Nem Parece Minha Irmã! / Les Soeurs Fâchées


Nota: ★★★☆

Anotação em 2009: Um filme escrito e dirigido por uma mulher, sobre duas mulheres, extremamente amargo sob a aparência de comédia, muito bem feito, com interpretações magistrais – e uma incrível, forte capacidade de incomodar. A mim, pessoalmente, ele encheu o saco durante boa parte de seus 93 minutos de duração.

Não é propriamente que o filme encheu o saco. Não é bem isso. É que ele cria situações tão desagradáveis, tão repelentes, que fiquei querendo que aquilo tudo terminasse logo.

De novo, não é exatamente isso. Não é que eu quisesse que o filme terminasse logo. O tempo todo, desde bem no início, tudo o que eu queria era que Louise pegasse suas coisas e fosse embora da casa de Martine. Que saísse o quanto antes daquele asilo, aquela coisa louca, doentia, infeliz, angustiante, neurótica, neurotizante, horrorosa.

Não está nada objetivo, nem claro. Vamos começar novamente.

airmas1Este Nem Parece Minha Irmã!, de 2004, primeiro longa-metragem de Alexandra Leclère, é o relato de uma visita de três dias que Louise, uma mulher do interior, da Provence, faz à sua irmã Martine, em Paris. Em cinco minutos, essa jovem diretora estreante já coloca a situação toda na tela, às claras: Louise, a interiorana, simples, às vezes com a aparência de simplória, é uma pessoa cheia de vida, de energia, de determinação, de alegria. Martine, a da capital, classe média alta, afetada, vazia, é um poço de infelicidade, amargura, inveja, mesquinhez.

A roteirista-diretora não usa meio tons. É explícita a não mais poder, e pinta tudo com cores fortíssimas – como as cores berrantes de  Almodóvar, ou de, muito antes dele, Jacques Demy de Os Guarda-Chuvas do Amor. Com 15 minutos de filme, eu tinha pena de Louise, torcia desesperadamente para que caísse a ficha na cabecinha boa e simples dela e ela cascasse fora do apartamento da irmã, amplo, burguês e triste como os olhos de um cachorro ensopado na chuva. Pouco antes de o filme terminar, me vi exclamando alto para Mary, sobre Martine: Mas por que essa infeliz não se mata?

Para transmitir com tanta força e clareza esse encontro de irmãs díspares que dura três infinitos dias – a metade de um sábado, um longo domingo e ainda uma eterna segunda-feira –, Alexandra Leclère contou com, além de sua própria competência, o talento imenso de Isabelle Huppert na pele da imbecil Martine e dessa Catherine Frot (que, confesso, não sem alguma vergonha, eu não conhecia) como a doce e vital Louise.     

Não poderia haver ninguém mais perfeito para o papel de Martine que La Huppert, essa atriz soberba, fetiche de chatos como Hal Hartley e Claude Chabrol, o cineasta que dedicou a vida a expor a pequenez dos burgueses franceses. Ela tem o physique du role, o aplomb (perdão, mas essas expressões não têm correspondente exato em português), o nariz empinado, a cara de enfado, a expressão de superioridade exigidos pela personagem, essa gigantesca nulidade que se julga melhor que os outros porque vive num grande apartamento e usa roupas de grife (às custas do marido que ela detesta), numa grande cidade (às custas de tentar esconder o passado de provinciana).

Chabrol, o chato de galocha, seguramente aplaudiria a seqüência longa, enervante, apavorante, do jantar do domingo à noite na casa da parva Martine e seu marido infeliz, Pierre (François Bérleand), com a provinciana irmã e o casal de amigos – a mulher desse casal, Sophie (Brigitte Catillon), é amante de Pierre. É uma das críticas mais bem acabadas, acres, pesadas, da vacuidade das relações entre pessoas que não conseguem jamais abrir a alma, falar verdades, falar algo que de fato importa. Chabrol aplaudiria. Eu, como provavelmente todos os espectadores, morria de pena de Louise e torcia para que ela cascasse fora daquela grande loja de horrores.

Bem no meio deste filme de amargor pior que jiló, há um momento de alegria. É bem curtinho, efêmero, fugaz, dura uns dois minutos só, e é seguido por uma porrada forte. É quando, diante das duas irmãs, passa na TV Duas Garotas Românticas/Les Demoiselles de Rochefort, o musical de Jacques Demy, quase tão colorido quanto o anterior e já citado aqui Les Parapluies de Cherbourg. Na TV diante das irmãs, e do espectador, uma jovem Catherine Deneuve e sua eternamente jovem irmã Françoise Dorléac (ela morreu aos 25 anos de idade, um desses cometas, esses relâmpagos que às vezes passam pela Terra com uma rapidez absurda) cantam a canção de Michel Legrand com letra de Demy celebrando o amor fraternal.

airmas2Por falar em música, a trilha sonora deste filme de estreante é de um dos mais veteranos compositores franceses para o cinema, um mestre, um grande, Philippe Sarde. Beleza de trilha ele fez, para variar.

Procuro informações sobre Alexandra Leclère no uniFrance, o site dedicado a “promover o cinema francês no mundo”. Não tem uma informação sobre ela. Parece a Gráfica do Senado. 

Mas a mulher é competente. Sabe criar personagens de carne e osso – inclusive as personagens secundárias, como essa Sophie, a amiga de Martine que trai a amiga com o marido dela. Sabe contar sua história, com uma narrativa firme, correta, sem invencionices, firulas desnecessárias. Sabe dirigir os atores – porque até mesmo bons atores, a gente sabe disso, são capazes de fazer menos do que sabem e podem, na mão de diretores ruins. A longa, extremamente longa tomada de Isabelle Huppert e Catherine Frot, em primeiro plano, vendo o espetáculo de ópera – que o espectador não vê –, é de um brilho absurdo. 

Isabelle Huppert coleciona 39 prêmios e outras 16 indicações, em sua belíssima carreira. Catherine Frot, com mais de 80 filmes e/ou episódios de séries, menos reconhecida, mas aqui tão brilhante quanto a outra, tem dois prêmios e sete indicações. Não ganharam prêmios por suas interpretações como as irmãs fâchées neste filme aqui – mas mereciam.

Les Soeurs Fachées, diz o título original. Esquisito. Nenhum dos significados em português que o dicionário me dá para fâchées se encaixa com perfeição para o que conta a história: zangadas, aborrecidas, irritadas, descontentes, desgostosas, penalizadas. Todos esses adjetivos podem ser usados para a personagem de La Huppert, a parisiense, mas não para a de Catherine Frot, a provinciana.

Engraçado: de repente me ocorre que este filme aqui poderia ter o mesmo título que uma obra-prima de Agnès Varda, a mulher do Jacques Demy citado e homenageado pela principiante Alexandra Leclère: L’Une Chante, l’Autre Pas. Uma canta, a outra não. Uma sabe viver, a outra não.

Nem Parece Minha Irmã!/Les Soeurs Fâchées

De Alexandra Leclère, França, 2004.

Com Isabelle Huppert, Catherine Frot, François Bérleande, Brigitte Catillon, Michel Vuillermoz

Argumento e roteiro Alexandra Leclère

Música Philippe Sarde

Produção Pan-Europeénne

Cor, 93 min

*** 

10 Comentários para “Nem Parece Minha Irmã! / Les Soeurs Fâchées”

  1. Sabe que esse filme não me incomodou? A Martine era uma megera, mas o filme tem uma narrativa boa, fluente, diferente de algumas outras chatices européias onde o filme demora a passar e eu sou obrigada a dar várias pausas se não quiser dormir enquanto assisto. A Martine é tudo isso mesmo que vc falou e mais um pouco, mas tb a Louise era boba demais, coitada. Não era possível que ela não percebesse nada, tem que ser muito ingênua ou cega pra não ver que a irmã não gostava dela. E depois vem aquele final, que pra mim foi decepcionante. Gente boa demais tb dá nos nervos.
    Fiquei com um pouco de pena da Martine uma única vez: durante a cena de sexo entre ela e o marido. Eu até chamaria de estupro, mas como estupro não é consentido, não sei como chamar. A cena foi mto bem feita, repugnante até o último fio de cabelo. Que bando de gente louca, meu Deus!! Quantas neuroses e tormentos escondidos naquelas pobres almas.

    Isabelle Huppert está mesmo perfeita. Até na única cena em que vc citou, de um momento de alegria, ela fez com que a personagem não ficasse totalmente alegre, acho que pq ela nunca tinha sido alegre na vida, não sabia nem como se portar.

    Sabe que uma vez eu fiquei na casa de uma mulher que era mais ou menos como a Martine, no seguinte aspecto: ela tb se achava pq foi morar numa grande metrópole e tb adorava roupas de grife. Se achava a Jackie O. tupiniquim, rs. Ela não é uma pessoa ruim como a personagem, mas identifiquei algumas semelhanças entre elas: a soberba, o nariz empinado, a vergonha da irmã “caipira”. E ela começou a me alfinetar a la Martine, mas eu não sou nenhuma Louise, e claro que caí fora. No dia em que assisti ao filme nem me dei conta disso, mas agora essa comparação apareceu.

    Mas voltando: que pena que senti daquela criança, aliás, me surpreendeu que ela tivesse um filho, pq pra mim, uma víbora daquela já nascia estéril. Uma cena me chamou a atenção: qdo saiu do elevador e entrou na casa, ela quase derrubou a babá e o menino, mas nem se dignou a pedir desculpas. Achei emblemático.

    Enfim, como vc sempre fala que não consegue resumir, rs, acho que nesse parágrafo vc resumiu mto bem o filme: “É uma das críticas mais bem acabadas, acres, pesadas, da vacuidade das relações entre pessoas que não conseguem jamais abrir a alma, falar verdades, falar algo que de fato importa”.

    Desculpe o comentário gigante.

  2. Jussara, gostei demais do seu comentário gigante; bem, sempre gosto dos seus comentários, inclusive nas poucas vezes em que a gente discorda frontalmente. Mas gostei muito de você citar por exemplo a cena dela entrando em casa e quase derrubando babá e filho, que de fato é emblemática; e achei excelente você dar esse exemplo pessoal de ter visitado uma Tássia (de Tá-se-achando, expressão que a Fernanda usa e eu acho ótima).
    Além de tudo, meu ego ficou inchadão com o fato de você achar que eu resumi bem o filme naquele parágrafo…
    Abração.

  3. Sérgio Vaz,

    Assisti agora a este belo e provocador filme. Nem Parece Minha Irmã! / Les Soeurs Fâchées é um filme memorável. As duas atrizes fazem, soberbamente, o contraponto da coragem, felicidade e simplicidade, com o medo, a tristeza e a arrogância. Os títulos – português e francês – não dizem mesmo nada. E, lendo-o em francês, erroneamente, claro, veio-me um som que pareceu propício: A irmã de fachada. Sim, Huppert, belíssima na sua amargura e insatisfação, é mesmo uma irmã de fachada da brisa provençal que tão bem fez Frot. Parabéns pelo seu competente e preciso comentário sobre este filme belíssimo de Alexandra Leclère.

  4. Adorei a crítica! Eu sou uma grande fã da Catherine Frot, ela é a segunda atriz preferida dos franceses e ainda por cima é uma das atrizes mais bem paga da frança, nesse filme mesmo ela recebeu mais do que Isabelle Huppert, acreditem se quiser! Eu estava na sala mudando de canais e então começou o filme nem parece minha irmã, parei para assistir e instantâneamente virei fã da Catherine Frot, claro que Isabelle Huppert é uma atriz maravilhosa, mas o que me chamou atenção foi a alegria e simplicidade de Louise diante daquele ambiente de stress, aquela provinciana com carinha de criança, sem maldades, pura e inocente! Então virei fã de Frot e passei a ver vááários filmes com ela, adorei todos! Ela se encaixa perfeitamente em qualquer papel, seja drama, comédia, policial…
    Uma coisa que me incomodou um pouco foi o final, eu queria que elas dessem um abraço e que martine pedisse desculpas ali na hora, infelizmente não aconteceu. Porém através daquele final podemos perceber que elas tinham suas diferenças e jamais se dariam bem se convivessem juntas para sempre.

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