Gran Torino


Nota: ★★★★

Anotação em 2009: É impressionante: quanto mais velho, melhor Clint Eastwood fica. Em 2008, o ano em que fez 78 anos de idade, dirigiu dois filmes excepcionais: primeiro A Troca/Changeling, e depois este Gran Torino. É um assombro.

Aqui, ele faz belas considerações sobre preconceito, imigração, racismo, xenofobia, violência, aprendizagem, crescimento, religião, tradição e modernidade, relações pais e filhos, velhos e jovens. E rema contra a maré conservadora, retrógrada.

Não resisto à tentação de repetir o que disse quando, algumas semanas atrás, comentei sobre A Troca: Não precisava, já estava muito claro, mas, com este filme, Clint Eastwood comprova mais uma vez, como vem fazendo sempre, no mínimo desde Os Imperdoáveis/Unforgiven, de 1992 , que é um dos melhores, mais completos, mais sensíveis cineastas da história.

Depois que saí do cinema onde vi pela primeira vez Os Imperdoáveis, fiz uma anotação sobre Clint Eastwood e a violência.  (Naquele tempo, eu anotava sobre os filmes que via apenas por pura diversão e prazer, para mim mesmo, sem qualquer intenção de que os textos viessem a ser lidos por outras pessoas). Disse que o filme “é um western que reflete as preocupações do final do século XX. É uma espécie de Grand Canyon passado não hoje, mas um século atrás. Mais ainda: é um filme que faz reflexões sobre o cinema, e o que o cinema de massa fez, neste século – especialmente o culto à violência. (…) Desde que o cinema nasceu, o western foi o gênero mais clássico. É possível que ele tenha servido para disseminar, massivamente, a defesa da violência. Hoje a violência no cinema é banalizada, assim como na vida, no dia-a-dia das pessoas nas grandes cidades. Clint Eastwood fez um western para se refletir sobre a violência.”

E ia em frente: “Em cem anos, o cinema glorificou, glamourizou, endeusou a força bruta, a violência, o assassinato, a execução. Em cem anos, a violência se banalizou, entrou para o dia-a-dia de cada um. A maior parte dos filmes hoje, e de resto há pelo menos três décadas, tem sucesso se explora sexo (de preferência doentio) e violência. Clint Eastwood teve parte nesse processo – como ator em westerns, vários deles dirigidos por Sergio Leone, e policiais, vários deles dirigidos por Don Siegel, seus dois mestres a quem o filme é dedicado. Em Unforgiven, que poderia ter sido a despedida, a mensagem final, ele pensa sobre tudo isso. Na seqüência final, mata cinco homens, e promete matar quem mais aparecer. Mas faz isso para se livrar de uma vez por todas do passado. Sai para uma outra vida. Uma segunda chance.”

agran2Repito isso aqui porque tem tudo, absolutamente tudo a ver com Gran Torino. Em boa medida, Gran Torino é uma retomada de Os Imperdoáveis, uma nova visão, uma nova reflexão, 16 anos depois, sobre o mesmo tema, a vingança contra sujeitos que cometeram barbaridades. E Clint Eastwood, que como ator em bangue-bangues e em policiais matou uma quantidade incalculável de pessoas, vai agora mais além do que já havia ido em Os Imperdoáveis.

No filme de 1992, Bill Munny, o personagem interpretado pelo próprio Clint, um ex-pistoleiro beberrão que mudou de vida por causa da mulher, Claudia, e agora é um pacífico fazendeiro viúvo tendo que criar sozinho os filhos, é procurado por um grupo de prostitutas que se dispõe a pagar uma boa quantidade de dinheiro a ele para que se vingue de um brutal, estúpido ataque a uma delas cometido por um cliente. Bill Munny aceita a missão – basicamente porque achava a causa justa e precisava muito do dinheiro para a criação dos filhos.    

Walter Kowalski, o personagem interpretado por Clint em Gran Torino, também terá que encarar uma situação em que toma para si a tarefa de vingar uma moça e um rapaz brutalizados por uma gangue. Não fará isso por dinheiro, mas por uma questão de honra, justiça, leadade, amizade. E o caminho que ele vai escolher é bem diferente daquele escolhido por Bill Munny de Os Imperdoáveis.

Nos 16 anos que separam os dois filmes, o veterano artista Clint Eastwood avançou ainda mais na mesma direção que vinha tomando fazia tempos. Radicalizou – não rumo à barbárie que cada vez mais assola a sociedade, mas no rumo oposto.

         No começo, o adeus à companheira

Quando começa Os Imperdoáveis, Bill Munny está cavando a cova para enterrar sua mulher Claudia, que havia morrido de varíola. Um letreiro informa que ele era “um notório ladrão e assassino, homem de temperamento cruel e intempestivo”.

agran1Quando Gran Torino começa, Walter Kowalski está na igreja em que está exposto o caixão de sua mulher, com quem viveu 50 anos; em seguida ele e a família – dois filhos adultos, casados, com seus respectivos filhos – recebem os parentes e amigos na casa de Walter. Nos cinco primeiros minutos do filme, temos uma boa descrição de quem ele é. Veterano da guerra da Coréia (1950-1953), tendo trabalhado décadas na Ford, é um sujeito irascível, bruto, grosseiro, autoritário, conservador até a medula (isso não é dito, mas, se votar, Walter seguramente vota no mais direitista dos candidatos republicanos que houver), racista, xenófobo. Fuzila com o olhar a neta que vai ao serviço religioso fúnebre mostrando um piercing no umbigo. Xinga com todos os palavrões imagináveis os vizinhos da casa ao lado da sua, chineses da etnia hmong. Xinga o filho que tem e vende carro japonês. Japonês, coreano, chinês, para ele é tudo igual, tudo gente repulsiva, invasores de sua América adorada.

 O padre que oficia a cerimônia fúnebre para a mulher de Walter é um garoto jovem, que não tem nem 30 anos. O padre Janovich (Christopher Carley) procura Walter logo após o ofício religioso, na casa dele cheia de visitas; diz que sua mulher pediu expressamente que ele cuidasse de Walter, e que o fizesse se confessar. Walter trata o padre como trata todo mundo: de maneira rude, grosseira. Diz que não quer confessar porra nenhuma – e que o fedelho não o chame de Walter, ou de Walt, e sim de Sr. Kowalski. 

 A casa de Walter é boa, confortável, assim como o bairro em que ela foi construída, numa cidade não especificada do Estado de Michigan. Mas o bairro foi se deteriorando com o tempo; os americanos que viviam ali foram morar em bairros melhores (comprando imóveis que não poderiam pagar, o que acabaria resultando na crise financeira global de 2008, mas esta é outra história), e o lugar foi tomado por imigrantes; na região agora moram chineses, negros, latinos. 

Os hmongs da casa ao lado são a avó – que não fala inglês e, sentada na varanda, xinga o vizinho americano o tempo todo: “Por que ele não foi embora como todos os outros brancos?” –, a mãe e dois filhos, uma moça de uns 20 e poucos anos, Sue (Ahney Her) e um garoto de uns 17, Thao (Bee Vang).

Walter não tem papas na língua, nem qualquer receio de parecer grosseiro – muito ao contrário. Fala tudo o que pensa, destila seu racismo a cada momento. Embora seja um Kowalski, descendente de poloneses naquele país feito por imigrantes, lembra a todo momento que seu barbeiro é italiano, fala frases contra judeus, negros, mexicanos e asiáticos de uma maneira geral.

Lá pelas tantas, tem o seguinte diálogo com Sue, a garota vizinha (não é uma transcrição literal; faço de memória):

Walter: – O que vocês vieram fazer aqui? Tem neve boa parte do ano. Não era para ter imigrante aqui. O que faz um povo da selva no Meio Oeste?

Sue: – Não somos um povo da selva, vivemos nas montanhas. Nós, os hmongs, lutamos ao lado de vocês no Vietnã, e por isso fomos perseguidos e massacrados pelos chineses. 

Sue é inteligente, informada, esperta, simpática, extrovertida; Thao é um adolescente confuso, tímido, retraído. Uma gangue de hmongs que age no bairro, que inclui um primo da família, está sempre infernizando a vida de Thao, provocando, chamando-o de veado, maricas, insistindo para que ele se junte ao grupo nas malandragens e sacanagens que pratica. A gangue vai depois exigir que ele roube o que seu vizinho tem de mais valioso: um Gran Torino 1972, um carro relíquia que Walter ajudou a construir quando trabalhava na Ford e mantém intacto, novo, polido, luzidio como se fosse absolutamente novo. Forçado, Thao vai tentar roubar o carro. 

Walter tem em casa – como a imensa maior parte dos americanos de seu tipo – um grande arsenal, espingardas, revólveres.

         No fundo, é tudo sobre a relação pais e filhos

Em Menina de Ouro/Million Dollar Baby, de 2004, Frankie Dunn, o personagem interpretado por Clint Eastwood, um veterano treinador de boxe, irá, com o tempo, embora muito relutantemente, se afeiçoar a Maggie (Hilary Swank), a garota solitária e perseverante que quer aprender a lutar para escapar da pobreza. Como todos os personagens interpretados por Clint nos últimos tempos, Frankie não foi um bom pai, e tem problemas sérios no relacionamento com sua própria filha. A princípio fechado, recluso dentro de uma armadura que o separa do resto do mundo, Frankie acaba abrindo o coração para Maggie; acaba tratando-a como se fosse sua filha, faz com ela o que não soube fazer com sua filha.

As difíceis relações pais e filhos perpassam toda a obra da maturidade de Clint Eastwood. E aí me permito lembrar o que anotei no passado sobre outros filmes do cineasta:

Poder Absoluto/Absolute Power, de 1997, é à primeira vista um thriller envolvendo o presidente dos Estados Unidos, mas é principalmente a história de uma relação mal resolvida entre um pai na verdade abnegado e uma filha que nega a relação com ele. Clint interpreta Luther Whitney, um talentoso, competente ladrão de jóias que, durante uma ação na mansão de um milionário, testemunha um crime cometido por um altíssimo figurão da política americana. Com a mesma competência com que invade mansões para roubar, Luther Whitney de vez em quando visita a casa da filha – sem o consentimento e a presença dela – para deixar presentes, olhar a geladeira, preocupar-se com a vida não saudável dela. A filha, interpretada por Laura Linney, renega o pai por causa da profissão que ele escolheu, prometeu abandonar, mas não abandona nunca.

Numa seqüência de Poder Absoluto, aparece uma jovem que estuda arte e visita um museu; é interpretada por Alison Eastwood, uma das filhas dele. Alison teve um papel mais importante em Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal, feito também em 1997. Na trilha sonora do filme, toda com músicas de Johnny Mercer, nascido na cidade de Savannah, onde se passa a ação, Alison interpreta, e muito bem, Come Rain or Come Shine.

Em Sobre Meninos e Lobos/Mystic River, de 2003, tudo, absolutamente tudo gira em torno dos filhos, do que se quer para os filhos, do que a crueldade dos outros pode fazer contra eles irremediável, indelevelmente.

Em Um Mundo Perfeito/A Perfect World, de 1993, Clint pegou pesado na coisa da falta do pai, da figura paterna. Tudo se explica pela falta do pai, tudo faz o encontro do pequeno ladrão que vira grande bandido com o menino apavorado existir pela carência da figura paterna.

Os personagens de Clint Eastwood estão sempre, de uma maneira ou de outra, em dívida para com os filhos; não deram a eles o amor que deveriam ter dado na infância; percebem isso muito tarde, e de alguma forma tentam recuperar depois o tempo perdido. 

agran4Mais ou menos da mesma forma com que o cineasta Clint Eastwood, depois de ter atuado em dezenas e dezenas de filmes em que mata pessoas como se matam baratas, passou, depois de velho, a fazer filmes em que demonstra o tamanho absurdo que é tirar a vida de quem quer que seja, até mesmo de um assassino frio, cruel.

“É como se ele estivesse, a cada momento, se penitenciando por ter, de alguma forma, participado da construção do cinema como culto à violência. Se purgando dos pecados. Examinando as culpas. Tentando ver o outro lado”, anotei em 1996 sobre Um Mundo Perfeito.

Walter Kowalski também carrega o peso da culpa de não ter sido um bom pai, por não ter sido amigo dos filhos. É uma das culpas que carrega na vida – além do fato de ter matado mais de uma dúzia de pessoas na guerra, e ainda ter ganho uma medalha por isso.

Como o treinador Frankie Dunn de Menina de Ouro, Walter vai, relutante, sem jeito, com uma aparência de grosseria e desprezo, gostar daqueles garotos chinas, Sue e Thao, como deveria ter gostado dos filhos com quem não tem absolutamente o que falar.

Aos 78 anos, Clint Eastwood mostra que é possível aprender, crescer, mudar, melhorar.

Aleluia!

Trivialidades. E um sucesso de bilheteria – por engano?

A trilha sonora do filme é assinada por Kyle Eastwood e Michael Stevens. A canção Gran Torino é de autoria dos dois e também do próprio Clint e Jamie Cullum. Kyle, assim como Alison, é filho de Clint. A canção foi indicada ao Globo de Ouro, mas não levou.

Muitos dos filmes de Clint nas duas últimas décadas têm sido premiados várias vezes – Os Imperdoáveis e Menina de Ouro levaram os Oscars de melhor filme. Gran Torino, no entanto, não teve indicação alguma ao Oscar; teve apenas dois prêmios e quatro outras indicações.

Felizmente, como dizia o Vandré, a vida não se resume a festivais. Nem o cinema, graças a Deus.   

Algumas informações interessantes que achei no iMDB depois de fazer a anotação acima:

* A direção de casting colocou anúncios procurando atores da etnia hmong em cidades de diferentes regiões do país, Detroit, Saint Paul e Fresno; só um dos escolhidos para os papéis já havia participado de um filme antes, Doua Moua – e faz um papel menor.

* Este foi o quarto filme em que Clint interpretou um veterano da guerra da Coréia; Luther Whitney, o ladrão de jóias de Poder Absoluto, também lutou lá, e o próprio Clint servia as forças armadas na época.

* Clint deu a entender que este foi seu último filme como ator. Tomara que não seja verdade, que ele só esteja dando uma de Silvio Caldas, de Romário.

* E o mais interessante de tudo: este foi o filme dirigido por Clint que teve melhor desempenho nas bilheterias tanto dos Estados Unidos quanto da Grã-Bretanha, em termos nominais, sem descontar a inflação.

Muito estranho. Deve ter havido milhões de pessoas que foram ver uma nova versão de Dirty Harry e seguramente saíram frustradas, desapontadas dos cinemas. Gran Torino rema contra a corrente, vai contra a maré dos Duro de Matar e tantas dezenas e dezenas de filmes da mesma linha. É o anti-Dirty Harry, a anti-Lei do Talião. Beirando os 80 anos, Clint Eastwood está mais humanista que nunca. 

Aleluia!

Gran Torino

De Clint Eastwood, EUA-Alemanha-Austrália, 2008

Com Clint Eastwood, Bee Vang, Ahney Her, Christopher Carley, Brian Haley, Brian Howe, John Carroll Lynch

Roteiro Nick Schenk

Baseado em história de Nick Schenk e Dave Johansson

Fotografia Tom Stern

Música Kyle Eastwood e Michael Stevens

Produção Malpaso, Village Roadshow, Warner Bros,  

Cor, 116 min

****

10 Comentários para “Gran Torino”

  1. Sérgio, perfeito.Vamos torcer para que surja um América na vida desse Romário e ele ainda entre em campo mais algumas vezes para nos assombrar com seu talento,que parece crescer junto com as rugas do rosto.Gran Torino é um grande filme, mas há quanto tempo Clint Eastwood não faz um pequeno filme?

  2. Realmente este é o perfil de Clint Eastwood. De anos para cá resolveu dar um banho de direção e definiu sua carreira.

    O homem está humanista. Ponto.

  3. Mais uma vez aqui Clint repete a personagem ranzinza, assertivo, grosseiro até, mas que, no momento certo, demonstra a coragem necessária para agir em prol de outras pessoas, com as quais ele, inicialmente, não tem a menor afinidade ou simpatia. Assim, como em Menina de Ouro, sua personagem, ao logo do filme, se solidariza com o sofrimento alheio e encontra nos vizinhos asiáticos um motivo para resgatar a afetividade que se perdeu no relacionamento com os filhos. Não há o menor problema que ele se repita, mesmo porque ninguém melhor que ele para interpretar esse tipo de personagem. E a cena final (quando mais uma vez nos remetemos à Menina de Ouro)em que ocorre um sacrifício em nome de um bem maior (sem qualquer conotação religiosa, diga-se) é de arrepiar.

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