De Bico Calado / Keeping Mum


Nota: ★★★☆

Anotação em 2009: Uma deliciosa, irresistível comédia inglesa, com aquele humor peculiar que só o povo daquelas ilhas tem. Aqui, o humor é negro, mas só suavemente negro – nada daquelas explicitudes das comédias americanas tipo Uma Loucura de Casamento/Very Bad Things, em que o sangue esguincha como de um gêiser.

Este filme aqui tem mortes, sim – dead bodies, como dizem os personagens. Corpses, como gostava de dizer Hitchcock. Sangue mesmo só aparece numa rápida tomada. O que há são mortos, dead bodies, corpses – com aquele estranho humor de que são capazes os ingleses Agatha Christie e Alfred Hitchcock, uma coisa suave, ferina, irônica. Nada a ver com a violência explícita do humor negro americano, aquela coisa que agrada aos adolescentes.

O filme abre com seqüências acontecidas no passado. Enquanto estão rolando os créditos iniciais, vemos uma bela jovem, Rosie Jones (Emilia Fox) viajando de trem; um empregado do trem faz uma vistoria no vagão de bagagens e vê que, de um grande baú, sai sangue (é a tal única tomada em que aparece sangue); ele vai até onde está Rosie, pergunta se é mesmo dela um grande baú de tal cor, de tal tamanho, ela confirma; continuam rolando os créditos iniciais, o trem pára em uma estação, policiais aproximam-se de Rosie, e ela não tem dificuldade em confessar: sim, matou o marido, porque ele a estava traindo; matou o marido e a amante dele, cortou seus corpos em pedacinhos, como costumava fazer o velho Jack. Rápidas tomadas de tribunal, e Rosie é condenada a permanecer em um manicômio judicial até que o ministro do Interior pessoalmente decida se ela algum dia teria condições de voltar ao convívio da sociedade.

abico1Terminam os créditos iniciais. Corta, e um letreiro nos informa que estamos nos dias de hoje, em Little Wallop, uma pequenina aldeia inglesa não muito distante do mar, onde vivem 57 pessoas. Boa parte delas está na igreja, para os ofícios dominicais. O espectador vai conhecer então a família do pastor Walter Goodfellow – interpretado por Rowan Atkinson, que até tenta não fazer a cara do Mr. Bean que o tornou famoso. O pastor Goodfellow, como diz seu próprio nome, é um bom companheiro; sua fé em Deus é firme e sua dedicação à Igreja é completa. Logo saberemos que é um pouco mais completa do que devia: todas as suas atenções voltadas para os deveres de pastor, não sobra energia para que exerça suas obrigações conjugais, o que até a filha adolescente, Holly (Tamsin Egerton), percebe. Naquele mesmo domingo em que começa a ação nos dias de hoje, a bela e fogosa mulher do pastor, Gloria (interpretada por uma deliciosa Kristin Scott Thomas, demonstrando um domínio na comédia que eu ainda não conhecia), flagra Holly trepando com um garoto dentro de uma Kombi velha na frente de sua casa; ao repreendê-la, tem que ouvir da filha que está brava porque o pai não está mais dando duro.

A doce, gentil, honrada, respeitada família Goodfellow é complementada ainda por Petey (Toby Parkes), um garoto de uns 14 anos um tanto inseguro, vítima de gozações e pequenas agressões por parte dos colegas de escola.

abico3Acompanharemos, então, ao longo de uns 20 minutos, talvez meia hora, o dia-a-dia dos Goodfellow. Veremos que a insatisfeita Gloria tem dificuldades para dormir por causa dos latidos do cachorro do vizinho, o Sr. Brown; que outra vizinha, a idosa Sra. Parker, está sempre precisando conversar com o pastor a respeito das tarefas do Comitê de Arranjos Florais; que a garota Holly a cada dia está com um namorado; e que Gloria tem aulas de golfe com um americano meio cafajeste, Lance (Patrick Swayze, bem caricato), que, naturalmente, vai cantá-la.

E aí então, quando o espectador já se perguntou umas duas vezes, mentalmente ou para a companheira ao lado, que raios tudo aquilo tem a ver com a jovem assassina que aparece nos créditos iniciais, surge na pequena e sossegada Little Wallop, para trabalhar como governanta-faz-tudo no doce lar dos Goodfellow, a Sra. Grace Hawkins (a grande Maggie Smith). A Sra. Grace chega com um grande baú.

Estamos com uns 30 minutos de filme.

Diálogos deliciosos, atores ótimos

É uma total delícia. O roteiro é ótimo, a trama é toda bem bolada. Os pequenos detalhes são todos saborosos, os personagens todos, inclusive os periféricos, como os vizinhos da família, são muito bem construídos – e os atores são aquela perfeição do cinema inglês. Mesmo a coisa meio caricata do americano interpretado por Patrick Swayze funciona – para aquelas pessoas do pequeno vilarejo inglês, um americano é uma caricatura. Mesmo quando Rowan Atkinson não consegue esconder a persona de Mr. Bean por trás do seu Walter Goodfellow ele permanece engraçado.

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 Kristin Scott Thomas, ótima no drama (O Encantador de Cavalos, O Acompanhante), calma, serena, nada escrachada na comédia (Quatro Casamentos e um Funeral), tão à vontade em filmes ingleses e americanos quanto em franceses (Contratado para Amar, Não Conte a Ninguém), dá um show. O filme já valeria só por ela – mas vale por muito mais.

O diretor Niall Johnson nasceu no interior da Inglaterra, em 1965; este aqui é seu terceiro longa-metragem, e o primeiro com um elenco com nomes bem conhecidos. Que continue com o talento que demonstra neste filme.

Os diálogos são maravilhosos, saborosos, inteligentes. O iMDB coleciona vários deles. Vou transcrever dois ou três.

O pastor e Gloria à noite, já deitados para dormir, ao fim do domingo em que se inicia a ação, o dia em que Gloria flagrou a filha Holly trepando com o namorado e a retirou da Kombi:

O pastor: – “Era um porta-seios o que estava no ombro de Holly esta manhã?”

Gloria: – “Você está com meio-dia de atraso. E chama-se sutiã, hoje em dia.”

O pastor: – “Mas por que ela o carregava no ombro?”

Gloria (após um suspiro): – “Ela estava lavando a roupa.”

         ***

A governanta Grace Hawkins chega à casa dos Goodfellow. O pastor examina o cartão colado ao grande baú onde está escrito Grace, graça: – “Você acha que é um sinal?”

Gloria: “Não. Acho que é um baú.”

         ***

Gloria está conversando com a governanta, a Sra. Grace:

Sra. Grace: “Sabe, os homens às vezes ficam um tanto perdidos, minha querida. Quero dizer, Walter é uma boa alma, mas ele é um pouco lento de raciocínio, como o resto deles.”

Gloria: – “Então você também foi casada?”

Sra. Grace: – “Fui, sim. Muito tempo atrás.”

Gloria: – “Ele ficou um tanto perdido?”

Sra. Grace: – “Com uma pequena ajuda de uma outra mulher.”

Gloria: – “Oh…”

Sra. Grace: – “Perdeu completamente a cabeça por ela.”

É por pérolas como esta comédia que digo sempre que o melhor cinema do mundo, hoje, é o que se faz nas Ilhas Britânicas.

De Bico Calado/Keeping Mum

De Niall Johnson, Inglaterra, 2005

Com Kristin Scott Thomas, Rowan Atkinson, Maggie Smith, Tamsin Egerton, Patrick Swayze, Toby Parkes, Emilia Fox

Roteiro Richard Russo e Niall Johnson

Baseado em história de Richard Russo

Música Dickon Hinchliffe

Produção Summit Entertainment.

Cor, 103 min.

 ***

Título em Portugal: Uma Família dos Diabos. Título na França: Secrets de Famille

5 Comentários para “De Bico Calado / Keeping Mum”

  1. Esse filme é muito engraçado. Concordo com os comentários do Sérgio. Já vi diversas vezes e sempre aproveito bastante…

  2. Eu já perdi as contas de quantas vezes revi este filme. É maravilhoso!
    Os personagens são perfeitos!
    Humor negro com aquela sutileza britânica é perfeito!
    Patrick Swayze como um galã decadente está perfeito! Ridículo como qualquer um que se sinta superior e irresistível. A cena da cabana quando, quase “lá”, ele apresenta aquela sunga medonha é hilária!
    Eu me apaixonei pelo trabalho da Kristin Scott Thomas desde que assisti “Bons Costumes” (apesar do filme ser de 2009, o vi antes deste), interpretando uma nobre rural falida, mas cheia de pose.
    E quanto ao Rowan Atkinson, pode ser eternamente Mister Bean, mas eu adoro o trabalho dele!

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