cidade portuária de Sète. A tensão sobe a níveis estonteantes em uma seqüência admirável, antológica, em que Rym, a enteada de Slimane, por dedicação a ele, executa uma longa, extenuante dança do ventre diante de uma platéia de chocados burgueses franceses. Rym é interpretada por Hafsia Herzi, francesa descendente de argelinos e tunisianos, que estava com 20 anos quando fez o filme, em 2007; ela se mostra uma atriz de talento absurdo, soberbo.
O diretor Abdel Kechiche nasceu na Tunísia; sua família emigrou para Nice quando ele tinha 6 anos, em 1966; ele trabalhou como ator em um dos filmes sobre o pós-11 de setembro, Sorry Haters, de 2005, no papel de um sírio com PhD em Química que, em Nova York, sobrevive como motorista de táxi; seu irmão foi – injustamente, segundo ele – preso no aeroporto JFK acusado de ligação com terroristas.
Em 2008, Abdel Kechiche recebeu, juntamente com Fatih Akin, a Medalha Charles Magno para as Mídias Européias (Médaille Charlemagne pour les Médias Européens), um prêmio dado a quem se distingue, nos meios de comunicação, por seu trabalho em prol da integração européia; o prêmio é dado anualmente por uma associação do mesmo nome, que reúne representantes da BBC, Deutsche Welle, TV5 e outras grandes empresas de mídia de diversos países da Europa. Em 2009, o prêmio foi para a ONG Repórteres Sem Fronteiras.
Fatih Akin, que dividiu o prêmio com o cineasta francês nascido na Tunísia, nasceu em Hamburgo, em 1976, filho de imigrantes turcos. Em seu belo filme Do Outro Lado/Auf der Anderen Seite, de 2007, uma co-produção alemã-turca-italiana, ele entrelaça com brilhantismo os destinos de seis personagens, três duplas de pais e filhos, na Alemanha e na Turquia. O filme trata de diferenças culturais, de choque de civilizações, mas, sobretudo, se concentra na relação de pais e filhos – criados em diferentes mundos, em diferentes culturas, separados por um abismo.
Dois anos antes, em 2005, Fatih Akin havia feito Cruzando a Ponte: o Som de Istambul, um belo documentário em que o compositor e instrumentista alemão Alexander Hacke entrevista e grava cantores e grupos musicais turcos. A música turca é impressionantemente rica, como bem mostra o documentário, e faz – assim como os filmes de Akin – a travessia da ponte sobre o Bósforo, ela própria uma metáfora forte do que une e separa Europa e Ásia, Ocidente e Oriente, a civilização cristã e a civilização muçulmana.
É uma maravilha que esses imigrantes ou filhos de imigrantes mostrem sua visão da sociedade. O cinema sempre foi uma Babel, onde pessoas de todas as origens, religiões, identidades culturais se reúnem e trabalham juntos. Todas as artes são assim, mas o cinema tem essa característica intrínseca, por ser a forma de arte que mais gente envolve. Basta reparar nos créditos finais de qualquer filme, em especial nos feitos nos últimos anos: estão ali, sempre, diversas, muitas vezes dezenas de nacionalidades.
No mundo de quem faz cinema, já se chegou à era pós-racial.
Ainda bem que ainda podemos usar a tecnologia para promover a cultura e difundir a ideologia da paz, pois sempre que o homem fizer no cinema um recorte que obriguem as pessoas a desconstruir velhos conceitos e reconstruir boas práticas estaremos caminhando para a felicidade comum, pois do contrário será catastrófico.
Boa tarde!
Meu nome é Anderson; gostaria de saber um nome de um filme em que assisti na TV algum tempo atrás… me lembro de alguma cenas dele mas não sei o nome. Na história, uma turca vai morrar na Inglaterra; ela entra ilegal no país e conhece um homem argelino que dá uma assistência pra ela. Detalhe: ele nunca dorme; trabalha à noite. Muito bom esse filme; queria saber o nome dele.
Olá, Anderson. O filme a que você se refere é Coisas Belas e Sujas/Dirty Pretty Things, de Stephen Frears. Já está no site meu comentário sobre ele.
Um abraço.
Sérgio
Olá a todos, gostaria de saber se alguem sabe o nome de um filme em que um casal de mexicanos morando em Los Aneles com os filhos tem a mãe deportada para o méxico e ela volta atravessando a fronteira com o seu beb que quase morre em rio, quando essa criança cresce e se torna um rapaz com o nome de tchotcho, morre a tiros pela policia e seu irmão Jimmy ve tudo, quando cresce vai para a prisão e quando sai ajuda sua irmã que deixou de ser freira para ajudar imigrantes ilegais que inclusive força ele a se casra com uma imigrante que foge de seu país da américa central…assisti esse filme na tnt umas duas vezes e se não me engano chama-se (minha familia minha vida), mas não consigo encontra´-lo. alguem poder me ajudar …muito obrigado…
Caro Sérgio,parabéns pela lista e mais ainda pelos comentários. Estou procurando um filme sobre ETs que tem o racismo como pano de fundo. O filme é um curta da série Amazing stories do Spielberg,(eu acho), onde os alienígenas invadem a terra passando-se por bonzinhos e querendo resolver todos os nossos problemas. Em troca levariam com eles todas as pessoas com pigmentação de melanina, ou seja, os negros. Um filme belíssimo que me impressionou bastante. Me ajude, meu irmão.
Olá, Cláudio!
Muito obrigado pela mensagem, e pelo elogio.
Mas, rapaz, não creio que possa ajudar você. Vi muito pouco da série Amazing Stories, e não me lembro dessa que você cita. Mas sugiro que você vá ao imdb.com, e procure por Amazing Stories. Eles têm a sinopse de todos os episódios das séries.
Um grande abraço!
Sérgio