Entre os Muros da Escola / Entre les Murs


Nota: ★★★★

Anotação em 2009: Este Entre os Muros da Escola é um dos filmes mais badalados dos últimos tempos. Ganhou a Palma de Ouro em Cannes (foi o primeiro filme francês a levar o prêmio máximo do festival em mais de 20 anos), teve indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro; colecionou no total sete prêmios e sete indicações. Os segundos cadernos dos grandes jornais brasileiros dedicaram páginas e páginas a ele.

Foi talvez o filme sério, pesado, denso, adulto, a ter nos últimos tempos tanto espaço na imprensa brasileira quanto os Harry Potter ou fenômenos de bilheteria desse tipo.

Foi tanta badalação que fiquei com um pouco de preguiça de ver o filme. Preguiça de ver, e de escrever sobre ele – tanta gente já escreveu tanto, pra que então vou eu falar também?

A preguiça de ver o filme passou nos três primeiros minutos da ação. Sim, é um filme excepcional, extraordinário. É extrema, mas extremamente bem feito, com uma fantástica opção pelo simples, direto, seco – parece um documentário, parece que estamos vendo de fato a verdade 24 quadros por segundo. É mais que realista – o estilo é naturalista. Não tem qualquer tipo de trilha sonora, assim como as experiências radicais tipo Dogma dinamarquês. É honesto – apresenta as questões, questões importantíssimas, fundamentais, complexas, dificílimas como poucas coisas na vida, mas não doutrina, não ensina, não tem a soberba de se achar dono da verdade. O espectador que reflita, pense, conclua – se for capaz.

Uma grande tensão social, racial

aentre1A esta altura, não há ninguém alfabetizado que não saiba do que trata Entre os Muros da Escola, mas não dá para não tentar uma sinopse, por mais sintética que seja, e então lá vai: o filme focaliza uma classe do correspondente à nossa sétima série de uma escola pública da periferia de Paris, nos dias de hoje, e portanto com uma forte presença de imigrantes e/ou filhos de imigrantes africanos, muçulmanos, orientais, antilhanos. Acompanhamos o trabalho do professor de Francês, François Marin (François Bégaudeau), também supervisor dessa turma de alunos; vemos as relações entre os diversos professores, vemos as relações entre os alunos. Cerca de 80% das seqüências são dentro da sala de aula; toda a ação se passa dentro da escola.

Há uma imensa tensão na classe. Há tensão social, racial; a questão da autoridade do professor é colocada em xeque praticamente o tempo todo.

A que conclusões podemos chegar?

Sim, algumas são óbvias. A questão da educação é ponto central em qualquer país do mundo. A forma como um país ensina seus jovens vai certamente definir seu futuro – assim como o futuro de cada um dos jovens especificamente.

Alguns dos problemas que vemos na sala da 7ª. série do professor François estão muito longe da realidade brasileira – essa é outra obviedade. A França é um dos países mais desenvolvidos do mundo, o Brasil é periferia, é miserável. Lá não há falta do básico – os alunos são pobres, mas são alimentados, têm saúde, têm roupa, têm material escolar.

No entanto, algumas questões são universais. Como tratar a questão da disciplina? Como fazer os jovens se interessarem por aprender tanta coisa que para eles parece não ter valor algum? Afinal, a juventude, essa doença que felizmente o tempo cura, tem aquela mania infernal de achar que já sabe de tudo, que o mundo começou no momento em que cada um nasceu. E esse fenômeno piora cada vez mais, com o cada vez mais fácil acesso às informações.

O filme não apresenta respostas, soluções. Apresenta uma realidade, as questões, os problemas.

Mas e aí?

Bem, aí já não é mais com o artista – é com o espectador. Com a sociedade.

         Perdemos os valores fundamentais

aentre2Só que é tudo muito complexo, difícil. Pedagogo, assim como ambientalista e esquerdista, tem 37 facções, cada uma delas se achando dona da verdade absoluta e criando 200 mil propostas teóricas que jamais chegam a encostar na realidade.

Talvez o maior drama seja, como Mary observou, a questão – muito maior do que a escola – da perda dos valores básicos. É mais importante do que a própria pobreza, a existência de diferenças sociais, a existência de conflitos raciais. Está na base de tudo.

Ao longo da segunda metade do século XX, a civilização viu um fenômeno virar de pernas pro ar alguns valores básicos que sempre haviam vigorado: o respeito pela autoridade foi se esgarçando, se desmilingüindo, desaparecendo. Autoridade paterna, autoridade dos mais velhos, autoridade dos superiores hierárquicos, autoridades dos professores – tudo isso sumiu. Claro, sempre houve rebeldia, rebeldes – mas eram minoria. De repente, isso mudou completamente. A falta de respeito agora é o padrão. 

Como fazer um aluno que não respeita os pais respeitar o professor?

Como tentar impor limites se dentro de casa não há mais limite algum?

Como controlar aquele monte de adolescentes graúdos, cheios de proteína, vigor, hormônios à flor da pele, protegidos por décadas de uma liberalidade que a rigor é licenciosidade, criados sem noção de autoridade, defendidos por uma redoma de ouro criada por uma sociedade que perdeu todos os conceitos mínimos de educação?

Lá pelas tantas, há uma seqüência impressionante, brilhante, em que o professor François recebe alunos e pais, em entrevistas separadas. Alguns simplesmente sequer falam a língua do país para onde imigraram; outros se queixam da escola, gostariam de ter dinheiro para pagar escola particular.

E aí fica patente o outro fenômeno: depois de perder a autoridade dentro de casa, os pais – muitos, muitos deles – perderam também a consciência de que educar os filhos é obrigação deles. Passaram essa obrigação para o Estado. O problema é da escola – e eles lavam as mãos, e a sujeira fica toda por conta daquelas instituições abstratas, a escola, o Estado.    

         Não há bula, não há cartilha pronta

De uma forma extraordinária, o filme mostra como os professores discutem entre eles sobre como enfrentar a indisciplina. Aliás, os professores são todos mostrados como boas pessoas, bem intencionadas, trabalhadoras, honestas – umas mais conservadoras que outras, mas nenhum monstro cruel, nenhum preguiçoso ou inapetente. E então eles discutem sobre as formas de punição dos alunos indisciplinados. Como fazer? O que fazer? Ser rígido, duro demais, como se era antigamente? Mas agora não dá mais – a sociedade mudou, os tempos da repressão dura ficaram para trás na poeira da história.

O fato é aquele mesmo que Mary bem apontou: perderam-se os valores básicos. Antes o respeito, a disciplina, era a norma, a regra. Alguns pais ou superiores incutiam respeito e disciplina na base da porrada, do castigo severo, do medo; outros tinham a felicidade de inspirar respeito fazendo as crianças perceberem que essa era a ordem natural das coisas. Não há mais ordem natural, os valores básicos foram para o lixo.

E então, o que fazer?

Acho que, ao fim e ao cabo, o que o filme quer dizer é exatamente isto: não há respostas. Não há bula, não há cartilha pronta. Vamos todos ter que procurar as soluções.

E este é exatamente um dos principais problemas da civilização, hoje.

         Eles sabem do que estão falando

aentre3Não é à toa que o filme passa tanto essa sensação de realidade, de realismo, de que estamos vendo um documentário, um filme-verdade. François Bégaudeau, o ator que faz o professor François, foi o autor do livro em que se baseia o roteiro, e foi também o autor do roteiro, juntamente com o diretor Laurent Cantet e Robin Campillo. Foi professor – relata um universo que conhece bem.  

Entre os Muros da Escola é, me parece, o melhor filme que já foi feito sobre esse tema fundamental, o professor e os alunos dentro da sala de aula. E não foram poucos. A mesma dura realidade de escola pública em subúrbio pobre de Paris, cheia de conflitos raciais, foi mostrada em Nosso Professor é um Herói/Le Plus Beau Métier du Monde, de Gérard Lauzier, com Gérard Depardieu. O personagem interpretado por Glenn Ford enfrentou uma barra pesada numa escola de bairro pobre cheia de delinqüentes em Sementes da Violência/Blackboard Jungle, que Richard Brooks dirigiu em 1955 – exatamente no meio da década em que, na minha opinião, surgiu o ovo da serpente a partir do qual os jovens passaram a ser mais importantes que seus pais. Michelle Pfeiffer, com aquela beleza estonteante dela, fez em 1995, depois que já haviam sido perdidos todos os valores, uma professora que enfrentava uma classe de adolescentes pobres – muitos deles negros e latinos – em Los Angeles, em Mentes Perigosas/Dangerous Minds, de John N. Smith.

E Hilary Swank interpretou, em Escritores da Liberdade/Freedom Writers, de Richard LaGravanese, de 2007, outra professora idealista que quase dá com os burros n’água ao enfrentar, também na Califórnia, uma classe pobre, onde convivem a duríssimas penas brancos, negros, latinos e asiáticos, cada qual fechado em seu gueto. É um belíssimo filme, esse Escritores da Liberdade, e a realidade que ele mostra é de fato apavorante; mas ali as coisas parecem um conto de fadas, ou um “filme americano”, porque no fim dá tudo certo – embora seja a transcrição de um episódio rigorosamente real.

Mas nem mesmo o melhor desses bons filmes todos chega ao nível de Entre os Muros da Escola. É uma espetacular obra de arte – inquietante, apavorante, e sem respostas prontas.  

         “Ele é alguém de dentro”

Depois que fiz a anotação acima, como sempre logo depois de ver o filme, e antes de ler sobre ele, fui ao que já se escreveu. Algumas informações interessantes:

– O diretor Laurent Cantet foi o autor do filme Em Direção ao Sul/Ver le Sud, com Charlotte Rampling, sobre turismo sexual de mulheres acima dos 30 e tantos anos no Haiti da ditadura de Papa Doc; eu não havia ligado as informações;

– O livro de François Bégaudeau em que se baseia o filme é bem recente, foi lançado na França no final de 2006; sobre ele, o diretor Laurent Cantet disse ao crítico Luiz Carlos Merten, de O Estado de S. Paulo: “Ele é alguém de dentro, que pode falar na primeira pessoa. François foi decisivo porque me forneceu um ponto de vista para a abordagem naturalista que eu queria fazer.”

– Cantet “filmou com três câmaras dentro do exíguo espaço da sala de aula para obter o máximo de realismo e frescor das réplicas entre estudantes e entre eles e o professor”, diz Merten, em seu texto publicado no Estadão em 10 de março de 2009. “Os garotos foram escolhidos por meio de testes. Muitos já se conheciam da escola que freqüentavam (e que não é a mesma em que François Bégaudeau lecionava). Cantet só encontrou seu mote quando achou que o próprio Bégaudeau deveria fazer seu papel – nenhum ator profissional teria incorporado ao filme o que ele lhe dá.” 

Entre os Muros da Escola/Entre les Murs

De Laurent Cantet, França, 2008

Com François Bégaudeau, Agame Malembro-Emene, Angélica Sancio, Arthur Fogel, Boubacar Tore, Burak Özyilmaz, Cherif Bounaïdja Rachedi, Esmeralda Ouertani

Roteiro François Bégaudeau, Laurent Cantet, Robin Campillo

Baseado no livro de François Bégaudeau

Produção Haut et Court, Canal +, Centre National de la Cinématographie, France 2 Cinéma. Estreou em SP 13/3/2009.

Cor, 128 min  

****

Título em Portugal: A Turma; título internacional em inglês: The Class

10 Comentários para “Entre os Muros da Escola / Entre les Murs”

  1. Este é um filme excepcional, extraordinário, único; nunca vi nada como isto, fiquei completamente esmagado.
    O que o Sérgio diz está certíssimo, perderam-se os valores básicos, e agora?
    Eu comprei o DVD deste filme e ando para o rever há algum tempo, mas na hora de o por a rodar desisto.
    Para mim deve ser o filme mais apavorante que vi.

  2. Realmente um grande filme, sem dúvida.
    Até mesmo em uma escola da França, país de primeiro mundo, vemos numa sala de aula com clareza , os conflitos sociais , culturais e raciais. Ninguém querendo aprender. Para que saber conjugar um verbo? É desta forma que se aprende a falar corretamente.
    É polêmico e tem muitos questionamentos.
    Gostei quando os rapazes falam sôbre a copa das nações africanas.
    Aquele comitê disciplinar, eu achei, parecia estar pedindo desculpas ao Suleymane por ter que expulsá-lo. Até aceito que se tente uma outra opção mas ele era caso perdido.
    A mãe dele dizia que era um santo em casa e daí ? na escola era aquele diabo.
    Achei justa sua expulsão. A pessôa tem que ser responsável por seus atos.
    Assim como o professor se exasperou quando dise que as duas meninas pareciam vagabundas.
    Mas ele foi advertido.
    Pareceu-me que o professor tentou fugir do padrão usual mas foi tragado pelo sistema.
    Gostei quando ele pergunta aos alunos o que mais gostaram de ter aprendido e, ao mesmo tempo fiquei encucado quando a menina,aquela mesma que não diz uma palavra o filme todo, diz à ele que não aprendeu nada.
    Tive a impressão que ele se negou a aceitar aquilo. Terá sido mesmo ??
    E gostei mais ainda quando a Esmeralda diz para o profesor que achava os livros da escola, inúteis. Ele pergunta então , quais livros ela leu e ela responde ” A república de Platão “. Ele diz “é muito bom que tenha lido sôbre isso” e ela responde,”claro não é um livro de vagabunda”.
    Um grande filme

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